20 de julho de 2023
Marcos Antonio Corbari e Mateus Além
Muitos segmentos aprenderam a partir dos dias mais difíceis nos últimos anos a lógica do “ninguém solta a mão de ninguém”. Os camponeses e camponesas adotam essa prática desde sempre. Na hora de defender a classe, ninguém solta a mão de ninguém. Na hora de avançar, seguem de mãos dadas. Na hora de crescer, crescem de mãos dadas. Há quem os chame de pequenos. Mas como diz a canção do artista popular Antonio Gringo, são na verdade “pequenos gigantes”.
Isso ficou claro durante a Festa Camponesa da Via Campesina, realizada no último final de semana em Rondônia pelo coletivo que aglutinou Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem-Terra (MST), Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores e Pequenas Agricultoras (MPA), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Instituto Padre Ezequiel Ramim (IPER).
Para quem prestigiou as atividades, foram três dias de debates, seminários, rodas de conversa, oficinas, feira, mística, apresentações culturais e – claro – muita comida boa e saudável partilhada na cidade de Jaru (RO). Para o coletivo de cinco movimentos abrigados sob a bandeira da Via Campesina, responsáveis pela organização, porém, foi um trabalho conjunto que se prolongou por semanas até que se ouvisse anunciar a primeira palavra da mística de abertura, realizada na manhã de sexta-feira (14).
Quase cinco anos – dentro dos quais um governo genocida e uma pandemia terrível – separavam a realização da edição anterior do evento para a atual. Não por acaso resistência e celebração foram as palavras mais citadas.
Os números alcançados são robustos e comprovam a força do campesinato e sua capacidade de organização e mobilização popular, inscrevendo a Festa Camponesa da Via Campesina/Rondônia como um evento referencial para o país. A atividade movimentou mais de 8 mil pessoas ao longo dos três dias de atividades, estima-se que tenham sido comercializadas 7 toneladas de alimentos e consumidas outras 5 toneladas durante as atividades, com especial destaque ao Café Camponês que encerrou a celebração no domingo (16).
A feira da semente crioula registrou a partilha de 340 tipos de sementes, ramas, brotos e mudas. O espaço destinado ao artesanato contou com mais de 1 mil peças expostas ou comercializadas, representando 25 diferentes segmentos de produção. Na feira agroecológica foram catalogados 60 diferentes produtos originários do campesinato, produzidos sem a utilização de venenos ou de qualquer tipo de insumo químico.
“Uma alegria essa Festa Camponesa, é uma importante demonstração de resistência do povo dos campos, das águas e das florestas”, apontou Kelli Mafort, da Secretaria Nacional de Diálogos Sociais e Articulação de Políticas Públicas, da Secretaria-Geral da República, que marcou presença representando o governo federal. “A gente pode ver a diversidade de pessoas, de culturas e de sementes, isso mostra a resiliência do povo da agricultura familiar, da classe camponesa, dos assentados da reforma agrária, enfim de todos os movimentos que estão aqui presentes”, acrescentou.
Mafort afirmou também que “infelizmente nós ainda não temos no Brasil uma proteção em relação aos camponeses e camponesas e isso é muito grave.” Para ela é preciso ter claro que a produção das áreas camponesas é fundamental para enfrentar as questões da fome, da insegurança e da falta de soberania alimentar e nutricional.
“Os camponeses e camponesas tem um modo de vida próprio e precisamos prestar muita atenção nisso, porque quando as áreas de produção camponesa vão sendo cercadas pelo agronegócio, pela produção em escala, isso tudo vai acarretando que aconteça mudança nestes modos de vida e hoje inclusive quem vive na cidade depende dos modos de vida camponeses”, complementou.
Para ela, se existe de fato a intenção de fazer frente às mudanças climáticas e à crise ambiental, é muito importante que se apoie e preserve o modo de vida camponês, pois são justamente os povos dos campos, das águas e das florestas os principais aliados de toda ação de preservação que vá se propor.
O camponês e pesquisador Valter Israel da Silva, dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no PR, é quem explica que o campesinato “é uma classe social que se diferencia pelo seu modo de ser, de viver e de produzir, com centralidade na família e na relação de coprodução com a natureza”. O conceito se aplica com precisão ao que foi possível testemunhar e experimentar nos três dias da Festa Camponesa.
As bandeiras, sejam elas vermelhas, verdes, brancas ou amarelas sustentadas com os símbolos de luta tiveram seu espaço de exibição, mas é preciso apontar que a produção é uma bandeira à parte para cada movimento e para a classe que coletivamente o sustenta. A agroecologia se tornou uma bandeira comum, central, norteadora das ações de produção e das ações de luta social.
Zonália Santos, da direção do MST no estado, destacou a capacidade de produção dos camponeses e camponesas no território, que mobilizados para o evento foram ativos a ponto de superar aquilo que lhes era solicitado para a construção da Festa. “Quando a gente chegava nos assentamentos ou nas comunidades de base e pedíamos a mobilização para a preparação de uma certa quantidade de alimento puro, quando era entregue chegava sempre mais do que havia sido pedido.”
Fazendo analogia à passagem bíblica da multiplicação dos pães e dos peixes, os camponeses e camponesas de Rondonia compartilharam alimentos agroecológicos em tal volume que foi possível suprir as necessidades dos milhares de participantes da Festa. E ainda ficou um excedente que foi compartilhado com a comunidade local que acolheu o evento.
Vandeir Leite, dirigente do MPA em RO, afirma que a festa cumpriu o objetivo de criar diálogo entre o campo e a cidade, estabelecendo elos entre a classe trabalhadora a partir do simbolismo da mesa que se estende por aquele que produz em direção àquele que precisa consumir. “As pessoas que vieram até a festa saíram satisfeitas, tanto aqueles que vieram para comercializar a sua produção, quanto aqueles que vieram para comprar”, afirmou o dirigente, destacando ainda que mesmo aqueles que chegavam sem dinheiro para comprar não saiam de mãos ou de barrigas vazias, pois a partilha foi uma prática empreendida do começo ao fim da atividade.
Outro destaque apontado foi a forte participação do povo nas plenárias, oficinas e seminários, “muito maior do que era a nossa expectativa, nosso povo acompanhou de forma atenta e participativa as atividades desenvolvidas pelos convidados que vieram de organizações aliadas, assim como de espaços acadêmicos como a universidade e o instituto federal”, completou.
Se na mesa da partilha das sementes era possível notar toda riqueza da diversidade expressa através da soberania genética mantida e defendia pelo campesinato, outro tipo de “semente” teve forte representação nas ações desenvolvidas durante os três dias, estas no campo simbólico: as cores, as imagens, as sonoridades, as palavras, as rimas, as cantorias, e todas as demais expressões artísticas que se irmanaram nos espaços de partilha.
“Apresentar a cultura da nossa forma, camponesa, expressando a identidade cultural do território, como uma forma de exposição do jeito de ser e de se expressar de um povo”, colocou o militante da Via Campesina José Fernandes da Silva.
“No nosso caso aqui é o jeito campesino que se sobressai, dos camponeses e camponesas de Rondônia, mas também toda diversidade de expressões que chegam até nós através dos amigos e amigas que vem ao território e participam desse momento de celebração junto conosco”, explica Fernandes.
Cada espaço da Festa Camponesa se transforma em palco para a grande diversidade de expressões artísticas e culturais que acontecem ali. Desde o palco central onde se apresentaram artistas de renome nacional como Pereira da Viola e Zé Pinto, passando pelos festejos conduzidos pelos artistas locais e regionais, até os espaços de trabalho onde entre uma atividade e outra, era comum ouvir a cantoria de quem mexia o alimento numa panela ou as rimas improvisadas por aqueles e aquelas que trabalhavam alegremente ao construir a infraestrutura que acolheu os participantes.
“O espaço de expressão cultural é composto por diferentes fatores, todos a seu modo igualmente importantes, e dessa forma coletivamente se fundamenta a cultura também como uma expressão de luta dos segmentos camponeses organizados na Via Campesina”, apontou Fernandes.
Via Campesina reaglutina forças no território amazônico
Segundo Océlio Muniz, dirigente do MAB, foi alcançado o objetivo de promover a exposição da produção camponesa, a troca de sementes e o processo de estudo propostos pelo coletivo de movimentos que organizaram a Festa Camponesa. “Pudemos levar nossos produtos, participar da troca de sementes, foi um momento muito significativo e representou uma possibilidade de reaglutinar as forças dos povos do campo, das águas e das florestas aqui em Rondônia.”
Para o representante dos povos ribeirinhos, a forma como o evento foi construído e o resultado positivo de sua realização demonstra a capacidade organizativa da Via Campesina no estado, “isso fortaleceu nosso processo de unidade em torno de um projeto comum”. Ele, que acompanhou um coletivo de 80 famílias vinculadas ao MAB, afirma que a previsão inicial foi superada, garantindo espaço para a produção local e afirmação da cultura, da produção e da culinária regional, cabocla e ribeirinha.
“É até difícil encontrar as palavras certas para expressar um olhar mais aproximado daquilo que vivenciamos, que debatemos e que sentimos nestes três dias”, expressa Maria Petronila, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Relata que não foram poucos os momentos que viu sorrisos verdadeiros se abrindo, assim como lágrimas de emoção escorrendo.
“Olhares do campo, olhares das florestas, olhares das águas, mas também olhares das cidades, das periferias e do meio acadêmico”, enumera. A agente de pastoral destacou também a oportunidade de “ver e ouvir as palavras de ordem, as poesias, as músicas que despertaram ritmos e leveza”.
“Depois de quatro anos de duras labutas e árduos chicotes, a agricultura camponesa precisava viver tudo isso, reacender a mística do esperançar, da utopia, da rebeldia e jogar por terra toda tirania”, afirmou Petronila. “Nós precisávamos nos reencontrar e celebrar com muito mais força a resistência e a luta na defesa da democracia e da produção limpa e saudável, fazendo contraponto às injustiças sociais no campo e na cidade, retomar o caminho juntos, juntas e juntes rumo a terra de sem males, rumo ao bem viver aqui e agora”, concluiu.
“A Festa Camponesa é uma síntese do que nós precisamos no campo e do que o Brasil precisa do campo, temos aqui pessoas de todo estado de Rondônia, uma grande variedade de sementes, uma grande variedade de produção e uma grande variedade de gentes que é o que é mais importante para o nosso projeto camponês, para o nosso projeto de sociedade”, afirmou Odair Souza. “Essa festa não começou hoje, ela começou lá atrás com o pessoal plantando, cuidando da terra, cultivando, contando com a ajuda da natureza para colher as sementes e os produtos para trazer aqui”, acrescentou o camponês, destacando que os três dias de atividades “sintetizam o que nós começamos há um ano, produzido na alma do povo para trazer aqui para a festa”.
Isabel Ramalho, dirigente do MPA, resume o sucesso da Festa Camponesa afirmando que ali esteve presente “tudo o que você pensar de bom, a começar pelo povo bonito de Rondônia, essa Rondônia que é bonita porque é formada por gente de todos os estados desse nosso país”.
A diversidade de rostos que se fizeram presentes e a multiplicidade de mãos que se somaram para trabalhar ou que se uniram para celebrar também foi saudada por Izabel. “Aqui estiveram para além dos camponeses e camponesas e seus segmentos de homens, mulheres e juventude, os companheiros e companheiras indígenas, quilombolas, ribeirinhos, visitantes que vieram da Bolívia, que vieram do estado vizinho do Amazonas e até de outros locais mais distantes”, apontou.
“É uma festa bastante diferenciada, tivemos ainda uma grande gama de companheiros e companheiras da cidade que tem nos ajudados nestes últimos anos em que a gente vem se preparando para estar aqui e trazendo aqui nesse espaço toda simbologia da nossa resistência”, explicou a militante camponesa. “Quando a gente fala de resistência estamos lembrando do período recente de desmonte das políticas públicas, de violações que nos foram impostas, de pandemia”, relembrou.
“Nós, os que sobrevivemos à pandemia, o povo que conseguiu resistir, hoje estamos aqui para celebrar a vida e a luta”, completou. Com um sorriso no rosto a dirigente deixa firmado o compromisso de começar de imediato a preparação da próxima Festa Camponesa. A oitava edição, garante Isabel, já está sendo “semeada”.
Em meio aos sabores de diversidade expressos nas diferentes opções da culinária tradicional, um outro sabor se destacou, “despertando um grande desejo, uma fome de democracia e de esperançar, uma fome e uma sede de justiça na nossa querida Amazônia”, palavras de Maria Petronila. “O bem prevalecerá”, garantiu a agente da CPT, citando ao concluir sua avaliação da Festa Camponesa um antigo e conhecido provérbio africano: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares aparentemente pouco importantes, consegue alcançar coisas extraordinárias”.
Ninguém soltou a mão de ninguém nos dias mais difíceis e perigosos. Seguem de mãos dadas nos dias atuais, que seguem sendo difíceis e perigosos para a classe camponesa, mas nos quais já se consegue novamente respirar ares de esperança. A luta do campesinato segue sendo travada, então a expectativa é de que as mãos sigam sem se soltar, mesmo quando os campos forem mais floridos e a vida mais justa, para em unidade colher os frutos semeados à margem da estrada percorrida no caminho rumo ao horizonte da utopia.
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