17 de agosto de 2017
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedentes as Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, movidas pelo estado de Mato Grosso contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em função da demarcação de terras indígenas. A decisão, tomada na manhã desta quarta (16), reafirmou os direitos constitucionais dos povos originários e foi comemorada pelo movimento indígena.
O estado de Mato Grosso sustentava que a União havia criado reservas indígenas sobre terras que pertenceriam ao estado e que não seriam de ocupação tradicional dos povos que nelas estão. Assim, a ACO 362 pedia indenização por áreas “devolutas” – ou seja, sem uso – que teriam sido anexadas pelo governo federal ao Parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961. A ACO 366, bastante semelhante, pedia o mesmo em função da demarcação de terras indígenas dos povos Nambikwara, Pareci e Enawenê-Nauê, na década de 1980.
Os ministros do STF julgaram as ações em conjunto e decidiram, por oito votos a zero, que estava fartamente comprovado que as áreas reclamadas pelo estado de Mato Grosso eram de ocupação tradicional indígena e que, portanto, não cabia indenização.
Nas últimas semanas, os povos indígenas se mobilizaram em todo o Brasil em defesa de seus direitos originários e contra a tese do chamado marco temporal, afirmando que suas histórias não começaram em 1988. Havia a preocupação de que os julgamentos desta quarta (16) trouxessem à discussão os postulados da tese, defendida pelos ruralistas, segundo a qual os indígenas somente teriam direito às terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Por isso, cerca de cem indígenas acompanharam o julgamento no plenário do STF, enquanto outras dezenas aguardavam do lado de fora, depois de uma longa vigília iniciada na noite anterior junto com quilombolas. Ao mesmo tempo, manifestações e trancamentos de rodovias eram realizadas em todo o país. Alguns grupos de indígenas, como os Guarani e Kaiowá e os Kaingang, passaram mais de uma semana em Brasília, realizando rezas e rituais diários.
Além das duas ações julgadas, uma terceira, a ACO 469, também estava prevista para esta manhã, mas acabou sendo retirada de pauta. Trata-se de uma ação movida pela Fundação Nacional do Índio (Funai) contra o estado do Rio Grande do Sul, pedindo a nulidade de títulos incidentes sobre a Terra Indígena (TI) Ventarra, do povo Kaingang.
Como era a única ação que tratava de uma demarcação realizada após a promulgação da Constituição de 1988, havia a previsão de que a tese do marco temporal fosse um dos pontos de discussão. A partir de um pedido da Funai e do estado do RS, entretanto, ela foi retirada de pauta pelo relator, o ministro Alexandre de Moraes. Não há previsão de quando será julgada.
Embora a tese do marco temporal não tenha sido objeto direto do julgamento, os votos dos ministros tocaram neste ponto e, à exceção do ministro Gilmar Mendes, todos reafirmaram os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais.
“Os ministros do Supremo, de modo majoritário, reafirmaram que o conceito de tradicionalidade dos povos indígenas tem a ver com o modo de ocupação das suas terras e tem fundamento na legislação brasileira muito anterior à Constituição Federal de 1988”, avalia Cleber Buzatto, secretário Executivo do CIMi.
A Constituição Federal reconhece aos povos indígenas, em seu artigo 231, “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O julgamento no STF envolveu, assim, a discussão sobre o que são essas terras tradicionais. Grupos de interesses políticos e econômicos, como os ruralistas, pretendem limitar este conceito com o marco temporal, um critério não previsto pela Constituição Federal.
As constituições brasileiras e a própria legislação colonial têm um longo histórico de reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. É por isso que os direitos indígenas são considerados originários: precedem a criação do próprio Estado brasileiro. Este arcabouço jurídico e histórico, do qual a Constituição Federal de 1988 é uma continuidade, constitui o chamado “indigenato”, e foi citado no voto do relator das ações, o ministro Marco Aurélio de Mello, seguido pelos demais.
A tese do marco temporal foi pela primeira vez enunciada pelo STF no acórdão do caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388/RR), que estabeleceu, além do marco temporal, 19 condicionantes para a demarcação da TI Raposa Serra do Sol.
Embora a corte do STF tenha definido que esta decisão se aplicaria somente àquele caso específico, em 2015, duas decisões da Segunda Turma do STF aplicaram o marco temporal para anular a demarcação das TIs Guyraroka, dos Guarani Kaiowá, e Limão Verde, dos Terena.
Em julho deste ano, após acordo com a bancada ruralista, Temer assinou um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) estendendo as condicionantes daquele julgamento para todos os órgãos do Executivo, poder responsável pela demarcação de terras indígenas.
“Na decisão de hoje foi reafirmada a tese do indigenato, frente à tese do chamado marco temporal. Além disso, foi reafirmado pelo Supremo que as condicionantes da Petição 3388 valem só e unicamente para o caso Raposa Serra do Sol. Ao não aplicar o marco temporal nem as condicionantes do caso Raposa, os ministros reafirmaram que esta decisão não se estende a outras áreas”, avalia o secretário executivo do CIMI.
Marco temporal: vencida a batalha, a luta continua
“Apesar de não ser objeto direto das ações julgadas, a tese do marco temporal sofreu forte impacto e os indígenas saíram mais fortalecidos. Ficou bastante clara a rejeição à tese, o que afeta diretamente o parecer vinculante da AGU assinado por Temer”, avalia Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do CIMI.
O ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, deixou claro que o marco temporal não estava em discussão, mas apresentou sua posição contrária à tese. “Entendo que somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente os territórios que possuam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram”, afirmou.
O ministro Ricardo Lewandowski reforçou a precisão científica e a validade dos estudos antropológicos como provas jurídicas – outro assunto recorrentemente criticado pelos ruralistas.
“É muito comum serem os laudos antropológicos desqualificados, imputando-lhes a característica de que são mera literatura”, afirmou o ministro. “A antropologia é sim uma ciência, tem um método próprio, um objeto específico e baseia suas conclusões em dados empíricos”.
A ministra Rosa Weber, em seu voto, reafirmou o conceito de “ocupação tradicional” definido pela Constituição Federal de 1988, mais abrangente do que pretende a tese do marco temporal. “Sabemos que devido às próprias características culturais dos índios, [ocupação tradicional] não significa necessariamente estar sobre a terra”, afirmou a ministra.
Gilmar Mendes, principal defensor do marco temporal, estava impedido de votar na ACO 362, pois já havia se posicionado quando ainda era Procurador-Geral da República, na década de 1990 – na época, a favor dos indígenas.
Apesar de seguir o voto dos demais ministros, Mendes fez um longo discurso anti-indígena, defendendo o marco temporal e dizendo que, sem ele, acabaríamos por “devolver Copacabana aos índios”, argumento comumente utilizado pela bancada ruralista. Isolado e descolado do objeto do julgamento, o discurso político de Gilmar Mendes destoou da posição dos demais ministros e ministras.
“Evidente que não foi o último julgamento, haverá outros julgamentos, por isso também a importância dos povos se manterem atentos, alertas e atuantes no sentido de que continuem se manifestando em defesa de seus direitos. Esse julgamento reforçou o direito dos povos às suas terras na perspectiva do direito originário, e não o direito restrito como a tese do marco temporal tenta fazer valer”, afirma Buzatto.
Ação quilombola
Os quilombolas uniram-se aos indígenas na vigília que teve início ontem, na Praça dos Três Poderes, e também estavam mobilizados em defesa de seus direitos. A votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, que pretende declarar inconstitucional o decreto que regulamenta a titulação de terras quilombolas, também foi adiada.
O Ministro Dias Toffoli, que estava com o voto vistas e iria devolver o processo hoje, não pôde comparecer à sessão, pois estava doente. Assim como no caso da ACO 469, não há previsão de nova data para julgamento.
Por Tiago Miotto – Assessoria de Comunicação CIMI
Cookie | Duração | Descrição |
---|---|---|
cookielawinfo-checkbox-analytics | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics". |
cookielawinfo-checkbox-functional | 11 months | The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional". |
cookielawinfo-checkbox-necessary | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary". |
cookielawinfo-checkbox-others | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other. |
cookielawinfo-checkbox-performance | 11 months | This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance". |
viewed_cookie_policy | 11 months | The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data. |