1 de fevereiro de 2024
Marcos Antonio Corbari
Brasil de Fato | Porto Alegre (RS)
As atividades da Campanha contra a Violência no Campo em 2024 já iniciaram e desde a última semana têm um novo layout visual. Trata-se do cartaz oficial que, pela primeira vez, traz o rosto de mártires da luta pela terra.
A peça, desenvolvida pela jornalista Julia Barbosa, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi apresentada em uma transmissão online na última sexta-feira (26) e é estampada com os rostos de lideranças que morreram na luta pelo direito à terra.
“Queremos fazer memória a estes mártires, de modo especial hoje, data que marca os 3 anos do assassinato de Fernando dos Santos, em 26 de janeiro de 2021, um trabalhador rural Sem Terra, sobrevivente e testemunha do assassinato de 10 trabalhadores por policiais civis e militares no estado do Pará, no conflito que ficou conhecido como Massacre de Pau D´Arco, em 2017”, anunciou Jardel Neves Lopes, secretário executivo da campanha, logo na abertura da transmissão.
“No cartaz também trazemos a memória de Edvaldo Pereira, liderança da Comunidade Quilombola Jacarezinho, no município de São João do Soter, no Maranhão. Após muitas ameaças dos fazendeiros grileiros, Edvaldo foi assassinado em 29 de abril de 2022”, anunciou Letícia Chimini, da coordenação da campanha pelo Movimento dos Pequenos e Pequenas Agricultoras (MPA) e que também integra a equipe técnica federal do Programa de Proteção aos Defensores/as de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH).
“O cartaz também traz a memória emblemática da líder religiosa ialorixá e quilombola do quilombo Pitanga dos Palmares na Bahia, Mãe Bernadete Pacífico, que já estava inserida no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos. Mãe Bernadete foi brutalmente assassinada no dia 17 de agosto de 2023”, acrescentou Lopes.
Citando as palavras de ordem que firmam o compromisso com a memória e o legado dos mártires assassinados na luta – “Aos nossos mortos, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta” – Chimini explicou que a Campanha contra a Violência no Campo é uma forma de luta em defesa da terra, do direito à terra e dos modos de vida na terra, de modo especial a defesa da vida das lutadoras e lutadores, do campo, das águas e das florestas.
A campanha contra a violência no campo é organizada por entidades da sociedade civil, movimentos populares e pastorais sociais desde 2022, e tem o apoio de mais de 60 organizações sociais parceiras.
Os objetivos são: Enfrentar a violência com ações e políticas de proteção às comunidades e aos povos do campo, das águas e das florestas; Dialogar e sensibilizar a opinião pública nacional e internacional; Denunciar e trazer visibilidade para os casos de violência; Fortalecer iniciativas e campanhas existentes relacionadas ao tema; Anunciar a proposta de reforma agrária popular e demarcação de territórios; Articular redes de apoio para atenção e assistência às vítimas.
A presença dos três mártires da luta não esteve representada apenas na imagem do cartaz. A continuidade de suas lutas, que se empreende a partir dos companheiros e companheiras de causa fez lembrar as palavras do saudoso Dom Pedro Casaldáliga, quando afirmou que quando o sangue dos mártires é derramado na terra, ele se torna semente.
Jamyla Carvalho, advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara (PA) falou sobre o caso de Fernando dos Santos. Antônio Francisco, do Quilombo Jacarezinho, e Maria da Cruz, viúva, fizeram memória ao caso de Edvaldo Pereira. Sandra Andrade, coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) falou sobre o caso de Mãe Bernadete Pacífico.
Jamyla Carvalho relatou o caso de Fernando, fazendo memória a mártir que sobreviveu ao massacre de Pau D’Arco em 2017 e, sendo testemunha chave no processo, sofreu ameaças e perseguições até ser também assassinado há exatos três anos. Conforme relatou, o assassino foi identificado e preso, aguardando na cadeia o Tribunal do Júri, mas as perguntas que indagam quem mandou matar e porque continuam sem respostas.
“Quem puxa o gatilho é identificado, mas quem manda não é. As investigações são colocadas em sigilo, como conveniência para as autoridades públicas e forma de proteger os reais culpados, além de impedir que as entidades de direitos humanos tenham acesso aos autos e possam realizar possíveis cobranças”, aponta.
Relatou ainda a sensação de impunidade que impera no território, uma vez que mesmo “quando esporadicamente os mandantes e executores são condenados, muitas vezes eles não chegam a ser presos, só no Pará existem 39 mandatos de prisão emitidos contra executores e mandantes que não foram cumpridos”. A advogada ainda apontou outro viés que precisa ser observado, pois os poucos envolvidos em crimes contra lutadores do povo, quando condenados e presos, muitas vezes têm fugas do sistema prisional facilitadas.
“A impunidade que se faz presente é uma prova de que infelizmente o crime compensa. É pensada para validar esses atos de violência no campo, banaliza os assassinatos de defensores e defensoras e causa medo naqueles que seguem atuando”, aponta.
“Hoje completam-se 3 anos do assassinato de Fernando, sem a presença, sem justiça, sem respostas, mas apesar disso estamos aqui mais uma vez tornando público este e outros casos como uma forma de denúncia e de clamor por justiça”, completou, citando Dom Pedro Casaldáliga ao afirmar que “O sangue dos mártires não nos deixa em paz”.
Para fazer memória ao líder quilombola do Jacarezinho, assassinado por grileiros no Maranhão, em 2022, participaram da transmissão o companheiro de luta Antônio Francisco de Moura e a viúva Maria da Cruz.
“Nosso companheiro foi assassinado de uma forma brutal”, afirma Moura. O problema que conduziu a morte de Edvaldo é uma situação que se reproduz em muitos locais pelo Brasil afora: a grilagem de terra, a pressão daqueles que se dizem proprietários de um território que é historicamente ocupado por povos tradicionais, mas que fazendeiros tentam se apossar na base da força e da violência.
“Nossa gente está aqui há mais de 200 anos, nós somos descendentes dos primeiros que chegaram aqui”, conta o quilombola. “Desde que se iniciou a busca pelos direitos do território iniciou a perseguição a Edvaldo. Quando começaram as ameaças ele buscou a proteção da Justiça, mas a verdade é que a Justiça faz o papel do fazendeiro e não dá proteção ao trabalhador”, afirmou.
“Mataram ele para causar medo, para que a gente desistisse, acharam que matando Edvaldo era o caminho para se apropriarem de tudo, mas a gente continua de pé, a gente continua lutando, moramos lá, defendemos a natureza, protegemos o meio ambiente, precisamos dessa terra para viver”, completou.
Muito emocionada, Maria da Cruz explicou que antes dele morrer Edvaldo fez o pedido de regularização do território, inicialmente o pedido foi negado, depois saiu uma decisão da Justiça a favor dos quilombolas, porém quase um ano depois nada foi feito. “A gente sempre corre atrás de justiça, mas não temos nenhuma resposta. A gente quer que quem fez isso com ele e quem mandou fazer sejam punidos, queremos nossa terra livre, para viver sossegados.”
A memória que Maria tem do marido é a certeza da luta: “Ele sempre dizia que se tivesse que morrer lutando pela terra, ele ia morrer, não ia desistir”. Ela cita que as ameaças continuam, que a situação é difícil, que não querem que isso volte a acontecer com qualquer companheiro ou companheira, mas que desistir não é algo que esteja em discussão. “Tiraram ele da gente achando que com os outros eles resolveriam da maneira como queriam. Mas não foi assim. A gente continua, a luta dele não vai ficar em vão”, garante.
Pela voz de Sandra Andrade, coordenadora da Conaq, se fez memória ao caso de Mãe Bernadete Pacífico, assassinada brutalmente no estado da Bahia, aos 75 anos de idade, em 2023, mesmo estando inserida no Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos.
Esse foi o segundo caso de violência dentro da mesma família, uma vez que um filho seu já havia sido assassinado. “Mãe Bernardete foi assassinada pela luta pelo seu território e pela luta por justiça por seu filho”, denuncia Sandra. Até agora não se tem resultado de investigações que levem à justiça quem matou e quem mandou matar.
“Se fosse para um figurão já teriam encontrado o assassino e o mandante no outro dia, mas para nós quilombolas, trabalhadores e camponeses não, nós não somos considerados pessoas de direito, é só matar, enterrar e jogar pra lá”, desabafou. Sandra acusou “as falhas do sistema de proteção não protege” e a parcialidade da Justiça que é seletiva quanto aos crimes que serão de fato investigados e solucionados.
Para a dirigente, o caso de Mãe Bernardete é simbólico, mas é preciso avançar: “Para cessar a matança no campo, nas águas e nas florestas é preciso ter vontade política. As leis existem, mas a vontade política não”. Questiona ainda, além da inoperância do Estado, a voracidade do capital: “Isso acontece pelo egoísmo desenfreado daqueles que muito tem e ainda querem muito mais, querem tirar o pouco que nós pequenos temos”. A fórmula para a luta alcançar resultados é uma só: união. “Nós, dos diferentes movimentos, temos que nos dar as mãos e exigir justiça, fazer que cesse a violência no campo.”
Sandra registrou que, em média, ao menos uma liderança popular morre todos os meses. “Eles não têm receio de matar, não se importam porque não tem punição, então cabe a nós intensificar a denúncia e a luta para que isso mude, para que possamos viver em paz”, aponta.
“Se fizer a reforma agrária, titular as comunidades quilombolas e demarcar as terras indígenas a paz no campo virá”, concluiu.
Após os testemunhos e a memória aos três mártires, Carlos Lima encerrou em nome da Campanha contra a Violência no Campo, exigindo mudanças na postura do Estado que até aqui tem servido aos interesses dos agressores e não defendido as vítimas, garantindo a impunidade e contribuído para as ações de desqualificação das vítimas.
“O mesmo sistema que desmata, que joga o veneno, que polui, é o sistema que a impunidade faz parte. Nós entendemos a impunidade como o mal que deve ser combatido, o sistema entende a impunidade como mecanismo de proteção aos seus.”
Para Lima, esse posicionamento do Estado coloca em xeque o modelo de sociedade que está posto, “onde a violência faz parte desde a chegada das caravelas”. Na sua interpretação a violência é pensada a partir do sistema no sentido de tirar da frente quem possa atrapalhar seus projetos. “Pessoas, comunidades, florestas não têm o menor sentido de existência se o desejo do capital não é considerado.”
Trouxe a informação de que os dados que ainda estão sendo sistematizados indicam que o número de mortes no campo desde que a CPT começou seus registros já ultrapassa mil pessoas. “Por isso nós lançamos a Campanha contra a Violência no Campo, precisamos novamente fazer um mutirão para dizer para a sociedade que nós não concordamos com esse procedimento de matar aqueles que lutam, aqueles que estão no território. Precisamos buscar o diálogo para que a sociedade compreenda que matar não pode ser uma ação naturalizada. Criamos a campanha no sentido de fortalecer, de criar um mutirão para defender as comunidades, os defensores de direitos humanos, as lideranças e os coletivos.”
Lembrou o caso recente do assassinato de Nega Pataxó, na Bahia, onde os pistoleiros a mando dos fazendeiros tiveram o suporte da própria polícia para praticar o crime de assassinato.
“O Estado precisa agir ou o campo brasileiro vai se tornar um campo de guerra mais do que já está. Isso é um risco gravíssimo que a democracia e a sociedade correm. O Estado democrático de direito precisa se levantar, ele não pode continuar sendo agredido.” Lima explica ainda que o Estado tem a obrigação de ficar vigilante e atento para garantir a vida das pessoas, a vida das comunidades e a vida da natureza, do contrário nada vai ser modificado naquilo que é a estrutura agrária brasileira.
“Nós temos a obrigação de continuar fazendo as denúncias, esperamos que esse cartaz possa percorrer o Brasil todo e possa alertar a sociedade sobre os crimes recentes – em 2022 foram 47 assassinatos, em 2023 foram 31 assassinatos – e que isso não pode continuar, que isso fragiliza a democracia, fragiliza o tipo de sociedade que a gente quer constituir, que é fraterna e justa, que garanta acesso a terra e democratize o uso da terra”, afirmou.
Sobre os três mártires que ilustram o cartaz e sua representatividade simbólica, Lima afirma que “o Estado brasileiro não reagiu quando as organizações denunciaram que essas pessoas estavam sendo ameaçadas, o Estado brasileiro permitiu que essas pessoas fossem assassinadas”. Segundo ele, “os crimes estavam anunciados e o Estado esteve sempre um passo atrás e o Estado precisa estar um passo a frente para impedir esse tipo de violência”.
As organizações que compõem a Campanha contra a Violência no Campo escolheram a data em que se completam três anos do martírio do Fernando como uma denúncia pública da situação de violência, buscando que esses cartazes cheguem até a sociedade, nas comunidades, nas organizações, nas igrejas, nos espaços de formação e mobilização.
Embora ainda não tenha sido realizada a assembleia das organizações que estão mobilizadas na Campanha, a ideia é de que em 2024 as ações estejam mais presentes nos territórios.
“Apresentamos à Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo as áreas prioritárias que essa comissão tem que visitar e proteger, no sentido de que as mortes sejam evitadas, e devemos acompanhar também essas missões” afirma Lima. “A ideia é o enraizamento da campanha, trabalhar isso mais próximo possível das comunidades.”
Mais informações acerca da Campanha contra a Violência no Campo e solicitações do cartaz e de outros materiais de informação e mobilização podem ser feitas através do email contraviolencianocampo@gmail.com
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