20 de março de 2024
Fabiana Reinholz
Brasil de Fato | Porto Alegre (RS)
“Debulhar o trigo / Recolher cada bago do trigo / Forjar no trigo o milagre do pão / E se fartar de pão / Decepar a cana / Recolher a garapa da cana / Roubar da cana a doçura do mel / Se lambuzar de mel / Afagar a terra / Conhecer os desejos da terra / Cio da terra, propícia estação / E fecundar o chão.”
Nem a onda de calor que chegou ao estado do Rio Grande do Sul foi impeditivo para que cerca de duas mil pessoas comparecessem à cidade de Seberi, região noroeste do Rio Grande do Sul, a 412,4 km de Porto Alegre, neste sábado (16). A cidade foi palco da sétima edição da Festa da Semente Crioula e da segunda Feira da Economia Solidária. Realizada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores e das Pequenas Agricultoras (MPA) e pela cooperativa Cooperbio, é uma das mais importantes celebrações da tradição e da cultura camponesa.
O público foi formado por camponeses, camponesas, movimentos sociais e entidades, vindos de 50 municípios de todas as regiões do RS, além de outros estados e países como Argentina, Paraguai, Colômbia e Venezuela. Pelo governo federal estiveram presentes o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Paulo Teixeira, e o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto. Os deputados federais Elvino Bohn Gass e Dionilso Marcon (ambos PT/RS), assim como o deputado estadual Adão Pretto (PT) também prestigiaram o evento, assim como autoridades locais.
“Além de celebração, esta festa é um momento, também, da gente gritar em alto e bom tom que as sementes crioulas, nesse momento que estamos vivendo, representam um ato de rebeldia, um ato de resistência, um ato revolucionário. E que precisamos de programas estratégicos para protegê-las, coisa que os agricultores camponeses fazem tão bem”, afirma o coordenador nacional do MPA Anderson Amaro.
De acordo com ele, o país está vivendo um período em que a agricultura familiar e camponesa passa a ter, novamente, centralidade na política pública para a produção de alimentos saudáveis. “Neste momento que recuperamos Ministério do Desenvolvimento Agrário, a Conab, as políticas públicas para a produção de alimentos no país, se faz necessário celebrar para que possamos avançar ainda mais”, afirma. Amaro lembrou que na semana passada o movimento lançou a missão Josué de Castro que, em uma perspectiva de aliança entre o campo e a cidade, quer alimentar cinco milhões de brasileiros e brasileiras.
O prefeito de Seberi, Adilson Balestrin (MDB), defendeu que o município “tem muito orgulho de ser sede dessa celebração das tradições camponesas”. Destacou que o evento “traz reconhecimento em especial aos pequenos agricultores e as pequenas agricultoras que se dedicam diariamente na produção de alimentos”.
A mobilização para fazer a festa acontecer estava intensa já na sexta-feira (15), com a chegada do público ao local. No sábado pela manhã as barracas da economia solidária começavam a dar mais cor ao local.
Ente os expositores estão o casal de guardiões da semente Marlene Padilha e Pedro Kungel, da cidade de Panambi. Guardião da semente desde a infância, Pedro, emocionado, explica que o trabalho é cuidar das sementes tradicionais, das sementes do vovô e da vovó. “Os guardiões da semente são homens, mulheres (que inventaram a agricultura), jovens (grupo mirins) que resgatam, multiplicam e preservam sementes tradicionais, sementes saudáveis, sementes crioulas. O guardião é um que cuida, que guarda, um sentinela de algo que está ameaçado, em extinção.”
Conforme pontua Pedro, no modelo atual da agricultura existe um equivoco, caracterizado por um modelo tecnológico e à base do veneno. “O guardião de sementes hoje procura manter o resgate de lavouras, longe do veneno. A gente faz as rocinhas no meio do mato. No mundo urbano, a gente também descobriu a agricultura familiar distante do veneno. Tem muito terreno baldio que a gente faz uma parceria com o proprietário, acaba mantendo limpo o terreno e distribui sementes para outras famílias, que também têm acesso a algum terreno baldio, onde possam plantar e tirar dali o seu sustento e comida de verdade”, afirma.
Também expondo na Festa, estáva o projeto Panc Pop (Popularizando o uso de plantas alimentícias não convencionais), da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Jaqueline Durigon, uma das coordenadoras da iniciativa, disse que a ideia da exposição foi falar um pouco da agro-sociobiodiversidade, das plantas alimentícias não convencionais e da importância da sociobiodiversidade alimentícia, das plantas nativas para enriquecer, diversificar a agricultura familiar, assim como possibilitar ter feiras mais biodiversas.
“Estamos aqui mostrando vários alimentos da biodiversidade, preparos não convencionais, espécies não convencionais, para que o pessoal possa saber o que eu posso usar na minha propriedade, o que eu posso vender na minha feira e a gente trocar também conhecimentos. Resgatar esses conhecimentos e essa identidade. As plantas que nossos antepassados comiam, as plantas que tem uma adaptação a nosso território, a nossa terra”, comenta Jaqueline.
A feira contou com exposição de produtos indígenas, comidas e bebidas da agricultura familiar, distribuição de mudas de plantas e árvores, entre outras.
Coordenadora do MPA no RS e uma das organizadoras do evento, Luiza Pigozzi destaca que a Festa da Semente Crioula é um espaço para resgatar os valores culturais e alimentares. “A partilha das sementes é um momento muito importante para a gente, os guardiões e guardiãs cuidam, manejam durante todo o ano para trazerem para a festa e poder compartilhar com toda a comunidade de todo o estado, são sementes valorosas, dotadas de energia vital.”
Além de ato político, almoço farto e troca e benção de sementes, a festa contou com diversas atrações artísticas. O palco da festa recebeu Bruna Richter Eichler, a Ave Cantadeira; o poeta, cantor e apresentador Odilon Ramos, que interpretou a vida camponesa em versos, do cantor Pedro Pinheiro; do cantor e compositor Antônio Gringo, que trouxe a participação especial de sua companheira, Regina Wirtti; e do cantor e poeta Pedro Munhoz.
“Quero saudar a maior autoridade dessa festa, a senhora e o senhor agricultor familiar que coloca a comida no prato do povo brasileiro, que produz de maneira agroecológica e que passou maus bocados nos últimos anos”, destacou o engenheiro. agrônomo, militante e coordenador do MPA, Marcelo Leal Teles da Silva.
De acordo com ele, a Cooperbio tem duas mil famílias associadas, em mais 40 municípios. “Esse grupo aqui já plantou mais de um milhão de árvores ao longo desses 11 anos. Implantou mais de 500 agroflorestas. Produzimos e distribuímos 20 mil toneladas de bioinsumos. No tempo que nem era moda. Na raça, no sangue e no suor daqueles que tem consciência de classe. Há oito anos esse espaço não tem recurso público. Nós já fizemos um pouquinho. E agora nós precisamos do MDA para transformar esse espaço numa grande universidade do clima, junto com a Embrapa, para gerar soluções, tecnologias.”
Conforme expôs o coordenador, a região onde está localizada a cidade de Seberi é uma das mais afetadas pelas mudanças climáticas, e uma das regiões onde mais se usa agrotóxico no Brasil. “Aqui, interligados com o nordeste e as regiões do Sapezal no Mato Grosso, aqui é uma espécie de Faixa de Gaza do agrotóxico. E esse espaço aqui é um dos poucos espaços, se não o único, que trabalha a transição agroecológica em escala massiva, com muita gente”, comenta Marcelo Leal.
Também destacou a unidade popular formada por diversos movimentos sociais e sindicais que foram se formando ao longo do tempo e que estão construindo um grande projeto que pode virar um marco na política pública da transição de sistema alimentar. “Não somente enfrentando a fome, que temos 20 milhões para erradicar, mas produzindo comida boa, comida de verdade, sem agrotóxico, sem transgênico. E criar um grande bloco social e político para mobilização, para poder defender a democracia. Esse é o nosso grande objetivo. Esse grande projeto para alimentar 5 milhões de brasileiros e brasileiras, que vai da semente ao prato, que envolve o indígena, o camponês, o agricultor familiar, o quilombola, até as organizações urbanos, operária, populares juntamente com intelectuais e artistas”, diz.
Em sua fala, o presidente da Conab, Edegar Pretto, anunciou que em abril deste ano a companhia fará uma chamada para compra de sementes crioulas dos pequenos agricultores para levar aos quatro cantos do país.
“O pedido do presidente Lula é para fazemos tudo o que puder para dar viabilidade, lucro, para esses homens e mulheres que tiram da terra o que vai para nossa mesa. Estamos desenhando o próximo Plano Safra, e entre as medidas, a companhia vai voltar a fazer estoque público de feijão, de arroz e de trigo, que é a comida que vai para a mesa do nosso povo. Não só comprar, mas nós vamos dar as garantias para produzir”, garantiu Pretto.
De acordo com ele, o governo federal vai ampliar as compras públicas. “O presidente determinou, não só para merenda escolar, agora também faremos programas de aquisição de alimentos para o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, hospitais públicos, restaurantes universitários, todos terão que comprar comida da agricultura familiar”, revelou.
O ministro Paulo Teixeira começou sua fala agradecendo a mobilização e as contribuições dos pequenos agricultores para retomada da democracia no país e o papel que cumprem para alimentar o povo brasileiro. Ele destacou a importância das propostas do MPA apresentadas ao MDA.
“Eu trago um abraço do presidente Lula para vocês, nesse um ano e pouco, os dados do Brasil são os melhores possíveis. Ontem saiu na televisão o aumento da geração de empregos no país, mais de 45 milhões de brasileiros estão trabalhando com carteira assinada. Treze milhões de brasileiros e brasileiras deixaram o mapa da fome. Temos que tirar mais 20 milhões do mapa da fome e ter fartura de comida e direitos para o povo brasileiro.”
De acordo com o ministro, o governo federal repassou à Conab um bilhão de reais para comprar produtos da agricultura familiar através do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “E aqui assumimos o compromisso de comprar sementes crioulas para libertar as sementes desse aprisionamento que elas estão, em função das grandes empresas que passaram a controlar as sementes”, completou Teixeira.
Ele também anunciou a intenção de fazer um convênio junto com à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Clima Temperado do Rio Grande do Sul, com a Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e o MPA para produzir semente para agricultura familiar em grande escala no estado. “Esse é o compromisso que eu quero fazer aqui com o MPA nesse dia de hoje. Vamos fazer com vocês um grande programa de sementes crioulas para o povo do Rio Grande do Sul e para o povo do Brasil, a partir desse ato que vocês estão fazendo aqui”, afirmou.
Ainda de acordo com Teixeira, está em discussão no novo Plano Safra a criação de um fundo de aval pra que o pequeno agricultor possa acessar as políticas de crédito, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), junto ao banco sem precisar de avalista. “Por isso, nós vamos criar esse fundo de aval, para que o pequeno tome o empréstimo para o custeio, para que o pequeno compre a sua máquina, que muitas vezes o pequeno não pode comprar a máquina que fica na dureza e na penosidade do trabalho e para as cooperativas para esse ano.”
“A gente pode demonstrar novamente a força do campesinato e sua diversidade. Sua diversidade de pessoas que vieram aqui com seus produtos agroecológicos de qualidade e também a grande diversidade de sementes, mais de 500 variedades de mudas e sementes crioulas que o pessoal trouxe para compartilhar aqui com a gente”, ressaltou Luiza.
De acordo com a coordenadora, foi possível mostra que há produção e que se consegue produzir uma forma alternativa mais ecológica. “O que a gente espera é o retorno de compra pelo PAA, pelas compras institucionais dos agricultores familiares. Vemos alguma coisa acontecendo e essa nossa mobilização precisa continuar para novas mudanças acontecerem”, afirmou.
“Diante do milho transgênico tentam nos padronizar, o milho crioulo traz essa resistência, essa diversidade de produção. As palavras diversidade e resistência resumem muito isso. A gente pode ver que não é só um tipo de alimento, não é só um tipo de milho, mas na verdade uma grande variedade que demonstra a diversidade de nós pessoas também”, complementou.
Diretor de parcerias e fomento da Secretaria Nacional de Economia Popular e Solidária, Fernando Zamban pontuou que a Festa da Semente Crioula e a Feira da Economia Solidária têm o propósito especial de reunir e celebrar. “Uma celebração de esperança e de resistência. Passamos um tempo muito difícil, ainda estamos vivendo esse tempo difícil, e nós precisamos cada vez mais nos rearticularmos, nos reorganizarmos nas bases. A gente não faz isso só organizando luta de trabalhadores. Precisamos organizar redes e cadeias, e a produção de uma maneira em média e larga escala para disputar mercado e construir uma outra lógica também dentro desse mercado”, defendeu.
De acordo com ele, a Feira da Economia Solidária representa para o país uma outra lógica de organizar a sociedade, uma outra forma de viver, produzir e consumir, que muita gente não acredita que dá certo. “Essa é a prova de que não só é possível, como acontece todos os dias. Há um benefício imaterial, além do financeiro e da comercialização, mas da troca, da experiência, do resgate, da proteção das sementes crioulas, que é muito, muito necessário.”
Durante o ato político, Zamban anunciou que até o final de 2024 o governo pretende contratar mil agente populares de economia solidaria, de agricultura familiar, como instrumento fundamental de reorganização dos territórios.
“Vamos retomar o programa de apoio a feiras de agricultura familiar e economia popular solidária, que ficou esquecida há muito tempo. A gente quer organizar trabalhador e trabalhadoras, empreedimentos econômicos solidários em redes e cadeias para disputar o mercado”, afirma. A ideia é a mesma de atividades como a Festa da Sementes Crioula: mostrar às pessoas que existe uma forma diferente de comer, de se alimentar e de consumir.
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