23 de fevereiro de 2024
Marcos Antonio Corbari e Ednubia Ghisi
Brasil de Fato | Foz do Iguaçu (PR)
Sob o tremular de bandeiras multicoloridas e entre punhos erguidos, milhares de militantes cantaram em plena voz a canção de Quilapayún que convoca a ficar em pé e lutar, “O povo unido jamais será vencido”. Assim ficou marcada a abertura da Jornada Latino-americana e Caribenha de Integração dos Povos, em Foz do Iguaçu, cidade na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
Tanto na mística inicial como na plenária de abertura, o compromisso de solidariedade entre os povos que, historicamente, caracteriza as lutas e ações dos movimentos e organizações populares regionalmente foi reafirmado pelas cerca de 4 mil pessoas, representando mais de 20 países.
O espaço de mística que abriu o evento deu vez e voz à causa dos povos que estão sob agressão de embargos, como Cuba e Venezuela, ou sob violações de direitos humanos e violência, como Palestina e Haiti.
A diversidade que ultrapassa os limites territoriais da América Latina e do Caribe fez eco ao chamado de solidariedade no ato de lançamento da Jornada, em que bandeiras e hinos foram importantes, mas não suficientes. O essencial está além das fronteiras e dentro do peito de cada um e cada uma: “É preciso que nossos corações estejam em sintonia”.
Na sequência, ocorreu um ato de abertura, que contou com a participação de Diana Araujo Pereira, reitora da Universidade Federal da Integração Latino (Unila); Sérgio Moacir Fabriz, diretor-geral do Campus Foz do Iguaçu da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Francisco Lacerda Brasileiro, prefeito de Foz do Iguaçu; e Marcio Killer, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) do Paraná.
Com a plenária lotada, a primeira conferência da jornada colocou em debate o tema “Crise do Capitalismo e as Ameaças para a Paz e a Soberania dos Povos”. A primeira intervenção foi de Bernadete Esperança, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), vinda de Minas Gerais. Para além da fome, a militante apresentou como sintoma do agravamento da crise mundial o avanço das guerras e do extermínio físico dos seres humanos.
O interesse central das grandes corporações e do sistema capitalista é a retomada das taxas de lucro, contando para isso com a apropriação dos governos em aliança com as empresas transnacionais. “Aqui no Brasil, a legitimação das empresas transnacionais tem custado vidas”, afirma Bernadete, que cita como exemplo o crime cometido pela Vale em seu estado, na cidade de Brumadinho, em 2019, que matou 272 pessoas e destruiu a bacia do Rio Paraopeba. Além disso, as consequências chegaram a milhares de pessoas.
“Nós estamos aqui para construir uma perspectiva de unidade que incorpore o sujeito político mulher como parte de um projeto, a partir dos povos, incorporando o feminismo como parte da estratégia. Para construir um projeto de unidade, é preciso reconhecer a nossa diversidade, diferenças, mas as diferenças não podem se transformar em desigualdades.”
Só será possível vencer nosso principal inimigo, o capitalismo, “se formos capazes de reconhecer os diversos sujeitos como parte desse processo”, seja do ponto de vista das contribuições teóricas, seja das práticas. “A unidade é urgente e necessária. Nós só vamos derrotar o imperialismo se conseguirmos construir essa perspectiva de unidade. E unidade não pode ser só em evento, precisamos construir uma agenda de lutas e de mobilizações que nos coloque numa ação constante para derrotarmos o imperialismo”, completou a militante feminista.
Karin Nansen, presidenta da organização Amigos da Terra da América Latina e o Caribe (ATALC), explicou sobre a contradição capital versus vida, denunciando o “conflito que gera efeitos nefastos da acumulação de capital frente à sobrevivência dos povos”. Para ela, está nítido que o sistema capitalista foi construído sobre bases de escravidão, genocídio, ocupação, despejos, destruição dos saberes e devastação da natureza. “Como consequência desse sistema, a vida está em uma situação limite, há sérios riscos de não retorno.”
Em sua manifestação, Karin afirmou ainda que, com o crescimento da injustiça, “crescem também os ataques aos sistemas ecológicos, cresce a injustiça, a concentração da riqueza, a precarização da vida e as migrações forçadas, colocando em risco a vida em nosso continente e no planeta”. Para ela, “nem todos nós somos responsáveis pelas crises, mas todos, indistintamente, estamos submetidos aos seus efeitos”. E complementa: a origem das crises é comum, a injustiça; seja a crise social, econômica, ambiental, da fome, da diversidade, climática.
É preciso organizar o povo e fomentar as lutas para defender “a vida das pessoas, da classe trabalhadora, especialmente do trabalho e do corpo das mulheres”. A partir dessa frase, Karin falou sobre as violações de direitos como efeitos da acumulação de capital. “Para expandir-se o capital atravessa os povos, massacra os povos, porque são os povos que impõem resistência.”
Marilin Peña, diretora do Centro Martin Luther King Jr (CMLK/MAR), de Cuba, denunciou o capitalismo como “um problema que estamos falando há muitos anos, com crises, decadência, agonizando. Precisamos entender cada vez mais quais os novos mecanismos que ele tem utilizado para reinventar-se, porque só conhecendo os mecanismos de reinvenção do capital, vamos poder fazer frente a esse monstro que é o imperialismo”.
Para a militante cubana, vivemos um momento de transição de hegemonia, em que a batalha cultural tem ocupado lugar central, com a guerra das emoções, das subjetividades e a desinformação. “Temos a necessidade de fazer a conscientização de como funciona e como se reproduz esse capital desde a cooptação de nossos sentidos. “O capitalismo quer que não pensemos, quer anular os pensamentos alternativos”, e, por isso, “é fundamental entender que não é possível mudar ou superar as crises do capitalismo”.
Peña fez menção às músicas e à mística de abertura da Jornada, capazes de emocionar e convocar para a ação. Mas, provocou: “O que tem emocionado o povo em geral? Estamos em disputa permanente. Tem a ver com o projeto de dominação do capital, e o projeto de emancipação que nós queremos, e do que queremos como sociedade alternativa. Com certeza, temos que enfrentar a crise ambiental, energética, alimentar e também de valores”, enfatizou.
Cuba também vive grandes desafios, mas segue resistindo graças também à solidariedade e à capacidade de resistir, diz a militante. “Como países em resistência, temos o desafio de não deixar de resistir, buscar algo novo, com criatividade, porque necessitamos outro mundo, onde a vida esteja no centro”, completa. “Esse clima da jornada é importante para buscarmos maneiras de integrarmos o que estamos criando, as boas práticas organizativas, nossas agendas de luta.”
A conferência também contou com Rafael Freire, da Confederação Sindical das Américas e que representou a comissão organizadora da Jornada. “Aqui podemos ter diferenças, mas não temos inimigos, construir unidade é o ponto central que devemos ter como objetivo”, disse reforçando a unidade social e política presente como objetivo desse encontro.
Ele também explicou que o capitalismo vive crises cíclicas, múltiplas, que se agravam com a falência do neoliberalismo. “Isso ficou muito claro na pandemia. O discurso neoliberal foi vencido pela realidade. Nós estamos em um dilema civilizatório: nós vamos retroceder como civilização ou vamos superar essa crise e construir algo diferente dessa origem dos problemas que temos hoje. Não está em jogo só o modelo econômico, estão em jogo os direitos conquistados através de décadas.”
Para ele, a escolha é simples e a decisão precisa ser firme: “Ou a gente luta para a defesa das nossas conquistas civilizatórias ou estamos sujeitos ao retrocesso civilizatório”.
“Não existe saída dentro das fronteiras nacionais, ou integramos nossos países ou não teremos força frente ao cenário internacional. Nos movimentos também precisamos de unidade, vencer as diferenças que temos, precisamos nos juntar, nos unir ou seremos derrotados. Não existe saída só, ou nós temos uma visão generosa e compreendemos que não existe nenhum movimento mais importante do que o outro ou seremos derrotados.”
Ao final da fala, Rafael convocou para a formação de agendas unitárias, apelou para que todos tenham um olhar de generosidade para o contexto que atinge a todos e todas indistintamente. “Temos a confiança de estar juntos, vamos construir uma democracia real, participativa, pelas mãos do povo organizado, vamos sair unidos daqui para construir a cooperação e a integração.”
No período da tarde, a programação seguiu com mesas temáticas que abordaram temas como: o avanço da extrema direita e as ameaças à democracia; as crises do capital, neoliberalismo e a ofensiva sobre os bens comuns dos povos; ofensiva sobre os direitos sociais; e hegemonia cultural do capital e a crise de valores.
No final do primeiro dia de jornada, acontece o lançamento do livro “Contra o Sionismo”, do jornalista Breno Altman, e depois o ato político-cultural em solidariedade a Cuba, Venezuela e Palestina, que terá entre outras atrações a dupla cubana Buena Fé.
No segundo dia da jornada (23), a conferência da manhã abordará o tema “Desafios da integração Latino-americana e Caribenha, com a participação da vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez, além de Juan Grabois, pré-candidato à presidência da Argentina e dirigente da Frente Pátria Grande, Roberto Baggio, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e Irene León, da Rede de Intelectuais em Defesa da Humanidade (RedH).
As mesas temáticas da tarde seguem os mesmo temas do dia anterior, mas ao invés de traçar um diagnóstico em torno dos eixos temáticos, apresentará propostas.
A jornada encerra com a publicação de uma carta de compromissos e ato político com lideranças continentais, com a participação confirmada de Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai.
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