30 de novembro de 2016
Um balanço da política agrícola de Temer e do Congresso: liberação total de agrotóxicos, importação de transgênicos sem testes, tentativa de sujeitar às grandes empresas do agronegócio até mesmo produtores tradicionais de batata, mandioca e feijão…
Em entrevista especial concedida à Comunicação do Movimento do Pequenos Agricultores (MPA), Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo e doutor em Engenharia de Produção, fala sobre as mudanças na legislação, voltadas ao campo, que estão sendo feitas no Brasil, a permissão da importação de milho transgênico, o avanço do agronegócio e a sua legitimação por meio do legislativo sob a justificativa de alimentar o mundo. Ele, que é integrante do Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade (GEA), presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) e coordena o Grupo de Trabalho sobre Agrotóxicos e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), foi membro da CTNBio de 2008 a 2014. É hoje professor colaborador do Mestrado Profissional em Agroecossistemas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A seguir, a entrevista:
Neste cenário de golpe e com o processo de retirar direitos, o que está em risco na legislação relativa a soberania alimentar e produção da agricultura familiar e camponesa?
Leonardo Melgarejo: O Movimento dos Pequenos Agricultores é uma das organizações mais importantes de sustentação da democracia no país hoje, especialmente com as mudanças que estão acontecendo no meio rural e que de fato ameaçam a todos nós. O golpe é muito amplo, tem muitas caras, multifacetado. Envolve ações no Executivo — no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), no desmonte de programas importantes para o desenvolvimento da Agricultura Familiar, nos programas de desenvolvimento social que ajudam em várias áreas do desenvolvimento do país e programas de estruturação da produção dos pequenos agricultores, dos camponeses, dos povos e comunidades tradicionais.
Mas ele também entra no Legislativo, na medida em que propõe alterações de leis que estão em vigor e são importantes para nós, e introdução de novas leis, que ameaçam todos os processos de construção das organizações sociais, como no caso do MPA. Uma das preocupações importantes diz respeito à Lei dos Agrotóxicos, por meio de um projeto de lei (PL) que vem do Rio Grande do Sul, do deputado Covatti Filho, e que foi agora agregada a um projeto de lei do Ministro Maggi, quando ainda era senador.
As modificações são brutais. Para começar, ele retira a palavra agrotóxicos de cena. Esse veneno que vem causando muitos danos, para muita gente do Brasil todo, passaria a ser chamado de defensivo fitossanitário. Isso cria uma confusão, porque nos programas de agroecologia e de produção orgânica a expressão defensivo fitossanitário é usada para classificar coisas que são utilizadas na produção limpa, como urina de vaca, calda de urtiga, calda de fumo, calda bordalesa. São defensivos fitossanitários, não são agrotóxicos porque não causam esse tipo de intoxicação, de doenças e problemas para a saúde que os venenos agrícolas causam.
Esse projeto de lei faz outras coisas. Os profissionais da área de saúde no Brasil são ligados ao ministério da Saúde, têm uma carreira relacionada à avaliação de danos à saúde, fazem concurso público e acompanham as movimentações na escala internacional. Também há os profissionais do ministério do Meio Ambiente, pessoas que são concursadas, estudam este tema e fazem as Análises de Impacto Ambiental. Hoje os agrotóxicos, para serem aprovados no Brasil, têm de ser analisados pelos profissionais da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pelos profissionais do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais). Eles também têm de ser analisados pelos profissionais do Ministério da Agricultura sob o ponto de vista da conveniência e da oportunidade. Esse projeto de lei tira a responsabilidade dos profissionais da saúde e do meio ambiente e atribui a um grupo criado por indicação do ministério da Agricultura a faculdade de dizer se podem ser usados ou não no Brasil.
Para a gente ter um exemplo claro, em 2013 houve uma grande infestação de uma lagarta que não morria com o milho transgênico e essa lagarta criou uma situação de perda na lavoura, principalmente no estado da Bahia e depois no resto do Brasil, que fez o Ministério da Agricultura decretar um Estado de Emergência Fitossanitária. Em consequência, o ministério da Agricultura autorizou a importação e uso de um veneno muito perigoso, que era proibido no Brasil: o benzoato de emamectina. Ele não tinha sido autorizado pela Anvisa por ser neurotóxico. Para salvar a safra, o ministério da Agricultura decretou que poderia ser usado. Essa mesma leitura de que uma safra é mais importante que a saúde de toda a população vai valer, nós imaginamos, numa comissão criada pelo ministério da Agricultura que elimina as avaliações da Anvisa e do Ibama. Aquele produto químico havia sido proibido pela Anvisa. Neste projeto de lei, a interpretação é que algumas instâncias públicas estão dificultando muito a tomada de decisão de interesse do agronegócio porque levam muito tempo para a aprovação desses produtos. E para superar isso que eles entendem como dificuldades, tira-se dos profissionais da área a competência de analisar, cria-se uma comissão específica indicada por um único ministério que já demonstrou seu interesse predominante e alteram-se as condições de risco para a população, para toda a população brasileira. Querem “acelerar” as análises de risco. Nós pensamos o oposto. As análises devem ser mais detalhadas, mais cuidadosas. Não mais rápidas.
Imagine o que que é um herbicida. É um produto agressivo, é um mata-mato, não defende nada de ninguém, não é um defensivo fitossanitário, é um herbicida agressivo. Quem vai avaliá-lo? Ele deixou de ser um agrotóxico e passou a ser um produto químico sem classificação adequada. As análises de produtos como 2.4-D ficam no limbo. Não sabemos que destino terão. Esse é um dos projetos de lei que ameaçam e ganham corpo neste momento de golpe.
Outro projeto é uma alteração nas Leis de Cultivares. Ela diz o seguinte: sabemos que os produtos transgênicos são de propriedade das empresas que inseriram no milho e na soja um gene patenteado, o que dá para a empresa o direito de cobrar pelo uso daquela tecnologia. A interpretação do deputados Dilceu Sperafico, que propôs a alteração na Lei dos Cultivares, é a seguinte: ele diz que os pesquisadores não são estimulados a criar novas variedades mais produtivas, mais interessantes, se não são transgênicas — porque eles não têm direito de cobrar royalties sobre o uso dessas variedades. Na nova Lei de Cultivares, as novas cultivares que tiverem características inovadoras, e forem protegidas pela lei de cultivares, vão obrigar o produtor a pagar para usar, a pagar de novo quando colher e quiser replantar, a pagar se quiser vender e, se isso não for cumprido, estarão cometendo um crime. Como essas variedades podem ser qualquer variedade não transgênica, essas características que dão o direito de cobrança pelo uso em breve estarão presentes na batata-doce, na mandioca, na batata inglesa, em todos os produtos que nós utilizamos e que vão poder ser desenvolvidos por melhoristas. Quando a gente fala em ser desenvolvidos por melhoristas, pensa que pode ser um agrônomo, um técnico agrícola que está trabalhando para qualificar o produto. Nas não é assim: são as grandes empresas transnacionais, que têm esses profissionais como seus empregados e vão ser as donas das patentes desses cultivares. Nós vamos ter as patentes dos produtos transgênicos cobradas no mercado. E teremos os cultivos tradicionais cobrados com base na Lei dos Cultivares.
Se essa legislação for aprovada, a saída seria o agricultor não usar esses cultivares protegidos por lei. A saída seria estimular os bancos de sementes, como o MPA vem fazendo. Nós precisamos de mais bancos de sementes difundidos em todo Brasil. Não é só com milho e feijão. Estamos falando também de tubérculos, de manivas. São produtos colhidos e selecionados pelo agricultor, acompanhados em termos da qualidade que oferecem, na medida em que o clima está mudando — porque essa mudança do clima faz com que a plantas se transformem. Essa seleção coloca em cada lugar a variedade crioula, a “cultivar crioula”, desenvolvida pelo agricultor no seu ambiente, incorporando as mudanças do clima. Por isso, o processo de coevolução é importante: é uma espécie de pesquisa científica de alto valor para humanidade, que só pode ser desenvolvida por centenas, milhares de agricultores com seus bancos de sementes. Isso está ameaçado com essas mudanças da legislação e nós imaginamos que, nesse processo de transformação que vem ocorrendo na Câmera dos Deputados, é possível que em breve se aprove a Lei das Plantas com Restrição Reprodutiva, chamadas de GURT na sigla em inglês, mas que nós conhecemos melhor como Terminator. Imaginamos que em breve as plantas não vão mais gerar grãos, elas não produzirão sementes viáveis. Plantas não férteis vão ser aprovadas com base em outro discurso, que é o de que nós temos de combater a fome trabalhando com plantas biofortificadas.
As empresas dizem que essas plantas biofortificadas, que teriam um teor maior de ferro, zinco ou de fósforo, devem ter essa restrição reprodutiva, de tal maneira que não exista o risco de serem consumidas inadvertidamente. Só quem comprar essa semente poderia cultivar e utilizar. Com isso, pretende-se aprovar essa tecnologia de restrição reprodutiva, outra ameaça muito grande. Se essa característica de restrição reprodutiva for passada para um banco de sementes de um camponês, esse banco de sementes perde a sua utilidade, a sua validade, a sua condição reprodutiva.
Sobre a importação do milho transgênico, aprovada pela CTNBio, é um processo de ignorância?
Para que o milho ou qualquer outro produto transgênico entre no Brasil, só há dois caminhos. Tem que entrar em pequenas quantidades para que se façam os estudos, que são importantes porque o clima e o ambiente afetam o potencial genético. As plantas expressam suas características interpretando as condições do ambiente. É fácil a gente entender que é difícil produzir maçã na Campanha Gaúcha, mas é fácil produzir em Vacaria, porque o clima de Vacaria é melhor interpretado pelo potencial genético daquelas mudas de maçã. A gente percebe isso com mais clareza quando pensamos em produzir castanha do Pará no Rio Grande do Sul. O clima não permite, embora a gente traga a melhor muda lá de cima. Se a muda, se a planta, se a condição biológica depende do ambiente para se expressar, é evidente que um milho que faça sucesso nos Estados Unidos tem que ser testado aqui, nas nossas condições biológicas.
Por isso, as variedades transgênicas que não foram desenvolvidas em nossas condições entram em pequenas quantidades, em saquinhos com dupla proteção que são transportadas em carros especiais até as Unidades de Pesquisa, onde uma equipe especializada cuida delas. Se se importar um quilo de semente e forem usadas 900 gramas, é preciso provar que se queimaram as outras 100 gramas. Há todo um controle para a entrada de produtos transgênicos para serem avaliados nas condições de ambiente brasileiro, para depois gerar informações sobre as suas reações aqui, e poderem ser transformados em produto comercial, aprovado pela CTNBio. Só depois de autorizado para se cultivar no Brasil — essas autorizações dependem de testes de campo — é que pode ser produzido em larga escala e também ser importado para ser vendido no Brasil.
Este ano o Brasil viu num determinado momento, na imprensa, o desejo de importação de 1 milhão de toneladas de milho transgênico dos Estados Unidos. Não tinha sido testado no Brasil, submetido às nossas condições ambientais. O pedido de importação foi feito com o seguinte argumento: não vai ser plantado no Brasil, vai ser destruído e transformado em ração — portanto, não precisa ser testado aqui. A aprovação foi feita com base nesse argumento, mas a situação é paradoxal. Havia duas variedades nunca cultivadas no Brasil, uma delas é um milho modificado geneticamente para produzir etanol, que nos Estados Unidos não é direcionado à cadeia de alimentos. O processo da empresa dizia que existiam cuidados especiais para que esse produto não fosse destinado à cadeia de alimento, mas destinado a caldeiras para ser transformado em álcool, e no Brasil foi importado como ração. E sobre outro milho, desenvolvido para tolerância à seca nos Estados Unidos, a empresa argumentava que poderia oferecer um rendimento de até 6% de vantagem em relação ao milho tradicional. Se a seca não fosse muito forte ou não acontecesse fora do período que eles imaginavam, numa determinada fase do ciclo.
Perceba-se: milhões de dólares investidos numa tecnologia que aparentemente não funciona bem nos Estados Unidos, mas é vendida como de tolerância à seca. O risco que nós imaginamos é: um caminhão sai do porto carregado de milho; caem grãos na estrada; esses grãos germinam, geram pólen, que vai contaminar outras variedades de milho. Não sabemos que aplicação vai ter porque nós nunca testamos esse tipo de transgênico no Brasil.
Karen Friedrich, pesquisadora e representante do Ministério de Desenvolvimento Agrário na CTNBio, aponta que faltam estudos de campo, faltam estudos com a saúde, faltam os estudos de Sanidade Animal. Mesmo com todos esses argumentos ela teve seu voto e parecer negados, inclusive com voto do próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O representante titular do MDA, nomeado recentemente, votou por escrito contra o parecer, numa atitude que nos parece incompreensível, à medida que os dois representavam o mesmo ministério e o primeiro parecerista, a doutora Karen, apresentou um documento substanciado por escrito. O segundo representante não tinha sequer lido o processo, votou contra um documento preparado em defesa dos interesses defendidos pelo MDA. Fez isso supostamente atendendo a pressões ou atendendo à opinião dos demais membros da CTNBio que votaram pela aprovação do milho, desconsiderando um argumento muito forte no interesse da agricultura familiar, da saúde da população. Pela primeira vez, tivemos uma possibilidade de entrada no Brasil de uma quantidade enorme de milho que nunca foi estudado no país e que possivelmente vai ser cultivado de uma maneira inadequada, inconveniente. Acreditamos que isso é muito perigoso, que essa situação permite dúvidas a respeito da necessidade da CTNBio, dado que este é um caso paradoxal.
É possível que, com todas essas contradições e esse avanço desenfreado do agronegócio, o Brasil volte a fazer parte do Mapa da Fome da ONU?
O grande salto que o Brasil deu na qualidade de vida da população e permitiu ao país sair do Mapa da Fome deveu-se a iniciativas no campo do saneamento básico, do empoderamento da Agricultura Familiar e Camponesa, do fortalecimento do poder de decisão das famílias. O Bolsa Família, com recursos insignificantes do ponto de vista do que é transferido, gerou mesmo assim relações entre as linhas de produção. programas como os Quintais Domésticos, Duas Águas e Um Quintal, Cisternas e outros destinados ao fortalecimento dos pequenos no campo e nas cidades. Isso transformou a condição de um país que estava imerso no Mapa da Fome para o que passamos a ser, um país fora do Mapa da Fome. Com a extinção do PAA, com a restrição de recursos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que também é um programa de compra de agricultores familiares, com o desestímulo aos Quintais Domésticos, à Extensão Rural, à Assistência Técnica, às práticas de Agroecologia, imaginamos que esse retrocesso é uma realidade que se avizinha.
Perceba: a fome no país é um problema essencialmente rural, embora a gente veja miséria na cidade, ela era um problema eminentemente rural e não urbano. Havia sido superado com esses programas de aquisição da agricultura familiar e com a aposentadoria rural. Seu cancelamento é uma ameaça.
O que vem sendo apresentado como alternativa a isso é o desenvolvimento do que chamam de Plantas Biofortificadas, que são enriquecidas com nutrientes como o Ferro e Zinco. O discurso é que essas plantas “vão ser melhores” que as outras e resolverão os problemas de fome oculta com base num nutriente, num mineral. Nós imaginamos que essa é uma maneira enganosa de tratar o problema, que o Mapa da Fome é superado com orientações do tipo das que vinham sendo conduzidos no Brasil e são preconizadas pelo Conselho de Segurança Nacional Alimentar e Nutricional (Consea), e que propõem uma alimentação diversificada — lembrando que isso decorre do fortalecimento do papel da mulher na família, desses Quintais Domésticos e do estabelecimento de canais curtos de comercialização, envolvendo pequenas férias, aquisições do governo federal através do PAA para vários consumidores e através do PNAE para a merenda escolar.
Por Comunicação MPA
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