27 de setembro de 2017
Entre a chef de cozinha Roberta Sudbrack que teve mais de uma centena de quilos de alimentos artesanais apreendidos pela Anvisa e as camponesas do Brasil que levam seus queijos escondidos em bolsas para vender na cidade há mais coisas que nossa vã filosofia possa imaginar.A ação dos fiscais da Anvisa causou grande indignação e repercutiu instantaneamente nos meios de comunicação e mídias sociais. Igual indignação para nós, entretanto, não nos causou espanto. Operações como esta, e em sua maioria carregada de força policial junto às famílias, pequenas agroindústrias, feiras e mercados populares de alimentos fazem parte do cotidiano do campesinato brasileiro.
O que existe é uma violência estrutural contra o campesinato, contra a produção artesanal oriundas destes. É o campesinato que produz em diversidade e qualidade a comida boa que vai à mesa do povo brasileiro.
Sob o pretexto de segurança sanitária, o que existe é o velamento de verdadeira guerra assimétrica entre dois regimes alimentares: a indústria de alimentos ultraprocessados contra os alimentos de tipo camponês, artesanal ou minimante agroindustrializados, dinamizador de economias locais e com fortes vínculos com a cultura nacional.
Na medida em que o alimento foi definitivamente incorporado no circuito de valorização do Capital, e a indústria do alimento ultrapassou a do petróleo no que tange a produção de riqueza os estratagemas para eliminar a produção camponesa de alimentos ampliou-se e se sofisticou.
Sumariamente operam em vários níveis:
Um primeiro é o clássico impedimento do acesso à terra, aos recursos naturais, e à política agrícola – infraestruturas de produção, processamento, armazenagem e comercialização – pelas famílias camponesas.
Um segundo é o bloqueio dos mercados – de venda direta ou institucionais dirigidos pelo Estado – às economias camponesas, sejam elas familiares ou associativas e cooperativadas.
Em terceiro é o domínio das políticas de Estado no que tange o complexo agricultura-alimentação-saúde: atuam em múltiplas variáveis, desde a política agrícola às leis e marcos regulatórios. Este complexo financia campanhas políticas, indica e destitui ministros e como demonstra os últimos escândalos operam com alto grau de corrupção.
Por último, a bioprogramação da população, principalmente das crianças: é o nível mais sofisticado, atua substituindo a alimentação da população através de alimentos que constituem a base da dieta alimentar nacional, como arroz, feijão, carne, salada entre outros, pelos industriais e ultraprocessados. Esta substituição impacta diretamente na memória alimentar e na alteração metabólica dos indivíduos. A propaganda dos fast food e junk food, a estruturação de redes de comercialização e venda de porta em porta nos rincões do Brasil são aspectos desta forma de ação.
A memória alimentar é decisiva nas escolhas alimentares. Os alimentos naturais que remetiam ao aconchego da mãe e da casa vovó vão perdendo espaço para o McDonald´s e os açucarados produtos da Nestle.
É uma estratégia centrada no lucro, seus objetivos são destruir a produção camponesa para fazer reserva de mercado para as grandes agroindústrias; destruir a base social da produção diversificada e permitir a produção artesanal para nichos de mercados, com elevadíssimo preço, ou seja, para uma pequena elite poder saborear a comida de qualidade; e transformar as próprias famílias camponesas em consumidoras dos alimentos da indústria alimentar.
É quase utópico, diante do quadro político nacional, falar de um novo marco regulatório para a produção camponesa. Uma política com foco na qualidade do produto e não na infraestrutura – prédios, máquinas e caminhões –.
A legislação sanitária, é ela própria, um mecanismo espoliador da produção camponesa e impõe o modelo industrial na alimentação.
A produção camponesa de que se fala é o mesmo alimento que essas famílias consomem. É uma forma de produção secular no Brasil, muitas receitas, inclusive, são milenares oriundas da culinária indígena, africana e europeia. A indústria de alimentos é nova, e carrega consigo inúmeros escândalos, desde campanhas de substituição de leite materno pelo leite em pó até os recentes escândalos envolvendo água oxigenada/soda/álcool no leite e carne adulterada.
A predileção por estes alimentos por parte de renomados chefs de cozinha de todo o Brasil não é apenas uma tendência, mas um atestado da qualidade dos produtos. Motivo de orgulho para os camponeses que labutam remando contra a maré.
A indústria alimentar padroniza alimentação e empobrece a experiência culinária, porém mais que isso, ameaça diretamente a Soberania Alimentar do país. Produz numa face a fome e na outra a obesidade e a subnutrição.
O Campesinato e suas expressões organizativas, estes teimosos que defendem a Agroecologia, a Soberania Alimentar e a comida de verdade podem fazer pouco, além de resistir, sem o apoio da sociedade urbana.
É uma guerra assimétrica entre os regimes alimentares: um tem riqueza e poder e o outro não. A junção de chefs de cozinha com movimentos sociais ligados à agricultura-alimentação-saúde representa uma possibilidade de fortalecer a luta para reverter o quadro.
A oportunidade existe e a convocação está feita.
Por Marcelo Leal e Raul Krauser
Marcelo Leal e Raul Krauser são Militantes do Movimento dos Pequenos Agricultores/Via Campesina.
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