31 de dezembro de 2022
Os desafios dos movimentos camponeses frente a digitalização da agricultura*
Marciano Toledo da Silva**
Da nova “revolução” industrial à digitalização da agricultura
A chamada “nova revolução industrial” ou “indústria 4.0” apresentada e debatida a partir do Fórum Econômico Mundial de Davos em 20161 traz diversas questões de desdobramentos das mudanças tecnológicas sobre o mercado de trabalho, a produção e a distribuição de mercadorias e de alimentos e, consequentemente, para a nossa organização social e vida cotidiana.
O processo de introdução de sistemas e equipamentos digitais no cotidiano das pessoas a não é novo, já há algumas décadas vemos a substituição do trabalho humano por máquinas, tal como na troca de operários por robôs em tarefas pesadas ou de precisão nas fábricas; de funcionários por “caixas eletrônicos” no sistema bancário; de tratores e outras máquinas agrícolas controladas por computadores, e recentemente, no sistema de compras com o uso de pequenas máquinas portáteis para pagamento através de “cartão de crédito”. Finalmente, o processo de compras “on line” ou o avanço no uso de sistemas de comunicação via satélite através de computadores ou telefones celulares móveis são exemplos visíveis da mudança na vida cotidiana da maioria das pessoas. Esse processo se intensificou com a pandemia por Covid-19 que, por medidas de segurança sanitária, forçou um condicionamento de isolamento ou “distanciamento” social e domiciliar, tornando fundamental a comunicação através da telefonia móvel e das redes sociais, bem como o acesso a alimentos por sistemas de pedidos para entregas domiciliares (notadamente no meio urbano).
Para as áreas rurais, já se discute e implementa mecanismos de “modernização” dos sistemas de produção agrícola por diferentes processos de desenvolvimento tecnológico e de equipamentos (sob conceitos da “atualização” tecnológica como a agricultura de precisão, a agricultura inteligente e a agricultura digital). A promoção de um processo de modernização ou “inovação” tecnológica através da transformação digital da agricultura, não é nada mais que a reprodução das mesmas promessas da “revolução” verde. Ou seja: possibilita a geração de novos empregos (criando expectativas entre os jovens rurais), aumenta a produtividade, reduz os desperdícios no uso dos recursos naturais (água, solo) ou insumos agrícolas e possibilita a economia de energia no uso de equipamentos. Além disso, os problemas socioeconômicos do processo de produção e comercialização podem ser resolvidos mobilizando e desenvolvendo as economias locais ou nacional, mas sob controle privado e corporativo.
Esse processo possui grande influência e impacto global, especialmente através das Nações Unidas, desde a realização de eventos “tecnocientíficos” internacionais promovidos pela FAO2 junto a governos, organizações públicas e principalmente ao setor privado. Para além da atualização do sistema de produção industrial no campo, ocorre em seguimento (e “em resposta”) aos debates realizados sobre agroecologia desde 2014 na FAO e no Comitê Mundial de Segurança Alimentar e Nutrição – CSA, que culminaram em 2021 no processo de “cooptação” da Cúpula da Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares3. Se caracteriza como um processo rápido e continuado de “captura corporativa” e oferta de “falsas soluções” para o problema das desigualdades sociais e da fome, pois não resolve e não elimina o problema.
O processo de digitalização da agricultura
A ideia de uma agricultura digitalizada, na visão das corporações financeiro-industriais, consiste em considerar que a agricultura possui características sustentáveis e de eficiência quando se utiliza em todo o processo produtivo, inovações tecnológicas que permitam o máximo de rendimento econômico e que possibilitam a conservação do meio ambiente. A chamada “inovação” é a inserção de tecnologias digitais – a digitalização (ou a conectividade digital) de todos os processos relacionados à cadeia produtiva e de comercialização (incluindo fornecimento de insumos, logística, formulação de preços, etc.). Esse processo se traduz em três categorias de ação: (i) de natureza física, com o aperfeiçoamento da automação e uso da robótica – inteligência artificial, (ii) de conectividade digital (a “Internet das Coisas”) ou tecnologia da informação, através de plataformas e dispositivos conectados que ligam o meio físico ao meio virtual e (iii) de natureza biológica, desde o aprimoramento e utilização massiva das biotecnologias (biologia sintética, edição de genes, etc.) na produção agropecuária ou mesmo na saúde.
A fusão de grandes empresas dos setores de máquinas e equipamentos com as de tecnologia de informação possibilitou o avanço do processo de robotização no campo, deslocam o trabalhador rural e substituem a força de trabalho provocando perda de muitos postos de trabalho e afetando inúmeras comunidades, especialmente quando os camponeses também atuam como trabalhadores rurais assalariados. A robotização permite ainda, a captura de informações importantes dos agricultores (os “dados”) pelas empresas, permitindo o monitoramento das atividades dos agricultores e produtores assim como dos mercados, podendo estas dimensionar as suas necessidades e conceberem programas e sistemas que tornam os pequenos e grandes produtores mais dependentes de “falsas soluções” para as deficiências dos seus processos de produção, tendo-se assim, o controle dos sistemas de produção em toda a cadeia produtiva.
O processo de digitalização da agricultura se expressa diferentemente nas diferentes regiões e situações de desenvolvimento do capital nas áreas rurais de praticamente todos os países. Tanto de acordo com a estrutura física existente e com o potencial ambiental para a produção em sua implantação efetiva, como na relação entre a agricultura familiar e camponesa e a (agro)indústria, e mesmo quando de preferências dos consumidores por um ou outro produto. De uma forma geral, esse processo ainda não chegou efetivamente em todas as regiões de produção em pequena escala ou onde há processos de organização camponesa e de trabalhadores rurais. Na maioria dos países, avança “à margem” desses territórios, ou seja, essencialmente nas áreas de grande produção de commodities, estando relacionado à grande produção agrícola ou à utilização de grandes máquinas e equipamentos altamente sofisticados e que requer um alto grau de investimento e de capacitação técnica para o seu manuseio.
Dos desafios às ações de enfrentamento
Deste modo, as organizações de movimentos sociais recém iniciam um debate sobre os desdobramentos sociais das transformações tecnológicas como parte da dinâmica de acumulação de capital e a partir da luta de classe, bem como sobre os efeitos do processo de digitalização da agricultura, especialmente sobre os impactos no mundo do trabalho e na agricultura campesina e indígena. As discussões preliminares realizadas entre organizações da Via Campesina em alguns países na América Latina são realizadas desde a tentativa de compreender os processos da relação tecnologia e capitalismo e tecnologia e trabalho; da relação entre as corporações (big techs) e o Estado; a questão da financeirização dos processos produtivos e do impacto sobre a natureza (consumo de energia e contaminação ambiental); da conjuntura geopolítica da disputa hegemônica por mercados e “controle” global. Mas também sobre a violação de direitos sociais e políticos, tal como os direitos dos camponeses reconhecidos na Declaração das Nações Unidas e no enfrentamento necessário para garantir a soberania alimentar e tecnológica. Porque a soberania tecnológica também é uma questão em disputa política, visto que “os dados também são um fruto da produção humana, de produção coletiva”.
Assim, numa visão macroeconômica, “o principal desafio para os movimentos e organizações sociais é a superação das narrativas ideológicas hegemônicas da economia de dados”4, considerando esse processo como um componente central na reconfiguração do capitalismo contemporâneo. A questão das tecnologias digitais precisa ser tratada no conjunto das organizações e em todas as suas dimensões, visto a transversalidade dos seus impactos na economia, na política, na geopolítica, na cultura, na vida cotidiana, etc.
Em outra perspectiva, a realização dos direitos dos camponeses mediante a promoção da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais5 está posta em risco, porque o processo de transformação digital da agricultura é uma violação a muitos desses direitos. Após uma breve avaliação do Coletivo de Agroecologia da Confederación Latinoamericana y Caribeña de Organizaciones del Campo –Cloc/La Via Campesina Sul-americana sobre quais direitos dos agricultores listados na Declaração das Nações Unidas seriam mais afetados, concluiu-se que de uma forma ou de outra, todos os direitos são afetados. No entanto, desde as características relacionadas à permanência dos camponeses em seus territórios e ao desafio de garantir a soberania alimentar das comunidades camponesas, foram identificados os direitos em que o exercício individual ou coletivo são mais impactados: (a) Direito aos recursos naturais e ao desenvolvimento; (b) Liberdade de movimento; (c) Liberdade de associação; (d) Direito à informação; (e) Direito ao trabalho; (f) Direito a um ambiente de trabalho seguro e saudável (g) Direito à alimentação e soberania alimentar ; (h) Direito a uma renda e subsistência dignas e aos meios de produção; (i) Direito à terra; (j) Direito a sementes; (l) Direito à diversidade biológica e, (m) Direitos culturais e conhecimentos tradicionais.
A Declaração das Nações Unidas é uma ferramenta de defesa dos camponeses e das pessoas que trabalham nas zonas rurais e permite pressionar os governos locais, regionais e nacionais para que sejam criadas políticas públicas para terminar com as injustiças, a exclusão e as desigualdades sociais, além de promover o desenvolvimento de políticas de fortalecimento da agricultura familiar camponesa. Reconhece explicitamente, o direito à soberania alimentar (artigo 15 da declaração) e implicitamente, o direito à soberania tecnológica (como os artigos 3: igualdade e não discriminação, 8: liberdade de pensamento, opinião e expressão, 11: direito à informação, 13: direito ao trabalho, 16: direito a um rendimento e a um modo de vida decentes e meios de subsistência e de produção e 25: direito à educação e formação).
De uma forma mais geral e a partir da ação política de organizações e movimentos sociais, no âmbito das “Jornadas Internet Ciudadana «Utopías o distopías. Los pueblos de América Latina y el Caribe ante la Era digital”, uma plataforma de discussões sobre a “Era digital”, a Cloc-Via Campesina integrou o Grupo de Trabalho sobre Campo e Agricultura. Este grupo aprofundou a análise dos efeitos da era digital sobre as “zonas rurais”, seu contexto histórico, a produção alimentar e as disputas territoriais, a partir de seis (06) temas centrais: (a) o isolamento histórico das zonas rurais em relação aos serviços básicos, incluindo a conectividade; (b) a utilização de meios populares camponeses não digitalizados para a comunicação e produção alimentar; (c) o papel da tecnologia digital no avanço do agronegócio e na financeirização da terra; (d) a proteção do material genético do patrimônio dos povos – as sementes e as raças animais locais; (e) o estudo da questão digital no âmbito da Declaração dos direitos dos camponeses; e (f) a relação entre a soberania alimentar e a soberania tecnológica.
O grupo de trabalho concluiu pela urgência em: (a) interconectar as lutas setoriais ou locais entre elas e com outras lutas regionais ou globais/internacionais para identificar conjuntamente as estratégias que permitem o acúmulo de forças coletivas e enfrentar o problema em seus pontos nevrálgicos, incluindo as demandas e propostas populares de políticas públicas para frear o poder abusivo das corporações digitais; (b) sistematizar os principais impactos do processo de digitalização na agricultura, em seus diferentes contextos socioeconômicos e ambientais, entre distintos setores e organizações sociais (para além de organizações do campo e em aliança com organizações “de classe” urbanas, especialmente as de consumidores) a fim de desenvolver estratégias comuns; (c) promover o diálogo necessário para aprofundar a compreensão sobre as novas sociedades digitais no contexto regional e global; (d) identificar as alternativas possíveis para o fortalecimento das lutas camponesas, dentro do processo de digitalização da economia.
Frente a esses desafios, o movimento camponês entende que é necessário “contestar o campo da tecnologia” porque ainda falta clareza sobre o que realmente está ocorrendo nos territórios camponeses e nas diferentes regiões com o avanço da introdução das tecnologias digitais; sobre as dificuldades existentes, para além da conectividade (e outras questões de infraestrutura), assim como sobre as perspectivas em relação à falta de controle sobre essas tecnologias. É importante decidir sobre a necessidade de definir como um direito, o acesso livre (e controle social) à todas as inovações tecnológicas utilizadas na vida cotidiana e analisar a sua associação aos impactos ambientais. Há também muitas dúvidas, como sobre as consequências da expansão tecnológica nas comunidades camponesas, em termos dos impactos nos territórios e sobre os diferentes modos de vida e do fazer agricultura.
As organizações camponesas (Cloc-Via Campesina) entendem que é possível e necessário integrar métodos ou processos de digitalização e robotização aos métodos tradicionais de produção agrícola ou agroecológica, mas de forma complementar e adaptados e de acordo com as necessidades socioeconômicas dos agricultores/camponeses. E que não significa que todos ou em qualquer local se avança nesse sentido ou que há necessidades efetivas desse processo.
Os processos de produção, de logística e de comercialização avançam no sentido da praticidade, da redução de custos, de facilitar o trabalho e no controle de informações (de dados). Porém é necessário definir a forma de como potencializar a união dessas tecnologias digitais com as práticas tradicionais. Ela só poderá funcionar se estiver sob controle dos camponeses e suas organizações. E isso é muito importante para as expectativas socioeconômicas e de manutenção dos jovens junto às suas famílias em seus territórios, dando continuidade da diversidade das formas de vida e do ‘fazer” agricultura.
Para Perla Álvarez, de CONAMURI/Cloc-LVC e responsável por conduzir o debate, o importante para os camponeses é continuar a produzir para sustentar a vida; seguir práticas ancestrais para satisfazer as necessidades cotidianas dos camponeses. “Passamos pela primeira revolução industrial, uma segunda, uma terceira revolução industrial e estamos nesta ‘Era’ em que, se lhe chamarmos revolução tecnológica com a questão da digitalização, todos os nossos dados, toda a informação que poderia existir no mundo se tornam números, e que são de interesse comercial, de interesse para a geração de lucro das empresas. E no entanto, aqueles que geram estes dados, e no nosso caso particular, dos nossos movimentos camponeses e indígenas, dos povos rurais, daqueles de nós que produzem alimentos, o importante é esta questão, o que produzimos, os alimentos. A alimentação como material básico que resolve os nossos problemas de vida, o nosso problema para continuar a viver, para continuar a ser o que somos.”
A utilização de práticas ancestrais e de produção agroecológica pelos camponeses permite uma maior resiliência na conservação da biodiversidade e demais recursos da natureza e na adaptação às mudanças climáticas. Os camponeses produzem tanto conhecimento e inovação quanto qualquer outro ator social. Está na sua essência “experimentar” coisas novas, em sua diversidade no fazer agricultura, desenvolve tecnologias inclusivas (não excludentes), o que lhes permite produzir e alimentar a maior parte da população mundial. E para tanto, é de suma importância, exigir que a tecnologia chegue ao campo sob a esfera pública ou comunitária, e que as instituições privadas tenham em conta a acessibilidade das pessoas. Vale recordar um velho ditado “uma tecnologia não é boa nem má, depende do uso que se faz dela” e afirmar que é importante a apropriação ou o domínio das tecnologias e técnicas de comunicação para permitir criar uma capacidade de avaliação participativa das tecnologias e a de sua segurança, possibilitar a sua regulação ou rejeição aberta, quando consideradas inapropriadas ou prejudiciais às comunidades camponesas.
* Adaptado de “Les défis du mouvement paysan face à la digitalisation de l’agriculture”, em Revue Lendemais Solidaires, No.1, CETIM. Genebra, Suiça, em janeiro de 2022.
** Engenheiro agrônomo, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, da Confederação Latino-americana de Organizações Camponesas-CLOC e da Via Campesina Internacional. Acompanha os debates da Convenção da Diversidade Biológica-CDB e do Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos-TIRFAA/FAO.
Notas:
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