27 de outubro de 2021
Nosso querido professor Sebastião Pinheiro escreveu sobre o seu encontro com Belchior em uma das formações do MPA, em 20 de maio deste ano. Belchior faria 75 anos ontem, 26 de outubro
Quando percebemos que tínhamos aprendido com os camponeses – com identidade, cultura, postura e organização territorial – sobre a “saúde do solo”, quando era nós que lhes ensinávamos, voltamos para casa para aplicá-lo em nosso Estado, carente daqueles predicados. Com aqueles camponeses aprendemos a verdade.
Nos primeiros anos percebemos algumas diferenças brutais e nos adaptamos à nova realidade. Os cursos deveriam ser aplicados em módulos repetidos pela falta de identidade e vícios induzidos pelo sistema de extensão rural rockefelliano: “Pecuniam quae sibi emit” (em tradução livre, dinheiro que compra), ou “Monetæ quae sibi emit” (em tradução livre, moeda que compra), que omitem a verdade.
Os cursos com o Movimento dos Agricultores Familiares, MPA, foram os mais produtivos e bem-organizados, pois eles perceberam que era necessário uma sequência para garantir o aprendizado. Apenas no quarto módulo fizemos análises cromatográficas de alimentos.
Desde a caminhada na luta contra as tecnologias dos organismos multilaterais, dos interventores, através das forças armadas de poucas luzes, levamos nossas precauções, na percepção de infiltrados, na identificação dos agentes de segurança disfarçados etc. Isso foi enriquecido em meio aos camponeses com identidade, por meio de leituras de idiossincrasias e personalidades regionais, além de compreender a diferença entre a humildade camponesa e a arrogância da ignorância técnica por parte dos profissionais.
Um cena inusitada aconteceu comigo, em Santa Cruz do Sul, no segundo ou terceiro treinamento com o MPA, em setembro de 2013. No meio das aulas uma pessoa com roupas finas, cabelos longos e um bigode gigantesco apareceu e o mais estranho, um rosto familiar, mas à distância, sem intimidade. Olhar, pensar e expressar conceitos é uma prática complexa, pois acende o sinal vermelho de cuidados ou da cautela … Eu tinha mais ou menos 50 anos. Enquanto ainda estava na aula, queria saber de onde o conhecia. Para os míopes, como eu, um dos melhores meios de identificar as pessoas é pelo tom ou gíria da voz, com ela reconhecer regionalidade, nacionalidade ou cultura, mas ele não falava e os outros o ignoravam. Esse é um ponto que eleva o grau de cuidado: reconhecer o peixe fora d’água.
As práticas eram duras e exigiam controle da atenção dos camponeses pela necessidade de ler seus olhares. Você sabe quando um humilde camponês aprendeu pelo movimento dos olhos, ou pela forma como se comunica com os outros, muitas vezes nos movimentos da cabeça e das mãos, sem precisar falar. Um sorriso ou uma careta é melhor do que mil palavras…
Lembro que em uma prática com amostras de solo em uma poça, um dos alunos, o organizador e coordenador do curso, pegou uma taraira (traíra) Hoplias malabaricus que cochilava na água morna da poça com um arremesso de faca a mais de três metros de distância.
No dia seguinte ali estava meu aluno misterioso bigodudo, que não participou da prática e me intrigava conhecer de algum lugar.
O curso foi fantástico, a alegria da comunidade camponesa é muito diferente dos valores preconizados pela extensão Rockefeller, que foi proibida nos Estados Unidos (EE.UU.) pela lei Smith-Lever Act do Congresso em 1914, mas não foi impedida de ser utilizada na América Latina, África ou Ásia.
No ônibus de volta para casa, com uma cesta de produtos camponeses, uma bandeira do movimento e uma camisa, me veio de estalo o bigodudo, era um artista, sem ser um dos quatro maiores cantores do Brasil, um menestrel, fazia muito que não o via na TV e nem ouvia, ele tinha uma voz muito famosa, gostava dele igual ao Alceu Valença, Fagner e Djavan, porque ele era o mais renomado Belchior, tinha o nome de um dos infinitos reis magos. Era o Belchior, que lia as estrelas, e trouxe a mirra ao menino que nasceu na Galileia, mais precisamente na Nazaré para salvar a humanidade. Dois ou três meses depois, recebi a informação de que ele estava escondido entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul, abrigado com camponeses, em situação reservada. Ele veio a morrer em abril de 2017.
Eu nunca pensei nele como um menestrel, mas ontem enquanto trabalhava em um livro, que corrigia, enquanto ouvia no rádio a indagação de um general que sempre em seu uniforme ostenta dois brevets companheiros de comando de caça, um deles dourado, que soubesse o significado. À tardezinha, me ocorreu lembrar de Belchior, pois seu testamento fora a composição final de sua vida: Arte final de uma caligrafia muito triste e sem esperança.
Perguntava ao final se a saída era o aeroporto. Desliguei o rádio e procurei a música na web… Ao ouvi-la, a figura de um jovem negro em frente ao palácio residencial do presidente me veio a mente numa noite dizendo com um sotaque forte: “Desista Bolsonaro, seu governo acabou” deixando de entender: você não manda mais nada. Eu me perguntei: para onde andará o migrante haitiano? Havia sobrevivido à sua ousadia? Poderia ser uma peça do jogo da intelligentsia?
O melhor é não precisar perguntar, para não esperar mentira, foi o que um camponês me ensinou, ao se referir ao governo na dolorida El Salvador, em nada diferente de nós com 440.000 mortos e todos mentem.
Não, Belchior, a saída não é o Aeroporto, como dizia Vandré em seu poema sobre as flores: Quem sabe faz a hora não espera acontecer… Sua provocação é infernal, porque a saída do aeroporto é para os corruptos, mentirosos e violentos. As lições vêm como o vento do inverno desde o sul, com as eleições constituintes no Chile!!! Marichew Galilea!!!
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