27 de dezembro de 2023
Humberto Palmeira
MPA Brasil
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) é um movimento social que busca construir a luta por Soberania Alimentar de forma estratégica para que as forças populares efetivem condições para enfrentar o sistema agroalimentar capitalista. Promove a luta pelos direitos e interesses do campesinato brasileiro, criando condições para a sua reprodução social. Além disso, empreende esforços estratégicos visando transformações mais profundas na configuração política, socioambiental e econômica do país.
A insegurança alimentar é uma crescente no mundo. Desde 2014, acreditava-se que o Brasil estava livre da fome generalizada. No entanto, dados produzidos pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) apontaram que 33,1 milhões de brasileiros estavam passando fome.
Entre 2021 e 2022, durante o período mais agudo da pandemia de covid-19, foram os movimentos sociais do campo e da cidade, organizados em um grande mutirão nacional, que realizaram ações para enfrentar a fome. Realizou-se doações em escala nacional de cestas básicas e alimentos agroecológicos, além da construção de Cozinhas Solidárias pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Esta última iniciativa foi transformada em política pública ao ser incorporada ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), uma conquista histórica da luta popular urbana em conjunto com o campesinato.
A pandemia demonstrou que apenas o fornecimento de dinheiro não é suficiente para combater a pobreza e a fome. É fundamental que a população das periferias tenha acesso a alimentos saudáveis, de qualidade e culturalmente nutritivos. É nesse sentido que surge a proposta de criação de sistema de abastecimento popular, que conecte a produção camponesa familiar aos médios e grandes centros urbanos. Indiretamente a política de transferência de renda faz com que o Estado fortaleça os grandes grupos atacadistas que controlam o setor de distribuição de alimentos no Brasil. Enquanto alimentos saudáveis não estiverem disponíveis nas periferias, as opções de consumo permanecerão sob o controle desses conglomerados, dificultando a garantia da Segurança e Soberania Alimentar.
A pandemia da covid-19 e o conflito Ucrânia (Otan) e Rússia agravaram o problema de distribuição de alimentos, entre outras razões relacionadas às restrições sanitárias e logísticas. As crises nas economias nacionais se agravaram nos países economicamente dependentes e subordinados ao imperialismo, resultando em um aumento da insegurança alimentar e da fome. A geopolítica desempenha um papel significativo na produção da fome e da insegurança alimentar em todos os países.
A rápida transformação na geopolítica global e o aumento da frequência de fenômenos ligados às mudanças climáticas devem colocar a soberania alimentar como parte das preocupações e iniciativas dos Estados nacionais no sentido de repensar suas políticas de soberania e segurança nacional. Estamos vivendo um período em que os conflitos e instabilidades tendem a aumentar, bem como sanções e bloqueios econômicos. concomitantemente, às mudanças climáticas aumentam a probabilidade de “desastres ambientais”, o que torna necessário que os países mantenham e elevem estoques de alimentos para momentos de “tragédias”.
No entanto, os vários campos políticos que se desafiam a pensar o Brasil, em sua grande maioria, acreditam erroneamente que o país é o maior produtor de alimentos do mundo. Infelizmente, essa é uma falsa afirmação. Somos, na verdade, os maiores produtores de commodities que não servem para o abastecimento nacional. O povo não se alimenta de soja e milho transgênicos. De acordo com dados da Conab, desde setembro de 2016, os estoques de feijão e arroz estão zerados, e há uma redução progressiva das áreas plantadas de arroz, feijão e mandioca, que são a base da cultura alimentar brasileira.
Nesse sentido, a partir de nossa experiência e acúmulo, o presente artigo propõe refletir sobre essas questões e os desafios e propostas de caminhos para a construção da Soberania Alimentar e do abastecimento popular, criando as bases para a superação da fome e vinculando a produção camponesa familiar com as populações das periferias.
A falta de acesso aos alimentos provenientes da agricultura camponesa e familiar de base agroecológica é uma realidade para as pessoas que vivem nas médias e grandes cidades. Nos últimos três anos, os desertos alimentares – áreas urbanas onde o acesso a alimentos de qualidade é limitado – multiplicaram-se.
É uma condição que leva a problemas de saúde, como dietas e hábitos alimentares não saudáveis, obesidade e má nutrição, especialmente nas periferias. A falta de opções de alimentos nutritivos em desertos alimentares resulta em uma preocupação de Saúde Pública. Em paralelo, nos mesmos territórios onde encontramos os desertos alimentares, também temos os pântanos alimentares. Nestes locais, predomina a venda de produtos ultraprocessados, altamente calóricos e com poucos nutrientes, o que afeta a saúde e a cultura alimentar das comunidades.
Diante dessa realidade, o MPA defende e propõe uma política pública efetiva que combine o direito universal à alimentação, a soberania alimentar e o abastecimento popular por meio da implementação de sete pilares:
1. Rede de Equipamentos de Abastecimento Popular (EAPs): Construir nas periferias por meio da criação de Parcerias Público-Populares, a fim de gerir espaços que conectem a produção camponesa familiar ao consumo nos médios e grandes centros urbanos, oferecendo alimentos e produtos de origem camponesa e empreendimentos populares. Essa interligação de sistemas produtivos, com o apoio do Estado em prol do interesse público, proporcionará à população periférica a possibilidade de acesso a uma variedade de alimentos.
Isso estimulará a redução dos custos de produção de alimentos provenientes da agricultura camponesa familiar, possibilitando a implementação de programas e subsídios para a criação de redes. Além disso, abrirá a porta para que políticas de transferência de renda às famílias carentes, como o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), possam proporcionar o acesso a alimentos a preços subsidiados pelo estado, através de uma política de transferência de renda.
2. Política Nacional de Subsídio para Produção e Consumo de Alimentos: Defendemos que o governo federal crie uma política nacional que subsidie integralmente a produção e o consumo de alimentos produzidos pela agricultura familiar camponesa.
Infelizmente, o principal programa agrícola de crédito do governo federal, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), se transformou em um instrumento de comoditização da agricultura familiar. Do total de recursos, 62% são direcionados para a produção de soja e milho, transformando a agricultura familiar em uma linha auxiliar do agronegócio. Os recursos disponibilizados pelo Pronaf não atendem 40% dos estabelecimentos familiares do país, totalizando apenas 1 milhão e meio de contratos. Além disso, há uma assimetria regional na distribuição dos recursos: Sul (60,2%), Norte (7,6%), Nordeste (11,9%), Centro-Oeste (6,3%) e Sudeste (14,1%).
Se a alimentação é um direito constitucional, é dever do Estado garantir esse direito, criando uma política nacional que subsidie a agricultura camponesa familiar, fortalecendo e ampliando a produção dos alimentos básicos para a população brasileira, reduzindo os custos para produtores e produtoras e criando um sistema de abastecimento popular por meio dos EAPs.
3. Regulamentação dos Grandes Mercados: Regular as cadeias de suprimento alimentar para evitar o monopólio do mercado por grupos atacadistas, seja de capital nacional ou internacional. É crucial estabelecer parâmetros para conter a expansão descontrolada das redes atacadistas no Brasil. A conciliação entre o direito à alimentação previsto na Constituição Brasileira e o estímulo ao monopólio na comercialização de alimentos no país é uma contradição insustentável.
O Estado brasileiro precisa assumir o controle do setor de abastecimento nacional, com sistemas de abastecimento mistos, livres de monopólios. A proposta é simples: equiparar o direito à alimentação ao direito à saúde e à educação. Assim como defendemos o Sistema Único de Saúde (SUS) e a educação pública de qualidade, também devemos lutar para que os alimentos não sejam tratados como mercadorias. Se a alimentação é um direito constitucional, deve ser garantido pelo Estado, da mesma forma que a saúde e a educação.
Portanto, é imperativo construir um sistema nacional de abastecimento para que a distribuição de alimentos não esteja sob o controle dos grandes grupos monopolistas, cujo principal objetivo é o lucro, sem considerar a Segurança Alimentar e Nutricional.
4. Soberania Alimentar como base para a Soberania e Segurança Nacional: A transformação da soberania alimentar em uma questão de soberania e segurança nacional envolve um olhar estratégico sobre o papel que o Brasil pode desempenhar na geopolítica. É importante ressaltar que soberania alimentar e soberania nacional estão interligadas, mas não são exatamente a mesma coisa. A soberania alimentar refere-se ao direito de um país definir suas próprias políticas alimentares e agrícolas para garantir o acesso a alimentos saudáveis e nutritivos para sua população. A soberania nacional, por outro lado, é a capacidade de um país tomar decisões autônomas em todas as áreas, incluindo economia, segurança, política, cultura e abastecimento.
Ao fortalecer a soberania alimentar como parte da soberania nacional, o Brasil pode garantir seu direito de tomar decisões autônomas sobre questões alimentares. A política de soberania alimentar orienta a necessidade de uma efetiva reforma agrária popular como base democratizar o acesso à terra e aumentar a produção de alimentos saudáveis. É preciso um plano de produção agrícola que garanta a reprodução da nossa biodiversidade, é necessário a diversificação da produção agrícola, incentivando o cultivo de diferentes tipos de alimentos. Tornando fundamental a construção de Reserva Estratégica de Alimentos para segurança alimentar em situações de crise, como “desastres ambientais”, conflitos ou mesmo ajuda humanitária.
5. Cultura, Educação: A cultura, saúde e educação desempenham papéis fundamentais na promoção da soberania alimentar e no abastecimento popular. Estamos perdendo nossa cultura alimentar, principalmente devido à expansão do fast food nas periferias. Precisamos urgentemente promover a interseccionalidade entre alimentação adequada e saudável com nossas culturas alimentares e valorizar o “Direito ao Gosto”. A cultura desempenha um papel fundamental na definição das preferências alimentares e tradições. Promover e preservar a cultura alimentar é essencial para a soberania alimentar. É necessário que o plano nacional de cultura inclua programas que permitam a estruturação de eventos e atividades que promovam, resgatem e valorizem a cultura alimentar do povo brasileiro.
A educação desempenha um papel crucial na conscientização sobre a valorização da cultura alimentar e nas possibilidades de escolha alimentar saudável. Ensinar as pessoas sobre a produção e consumo de alimentos da agricultura camponesa familiar é fundamental, pois temos uma geração cuja referência alimentar são os fast food. Em colaboração com o MEC e as secretarias de educação dos estados e municípios, é necessário avançar em processos educativos e trabalhar a alimentação como um direito, como parte da educação política sobre direitos nutricionais, segurança alimentar e técnicas agrícolas. Isso é essencial para capacitar as comunidades a tomar decisões informadas sobre sua alimentação e produção de alimentos.
6. O SUS: Como sistema de saúde pública no Brasil, o SUS fornece acesso universal e gratuito a serviços de saúde de qualidade ao povo e é um exemplo inspirador de política de garantia de direitos. Ele é uma inspiração para pensarmos política que garanta o direito à alimentação. A alimentação saudável é fundamental para a prevenção de doenças e promoção da saúde coletiva.
O SUS tem um potencial para ser um agente vital na promoção da saúde coletiva, tendo como a soberania alimentar e abastecimento popular. Ele pode contribuir em programas voltados para a prevenção de enfermidades associadas à dieta, como obesidade, diabetes e hipertensão, bem como oferecer orientação nutricional e campanhas de conscientização sobre os benefícios de uma alimentação tendo como base a produção agroecológica.
No âmbito da soberania alimentar, o SUS pode influenciar a capacidade das comunidades de decidirem sobre sua alimentação e produção de alimentos. Ao mesmo tempo, seria proveitoso para o SUS fomentar políticas de aquisição de alimentos locais para seus hospitais e clínicas, incentivando a agricultura regional e proporcionando acesso a produtos frescos e nutritivos.
O papel do SUS na promoção de uma alimentação saudável e na defesa da soberania alimentar, da agroecologia para efetivação do direito à saúde coletiva. A intersecção entre o SUS, o direito à alimentação e a soberania alimentar torna-se primordial para estabelecer uma frente unificada na luta pela desmercantilização da saúde, iniciando pelo direito fundamental que é a alimentação.
7. Organização Popular: garantir a construção de políticas em conjunto com as massas populares e suas organizações, permitindo que o povo participe da criação e defesa de seus direitos. Isso porque não é suficiente contar apenas com um governo composto por gestores adeptos à construção de políticas para garantir o direito à alimentação.
Os governos mudam e políticas podem ser facilmente desfeitas por meio de decretos. Nesse sentido, é essencial que, quando tratamos do direito à alimentação, soberania alimentar e abastecimento, devemos estabelecer uma relação mais efetiva entre o Estado e as organizações sociais e populares, indo além da simples consulta e adotando um caráter deliberativo, para tomar decisões na construção e gestão dos programas de abastecimento popular.
É vital garantir a governabilidade com a participação popular, não apenas considerando os interesses do Congresso. Não podemos separar a perspectiva do direito à alimentação dos processos de luta contra as forças reacionárias e conservadoras da sociedade brasileira.
Nesse sentido, o MPA acredita que a construção de políticas públicas estruturantes são fundamentais para a garantia da Soberania Alimentar e do abastecimento popular como forma efetiva de enfrentamento do sistema agroalimentar. Incentivar a diversidade agrícola, a educação popular, os saberes tradicionais e a experiência dos movimentos populares é urgente para que o consumo de uma alimentação saudável não seja mais uma promessa, mas parte da cultura alimentar do povo brasileiro.
É preciso ousar. A reconstrução do passado não será mais suficiente para superar as grandes contradições que vivemos no Brasil. É necessário construir uma nova aliança política entre governo democrático e povo, que permita acumular forças nas massas populares para que alimentos saudáveis não sejam para quem pode pagar, mas um direito de fato do povo brasileiro.
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