7 de novembro de 2018
Me descobri negra aos 67 anos… Essa frase é a chamada de uma matéria do Portal Geledés, publicada em 24/10/2018, tal frase me provocou profundo impacto, impacto não maior do que o relato de dona Edileuza Gomes Costa.
A senhora de 67 anos, relata que por mais de 6 décadas, viveu como que com uma névoa sobre os olhos. O que a fez perceber-se e reconhecer-se como uma mulher negra foi um exercício de escuta dialógica com o filho sobre identidade, a conversa a fez notar e aceitar os notar os traços do rosto, o tom da pele e o jeito do cabelo. Sinais de uma ancestralidade que ficou encoberta por mais de seis décadas. Após o diálogo veio o exercício de olhar-se no espelho, gesto simples e forte, que a impulsionou a investigar sua própria história. Assim ela foi conversar com sua mãe, uma senhora de 94 anos que ainda lembra dos familiares de cor negra, retintos, cor de jabuticaba, muito diferentes da tonalidade de pele dos seus filhos.
Dona Edileuza viveu sempre na posição de “parda” e “morena, nunca negra, o que revelava um preconceito velado, como deixa transparecer nesse relato:
“Na feira, um senhor de outra banca me chamava de macaca. Eu ficava brava, brigava com ele e não entendia porque ele falava isso, pois eu era branca. Outro colega cantava aquela música ‘Preta, fala pra mim/Fala o que você sente por mim’, quando eu passava. Eu também já escutei que eu ‘escureci a família’ quando tive meu primeiro filho, mas nunca entendi muito bem tudo o que me falavam. Eu nunca entendi muito bem o motivo das pessoas julgarem as outras pela cor da pele. Agora eu entendo que tem gente que sofre muito mais porque a pele é mais escura”, conta.
Casos como da dona Edileuza, que mesmo trazendo fortes traços revelam afro descendência, não se reconhecem como negros ocorrem em decorrência do chamado Colorismo, onde a tonalidade da sua pele será decisiva no tratamento que a sociedade dará a ela, assim negros com tonalidade de pele clara são, pode-se dizer classificados como morenos, morenos claros, pardos, mas nunca negros. Eu mesma não raramente sou chamada de morena, fato ao qual sempre esclareço e reafirmo minha identidade negra, sou uma mulher negra, e diversas vezes escuto coisas do tipo, “mas tu nem é tão escura” ou “tu és tão clara”. Assim revela-se que, quanto mais escuro o tom de pele de uma pessoa for, mais racismo ela irá sofrer e quanto mais claro, mais privilégios ou vantagens ela terá. Porém é preciso reafirmar que essa tese, no entanto, não desaloja negros claros de sua negritude, como é o caso de dona Edileuza, não pode ser negada a ancestralidade de alguém apenas por uma menor presença de melanina.
O Colorismo foi um assunto que esteve no centro do debate neste ano quando internautas questionaram a escolha da atriz Fabiana Cozza para viver no teatro Dona Ivone Lara, sob a alegação de que ela era ‘branca demais’, mesmo sendo negra. E devendo ser refletido junto a outra polêmica que ganhou as redes neste, a escolha por parte da Rede Globo de um elenco predominantemente branco para uma novela ambientada em Salvador Bahia, cidade com maior população negra fora do continente Africano. O que permitiu que dona Edileuza permanecesse por 6 décadas sem reconhecer-se como negra são os efeitos de duas formas de opressão vigentes desde a pseudoabolição de 1888, o Colorismo e Invisibilidade Negra.
Não é uma tarefa fácil escrever sobre colorismo, que não se esgotará neste texto. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença, para tanto farei uma breve genealogia do termo pardo, que embora apareça em memes nas redes sociais, pardo é papel, não gente, é um termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
Em São Paulo, no século 17, era utilizado para designar indígenas escravizados ilegalmente. No mesmo período, no Nordeste açucareiro, era usado como sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas, cabe ressaltar que os africanos eram a maior parte da população. No Sudeste, mais tarde, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. Assim, o termo pardo no Brasil Colônia, indicava além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Os termos preto e negro também apresentavam diferenças no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os dois primeiros censos do país, realizados em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; onde no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos seguintes: 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”. Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Sueli Carneiro, já escreveu tantas vezes, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra.
O mito da democracia racial branqueia negras e negros miscigenados. O elenco da novela Global Segundo Sol, considerando que a história se passa em Salvador, cidade baiana onde mais de 50% da população é negra, evidencia a persistência dessa prática, como no caso de Chiquinha Gonzaga, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, compositora, pianista e regente brasileira, foi a primeira pianista de choro, autora da primeira marcha-rancho carnavalesca que se tem notícia, “Ô Abre Alas”, de 1899, e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Não faltaram preconceitos e lutas em sua vida. Filha do casal Jorge Basileu Gonzaga e Rosa Maria Neves de Lima, ele, general do Exército Imperial Brasileiro; ela, negra, de origem humilde, quando representada na televisão, em Minissérie da Rede Globo, foi representada pela atriz Regina Duarte, uma mulher branca, sendo este apenas um dos muitos casos que denunciam a invisibilidade negra na sociedade brasileira.
É importante, falarmos sobre colorismo e denunciarmos a invisibilidade negra, dando visibilidade as nossas lutas, dores, sofrimentos, alegrias, saberes e conquistas. Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
Graduanda em Filosofia na UFPel,
Assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e
Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Referências:
https://www.geledes.org.br/me-descobri-negra-aos-67-anos/
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-03/os-467-anos-de-salvador-cidade-mais-negra-fora-da-africa
https://revistacult.uol.com.br/home/colorismo-e-o-mito-da-democracia-racial/
http://primeirosnegros.blogspot.com/2013/04/negra-chiquinha-gonzaga-primeira-mulher.html
https://www.geledes.org.br/tornar-se-uma-mulher-negra-uma-identidade-em-processo-por-fernanda-souza/
https://revistacult.uol.com.br/home/sueli-carneiro-sobrevivente-testemunha-e-porta-voz/
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