23 de janeiro de 2023
Fernanda Couzemenco
Secundo Diário | Vitória (ES)
A criação de uma Secretaria de Estado de Agricultura Familiar –a ser lançada inicialmente como Subsecretaria, pelo que se vê da movimentação no Palácio Anchieta – é uma medida que, em âmbito estadual, contribui para sanar o desequilíbrio historicamente estabelecido entre os pacotes de subsídios e incentivos fiscais concedidos à produção de commodities agrícolas, comparado ao tratamento dispensado à Agricultura Familiar.
A observação é do camponês Dorizete Cosme, membro da coordenação estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA/ES), ao repercutir dados do “Panorama Regional de Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe de 2022”, divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), na última quarta-feira (18), onde se vê, por exemplo, que a América Latina e o Caribe é a região onde o preço de uma alimentação saudável – diversificada, fata em vegetais crus, grãos integrais, amêndoas, sementes e gorduras insaturadas – é o maior entre todos os continentes.
Conforme aponta reportagem do Mídia Ninja, o estudo calcula que o valor médio de uma refeição que englobe os elementos básicos de uma alimentação saudável é de US$ 3,89 por pessoa, podendo chegar a US$ 4,23 no Caribe. O valor está acima da média mundial, de US$ 3,54 por pessoa, e ainda maior que a média nos Estados Unidos e Europa, onde o custo é de US$ 3,19. “Ao converter os valores, um morador da América Latina gastaria aproximadamente R$ 593 por mês para ter uma alimentação saudável, o que equivale a 48,9% do salário mínimo brasileiro em 2022”, destaca a reportagem.
Segundo o relatório da FAO, entre 2019 e 2021, o número de pessoas com fome na América Latina e no Caribe aumentou em 13,2 milhões, atingindo 56,5 milhões de pessoas. Cerca de 40,6% da população da região está em insegurança alimentar moderada ou grave, um número muito acima da média mundial, de 29,3%. Isso está relacionado a diferentes indicadores socioeconômicos e nutricionais. A reportagem cita também um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 2018, que indica um aumento de 50% no consumo de ultraprocessados na região entre 2000 e 2013, principalmente entre o público infantil.
Para enfrentar essas adversidades, é preciso mobilização em Brasília e nos estados. “Estamos pleiteando uma gestão mais direta para que mais políticas agrícolas sejam direcionadas para produção de alimentos, tendo a agroecologia como matriz tecnológica. A produção de alimentos saudáveis, agroecológicos, como ponto focal [da futura Secretaria]”, reforça o líder camponês.
Dorizete explica que, assim como em todo o continente americano ao sul dos Estados Unidos, o Brasil oferece incentivos fiscais para grandes grupos empresariais que produzem commodities agrícolas para exportação, como café e soja, bem como para os que produzem comida ultraprocessada. Para a agricultura familiar, por outro lado, não só não há incentivos fiscais, como o acesso a crédito bancário é dificultado. Situação diferente da encontrada pelos produtores de alimentos nos Estados Unidos e Europa. “Nem se compara! Lá eles têm incentivos para commodities e alimentos”. Já no Brasil, “o Pronaf Alimentos é um Deus nos acuda”, pontua. Enquanto que, “para plantar café, pimenta-do-reino … é mais fácil”.
No sistema bancário, as desigualdades se manifestam desde as planilhas que o agricultor deve preencher para fazer o pedido de crédito. Quando se tratam de projetos de produção de commodities, as instituições bancárias já disponibilizam planilhas prontas, basta o agricultor preencher com os números, variedades e espécies que vai utilizar. Quando o projeto é de produção de horticultura ou outros tipos de alimentos, é preciso adaptar a de commodities e entregar para uma análise dos técnicos do banco. “E geralmente a cabeça dos técnicos é voltada para as commodities”.
A adaptação é ainda mais delicada quando a decisão é pela produção é voltada para uma transição agroecológica. “Além da planilha, você tem que estar certificado. Não tem um apoio, um financiamento, para ajudar a fazer a transição. Os grandes bancos, mesmo públicos, não têm esse olhar, essa vontade, essa decisão mais política de investir nessa área. É tanto que nesses últimos seis anos de desastre no Brasil, não tivemos nada de investimento de Pronaf para essas áreas, o que teve foi para as commodities”.
Uma exceção é o Banco do Nordeste, salienta Dorizete Cosme, que “tem uma sensibilidade maior”. Agora, Banco do Brasil e Caixa, compara, “passam longe”. As próprias instituições, relata, afirmam que os projetos agroecológicos familiares “dão muito trabalho” para o banco e pouco lucro. “Eles dizem que rodam cem projetos nossos para ganhar X, enquanto com um único projeto de commodities, eles ganham o dobro. É o que eles alegam, que nós somos onerosos para eles”. O compromisso social dos bancos, lamenta o coordenador do MPA, não é cumprido. “O coração deles está no bolso”, ironiza.
O início de um terceiro mandato do presidente Lula (PT) lança esperanças de que as coisas podem mudar para melhor. “No primeiro e segundo mandato do Lula teve umas diferenças e agora pode ter novamente. Se ele colocar a produção de alimentos saudáveis como diretriz política e forçar a barra [junto às instituições bancárias], elas têm que fazer acontecer”. Outro direcionamento político importante que se espera a partir do Palácio do Planalto é para maior investimento em assistência técnica e pesquisa em agroecologia e produção orgânica. “Há uma disparidade nessa área”, diz.
Dialogando com as aguardadas futuras diretrizes federais, a pasta capixaba de Agricultura Familiar pode começar a escrever um novo tempo, com maior acesso de alimentos saudáveis, especialmente entre as populações mais vulneráveis. “Se a gente conseguir emplacar lideranças [camponesas e da agricultura familiar] nesses espaços de poder, nós acreditamos que vai haver sim um suporte maior para a produção agroecológica no Espírito Santo também”.
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