23 de janeiro de 2024
Bruna Bronoski
O joio e o trigo
Prioridade no financiamento. Estímulo à agroecologia e à agricultura familiar. Criação de assentamentos. Compra para alimentação escolar. Recomposição dos estoques públicos. Fortalecimento de cooperativas locais. A lista de medidas à disposição para incentivar a produção de arroz, feijão e mandioca é grande. Mas, por enquanto, o que o trio-chave do prato brasileiro pode fazer é torcer para a soja dar errado. O mercado garantido do grão que tomou conta do país tem se consolidado, ano a ano, como uma ameaça maior à alimentação saudável.
No fim de 2023, três decretos em torno da alimentação foram celebrados por organizações da sociedade. Eles instituem a Política Nacional de Abastecimento Alimentar (PNAAB), a Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nas Cidades e a disposição de diretrizes para a promoção da alimentação adequada e saudável no ambiente escolar. Um avanço, mas, por enquanto, o que se tem são linhas gerais depois de um longo ano de expectativas e tentativa de remontar o que foi destruído durante a gestão de Jair Bolsonaro.
Inicialmente, os decretos seriam assinados durante a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, mas o presidente Lula não compareceu. Uma passagem simbólica de um governo que havia eleito o combate à fome como prioridade.
Tampouco o presidente fez menção às mais novas políticas em suas páginas do X, antigo Twitter, ou do Instagram, onde suas postagens são assíduas. Naquela semana, o trio de políticas de combate à fome perdeu espaço na timeline do presidente para o Dia do Marinheiro, as reuniões do G20 e o convite das princesas para ele comparecer à Festa da Uva em Caxias do Sul.
Pudera que todos os problemas de insegurança alimentar, falta de acesso à alimentação saudável e altos preços de alimentos no país estivessem sanados com três rubricas presidenciais. Mas ter política de abastecimento ainda não significa ter um plano. A política institui diretrizes e ideais, mas é preciso um plano consistente para definir ações práticas, programas e orçamentos mínimos para viabilizá-los. A partir do decreto, forma-se um comitê que tem 180 dias para apresentar uma proposta de plano, o que teremos só em meados de 2024.
A primeira diretriz da PNAAB é abrangente e resume um sistema necessário para alimentar um Brasil inteiro. Prevê a “promoção de sistema integrado de abastecimento alimentar que engloba produção, beneficiamento, armazenagem, transporte, distribuição, comercialização e consumo, com vistas a promover a soberania e a segurança alimentar e nutricional”. Pela sua complexidade é que vários grupos sociais de diferentes realidades regionais gostariam de ser ouvidos.
“Em maio e junho participamos, eu e outros acadêmicos, das discussões de diretrizes. Havia uma expectativa de avançarmos para pensar os instrumentos da política. Mas, depois, essa participação diminuiu”, conta Paulo Niederle, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Sociologia das Práticas Alimentares (SOPAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em meados de 2023, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) solicitou ao governo que passasse pelo colegiado todo o debate sobre a construção da PNAAB.
“Nós fomos chamados para ouvir as propostas sobre a política em meados de 2023. Levamos ponderações e depois não mais nos chamaram. Me falaram que o plano ia ser lançado na conferência, mas como, se a gente nem teve acesso ao texto?”, questionou Anderson Amaro Silva dos Santos antes do anúncio, dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “O diálogo com o Estado brasileiro está assim: temos espaço para falar, mas a ressonância do que falamos não está sendo a contento”, completa.
As demandas são muitas, dizem os consultados pelo Joio, porque o sistema alimentar abrange questões ainda não digeridas pelo Brasil, como a reforma agrária e os incentivos massivos de produção e distribuição de alimentos pela agricultura familiar. Muitos programas de assistência técnica no país foram descontinuados. Os grandes centros varejistas, como as redes de supermercados nacionais e estrangeiras, dominam a tabela dos preços finais ao consumidor, sem horizontes robustos de alternativas. Os três decretos vislumbram uma “alimentação adequada e nutricional” para todos, mas os números atuais e as projeções futuras apontam para um caminho na contramão da política que saiu do forno nesse verão.
A opção política brasileira das últimas décadas nos levou para uma posição que insistimos em sustentar. É como se o Brasil fosse uma casa, em que os donos do lado de dentro passam fome, e os animais confinados lá fora têm prioridade no suprimento de comida. Futurista que era, George Orwell deve ter imaginado o Brasil atual para escrever A Revolução dos Bichos. Enquanto uma massa de brasileiros raciona alimentos em território nacional, as granjas de porco na China trituram nossa soja abundante, e em crescimento.
O governo até comemora uma recuperação da safra de arroz e feijão mas, no longo prazo, o fundo do prato é ainda mais fundo.
Há 10 anos, na safra 2013/2014, a soja ocupava 30,1 milhões de hectares do Brasil. De lá pra cá, a leguminosa se espraiou pelo território nacional e alcançou os 43,8 milhões de hectares. Na próxima década, chegará aos 55,8 milhões, segundo projeções da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o que significa um aumento de 85% em 20 anos.
O crescimento exponencial da soja é um sonho longínquo para os produtores de alimentos para humanos no país. Os consumidores que têm no arroz e feijão, e ainda na mandioca, a base da cultura alimentar brasileira, ficam na segunda ordem de prioridade da produção agrícola.
A colorida e preta safra de feijão foi cultivada em 3,3 milhões de hectares há 10 anos. Ao invés de aumentar, já que crescemos em 6,5% a população brasileira no período entre os últimos dois censos demográficos, baixamos a parcela de terra que separamos para cultivar feijão. Chegamos aos 2,7 milhões de hectares, uma queda de 18%. E baixaremos mais. A previsão da Conab para a próxima década é haver uma redução de até 48% na área do feijão em 20 anos.
O par da principal proteína vegetal do brasileiro, o arroz soltinho, está se desprendendo cada vez mais da nossa cultura produtiva e alimentar. De 1,4 milhão de hectares plantados na safra deste ano, devemos ter redução de dois terços da área na próxima década.
Será que a tecnologia no campo, que resulta em maior produtividade das lavouras em menores espaços de cultivo, salvará o nosso arroz com feijão? Pelas projeções, não dá para papar essa conversa facilmente.
Considerando um intervalo de duas décadas, a última que passou e a próxima que virá, teremos baixado nossa produção de feijão em 15,3%. No mesmo período, a produção de arroz terá caído quase 20%. Mas os porcos podem ficar despreocupados: a base da sua ração terá um aumento vertiginoso da oferta, de 97,6%.
“Hoje, para financiar uma lavoura de feijão, que é um alimento básico, você paga 4% de juros. Para financiar a soja é 5%, que é commodity. Só que para o produtor é muito mais fácil vender soja que feijão. Na hora de fazer o cálculo, por causa de 1% você escolhe plantar soja”, indica Anderson Santos.
Um pé de soja e um pé de feijão têm estruturas parecidas, o que também favorece o mercado da soja.
“Quando o preço do feijão cai muito, o agricultor mais tecnificado vai para a soja. O agricultor familiar de áreas maiores troca fácil um pelo outro”, explica Walter Belik, fundador do Instituto Fome Zero e professor de Economia da Unicamp. Segundo Belik, sem incentivo de preço e garantia de compra domésticos, não tem como competir com o mercado internacional da soja.
Com o avanço da soja pelo país, principalmente para áreas sensíveis de proteção ambiental, como a Amazônia e o Cerrado, o Brasil alcançou uma posição que causa frenesi em quem olha apenas para a balança comercial produtiva, mas ignora a realidade da fome no país.
Entre os países em desenvolvimento, o Brasil está no topo do pódio entre os mais dependentes de commodities. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas, que fixou um índice para ranquear os mais dependentes, estes países possuem em média, ao mesmo tempo, menor capacidade de desenvolvimento de tecnologias.
As suntuosas máquinas agrícolas que circulam nos comerciais das multinacionais John Deere, Case e outras ainda fazem a cabeça do agricultor familiar médio, que pode ter propriedades de até quatro módulos fiscais, o que em algumas regiões do Brasil chega aos 40 hectares. Mas, para o pequeno agricultor produzir, este tipo de estrutura não resolve o problema de produção em territórios coletivos, como quilombos e assentamentos, ou mesmo em áreas particulares menores ou de terrenos irregulares.
“A gente não tem mais condição de estar no campo produzindo só na enxada. É preciso ter tecnologia avançada para a pequena agricultura e a realidade camponesa”, argumenta Anderson Santos. Segundo o dirigente do MPA, este acesso também deveria passar pelo Estado, com incentivo de crédito subsidiado para aquisição de equipamentos. Ele cita comunidades camponesas da China com cerca de 5 mil habitantes que têm tecnologia para plantar e colher em pequena escala: “É possível ser feito no Brasil, mas falta vontade política e decisão.”
Enquanto a China investe em tecnologia para a pequena agricultura, também compra um terço dos produtos exportáveis do Brasil. Entre os poucos manufaturados que produzimos, o minério de ferro e outros itens, a soja foi responsável pela maior fatia (16%) dos bens exportados pelo país em 2023.
Entre as diretrizes da PNAAB, que deve ser regulamentada em 2024, estão o “fortalecimento da produção de alimentos saudáveis pela agricultura familiar, urbana e periurbana e por empreendedores familiares rurais”, além da proposição de “políticas de fomento, fiscais, tributária, regulatórias e creditícias para ampliar a produção e oferta de alimentação saudável e adequada”.
Partindo do contexto social e produtivo que o Brasil vive hoje, o Joio ouviu duas opiniões que sempre aparecem juntas.
A primeira é que o país possui e retomou grandes políticas de incentivo à produção de alimentos e de combate à fome. Entre elas estão o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Cisternas, este último importante para viabilizar água para a produção em áreas de escassez ou irregularidade no abastecimento de água.
A segunda é que o país não é o mesmo dos governos Lula I e II, que criaram tais políticas, o que sugere que velhas receitas não são suficientes para resolver questões atuais.
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