1 de junho de 2018
“Rio de lama, Doce, agora amargo. Vem de Mariana, desceu rejeito, não tem pra ninguém. E varre cama, e sonho, tudo pro além. E diga Vale, quanto vale a vida de alguém?”, cantou Adelide Cunha, na Plenária das Mulheres, realizada nesta quinta-feira (31). “Mas somos a resistência, e isso até a última gota do rio”, completou. Embaladas por essa e outras músicas, cerca de mil mulheres que fazem a agroecologia em todas as regiões do país, numa diversidade de práticas, visões e povos, entraram carregando tecidos azuis representando seus “Rios da Vida”. Neles, imagens e memórias colhidas nas etapas preparatórias ao IV Encontro Nacional de Agroecologia (IV ENA).
A mística, que emocionou ao honrar os principais rios das regiões brasileiras – Amazonas, Araguaia, São Francisco, Doce e Paraná -, carregou as memórias de mulheres que fizeram parte da construção da agroecologia nas últimas décadas. Com o símbolo da Orixá Oxum, mãe das águas doces nas religiões de matriz africana, as presentes foram convidadas a “curar” simbolicamente o Rio Doce, impactado após o crime ambiental cometido pela mineradora Samarco, da Vale e da BHP Billiton, em Mariana (MG). A ideia de que não há nada que a água não cure, traz energia para as mulheres continuarem suas lutas quando retornarem aos seus territórios.
“Resgatamos nesse processo as histórias das mulheres na agroecologia. Estamos agora aqui, no IV ENA, fazendo o grande encontro das águas”, explicou Beth Cardoso, do Grupo de Trabalho (GT) de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). “É como sempre dizemos. As mulheres são como as águas, quanto mais se juntam, mais força elas têm. Temos resistido contra o agronegócio e o capital como a mesma força das águas”, completa Conceição Dantas, do Centro Feminista, que mediou a plenária ao lado de Beth. A atividade juntou ribeirinhas, benzedeiras, camponesas, indígenas, agricultoras urbanas, pescadoras artesanais e quilombolas, dentre outras, para fortalecer participação das mulheres nos outros espaços de debate no evento. Elas correspondem a 50% dos participantes do Encontro e são 90% da comissão organizadora do IV ENA.
Maria Emília Pacheco, do Núcleo Executivo da ANA, afirmou que o movimento agroecológico traz a capacidade de mobilizar a sociedade diante da conjuntura. “Estamos construindo outras alternativas no país. Nosso sistema alimentar depende do poder da agricultura familiar, camponesa, indígena, quilombola para alimentar o Brasil com comida de verdade. Esse momento chama atenção para a questão do abastecimento alimentar. São importantes os curtos circuitos de comercialização e o reforço da agroecologia”, disse, criticando o modelo de distribuição que transporta alimentos por longas distâncias. Ela defende a implementação de uma Política Nacional de Abastecimento que inclua os princípios da agroecologia. “Estamos fazendo a defesa da democracia. As mulheres estão aqui para reafirmar que a agroecologia se faz com a construção de valores que signifiquem a emancipação de mulheres. Estamos aqui para dizer que as mulheres constroem a história da agroecologia. Esse legado é de ontem e é de agora”, apontou ela, que também integra a FASE.
Fúria feminista contra as opressões
Muitos depoimentos reforçaram o lema “sem feminismo não há agroecologia”, o que inclui lutas permanentes contra o patriarcado, contra o genocídio dos povos, o racismo e todas as formas de violência contra as mulheres. “Precisamos ampliar nossa voz. E vencer o desafio interno que é a violência em nosso lar. Se há violência, se há lágrima e sangue de mulher, não há agroecologia”, reforçou Lucineia Freitas, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), ressaltou que “as mulheres estão construindo outro jeito de amar e se relacionar. Agroecologia não é só prática, vai além do plantio de alimentos. Não podemos separar prática agroecológica do jeito como o trabalho se organiza. Agroecologia é coletivo, movimento. Vamos radicalizar a democracia construindo a agroecologia popular. Quando a gente fala de tantas lutas que fazemos, todas elas nesses rios, a gente recupera a nossa memória, o nosso corpo e o nosso território. A gente decreta esse ENA como um território livre da violência contra as mulheres, livre de opressões e desigualdades”, expôs.
O enfrentamento ao golpe vivenciado após o impedimento de Dilma Rousseff, primeira mulher a presidir o país, também recebeu atenção. A afirmação de que se tratou de um golpe machista recebeu aplausos. Miriam também falou sobre o aprofundamento do conservadorismo no Brasil e defendeu a importância dos diversos movimentos de mulheres. “Eles dizem que a ideologia de gênero é um jeito de destruir a família. Não estamos fazendo isso. Não somos só mães, só úteros, somos pessoas inteiras. Temos desejos, temos um projeto de sociedade e nós fazemos ele acontecer. Estamos, na verdade, construindo outro jeito de amar e de se relacionar”, afirmou.
As mulheres pontuaram que é preciso desviar das armadilhas apresentadas pelo patriarcado. Uma delas foi apontada por Miriam: “mulheres postas em caixinhas”. “Dizem pra gente: ‘Fiquem com esse espaço aqui, nesse canto. Está bom você ficar nesse lugar quieta’. E aí, por vezes, a gente se pega em competição até mesmo com outras mulheres para ver quem cabe nessa caixinha. E estamos falando aqui no ENA que não queremos caixinha alguma. Queremos todos os espaços. Contra o racismo, contra o patriarcado e contra o capital, nós estamos em fúria feminista”, declarou.
Mulheres contra o agronegócio
Noemi Krefta, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), lembrou que a chamada revolução verde chegou, nos anos 1970, apenas para beneficiar o agronegócio, e não quem planta comida de verdade. “Nossos quintais foram se reduzindo cada vez mais, sendo invadidos pela soja e pelo milho. Perdemos espaços de verduras, árvores frutíferas e plantas medicinais. A região Sul foi sempre usada como cobaia de tudo o quanto é porcaria. Por lá começam a entrar os venenos, os transgênicos para depois ir para o resto do país”, relatou ela, que é natural de Santa Catarina. Nesse sentido, lembrou que as mulheres foram fundamentais para enfrentar esse modelo que gera fome. “Não há maior violência do que não saber o que pôr na mesa para alimentar sua família. É nesse sentido que as mulheres discutem como enfrentar esse modelo”, disse Noemi, com a voz embargada pela emoção.
A luta pela diversidade alimentar também ganhou destaque na plenária. O papel das mulheres na preservação das sementes foi valorizado. “As sementes crioulas são patrimônio dos povos, não são patrimônio da humanidade. O dono da Monsanto também faz parte da humanidade. Mas ele não deve ter o direito de se apropriar das nossas sementes”, diferenciou Noemi. “Queremos que a cidade também tenha acesso a nossa alimentação, e não a transgênica, cheia de veneno, que não alimenta de verdade. Por isso, construímos o feminismo e agroecologia contra o capitalismo e o patriarcado”, conclui ela.
Por Gilka Resende e Luciana Rios
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