18 de janeiro de 2024
Tatiana Merlino
O joio e o trigo
O colapso climático não é algo que pode chegar ou está chegando: é uma realidade. As temperaturas recorde e o crescimento da frequência e da intensidade de fenômenos extremos já afetam as nossas vidas: 2023 foi o ano mais quente registrado na história da humanidade.
Como se sabe, o aquecimento global e as mudanças climáticas decorrentes dele têm como causa o acúmulo de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Entre estes, os que mais contribuem para esse efeito são o dióxido de carbono e o metano – o primeiro representa mais de 70% das emissões.
E entre as atividades humanas que mais emitem esses gases estão a queima de combustíveis fósseis (como os derivados do petróleo, carvão mineral e gás natural) para a geração de energia, atividades industriais e transportes, além do desmatamento e da agropecuária. Globalmente, a queima de combustíveis fósseis é a principal contribuidora do efeito estufa. No Brasil, é o desmatamento – causado, principalmente, por atividades agropecuárias.
A necessidade de se reduzir drasticamente as emissões de GEE como forma de combater as mudanças climáticas deu origem a uma série de propostas. Uma delas, uma solução de mercado, foram os créditos de carbono, criados em 1997, no Protocolo de Quioto, acordo global que estipulou as metas de reduções obrigatórias das emissões para países desenvolvidos.
Créditos de carbono são cotas de emissão de gases do efeito estufa que podem ser compradas e vendidas por empresas, governos e até consumidores. O direito de emitir novos gases, portanto, é precificado e pode ser comercializado. O crédito é gerado a partir da diferença entre as emissões em uma determinada data e cada tonelada de carbono que deixa de ser liberada à atmosfera dali em diante.
Como parte do Acordo de Paris, tratado global de 2015 sobre mudanças climáticas, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 43% até 2030 (atualizado para 53% no ano passado) e a zerar as emissões líquidas até 2050. No acordo, foi criada a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), que é uma meta governamental. Os mercados regulado ou compulsório devem ajudar o governo a cumprir sua NDC.
Para os defensores do mercado, implementar um sistema de precificação de carbono ajudará o Brasil a cumprir esses compromissos internacionais para combater o colapso climático.
“No caso do Brasil, só será possível alcançar as metas para 2030 se a gente reduzir radicalmente o desmatamento e colocar preço nas demais emissões”, opina Natalie Unterstell, presidente do Instituto de Política Climática Talanoa.
Em entrevista ao Joio, Natalie aponta que, segundo estudos da Coppe-UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), “dá inclusive para o Brasil chegar a 80% de redução contando com esse instrumento. Então, um mercado regulado de carbono tem um poderoso efeito quando falamos de emissões industriais e faz com que setores econômicos acelerem a transição energética”.
Nessa visão, os mercados de carbono teriam uma existência temporária, até que a economia global se descarbonize, ou seja, deixe de depender das emissões associadas a gases poluidores.
Em um documento intitulado “Por um mercado brasileiro de carbono – mas qual?”, Natalie Unterstell e Shigueo Watanabe Jr, do Talanoa, defendem e explicam o porquê de adotar mecanismos de mercado. Um dos argumentos é que, já que o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões no Acordo de Paris, criar um sistema de precificação o ajudaria a cumprir os compromissos internacionais.
Outro aspecto é a competitividade global: uma vez que países como China, México, África do Sul e Chile adotaram mecanismos de precificação de carbono, “à medida que mais países implementam políticas de precificação de carbono, empresas brasileiras sem estratégias de descarbonização podem enfrentar desvantagens competitivas no mercado global”.
Argumentam também que, com a aprovação pela União Europeia em maio de 2023 do Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM, na sigla em inglês), haverá cobrança de tarifa sobre produtos importados com base na quantidade de carbono emitida em sua produção, ainda nesta década. E que Reino Unido, Estados Unidos e Canadá também estudam adotar medidas semelhantes. “No caso da pauta de exportação brasileira, principalmente o aço poderá ser afetado. Se sujeitos a uma regulação nacional, por outro lado, poderão ganhar vantagem competitiva nos mercados internacionais”, sustenta o documento.
Críticos da iniciativa, porém, acreditam que o mercado de carbono seria uma espécie de “licença para poluir”. Avaliam que ele permite aumentar a destruição do meio ambiente em um lugar para compensar em outro, sem levar em conta o papel de ambos os ecossistemas na manutenção do equilíbrio do clima mundial. Em resumo, ao invés de reduzir os danos que causa, uma empresa seguiria a comprar o privilégio de ser poluidora.
De acordo com Tatiana Oliveira, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o mercado de carbono surgiu a partir de pesquisas e lobby de corporações dos Estados Unidos para elaborar formas de direito ambiental “que pudessem se apresentar de uma forma mais flexível, com uma governança privada e que fosse pró-mercado. Ou seja, a ideia de que ao invés de se estabelecer um direito negativo, aquele que diz o que não pode fazer, haveria um direito que te diz aquilo que você pode fazer”.
“O mercado de carbono se estabelece como um mercado de poluição. A gente diz que é um instrumento econômico de emissão de licenças de poluição. E que, então, funciona regulando os comportamentos do preço, regulando as oportunidades para as empresas reduzirem o seu nível de emissões de gases de efeito estufa”, afirma.
No Brasil, há um projeto de lei (PLS 412/2022) que busca regulamentar o mercado de carbono. Ele foi aprovado no Senado em 4 de outubro de 2023 e tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. A aprovação aconteceu após a costura de um acordo pela relatora da matéria, senadora Leila Barros (PDT-DF), com a bancada ruralista.
Existem dois tipos de mercado de carbono. Um deles é o mercado voluntário, do qual participam as empresas emissoras, estabelecendo metas auto impostas de redução de emissões e que buscam créditos de carbono para compensar as emissões de poluição que já foram realizadas.
Os mercados regulados ou compulsórios são geridos pelos Estados. Ou seja, por meio de uma legislação, o próprio Estado define as metas de redução para as fontes emissoras e pode, também, estabelecer uma série de mecanismos de compensação.
Embora haja outros gases que contribuem para o aumento das emissões, como o metano e o óxido nitroso, o dióxido de carbono tornou-se tornou uma espécie de denominador comum para todos.
“A unidade de troca de mercado é uma tonelada de carbono equivalente. A palavra ‘equivalente’ significa que justamente os demais gases não estão sendo ignorados no cálculo da poluição global”, diz Tatiana Oliveira. “Os impactos climáticos de cada gás são variados. Mas, em razão da concentração e da radioatividade, do tempo que o carbono permanece na atmosfera, ele se tornou uma unidade, esse equivalente geral de trocas. Então é o denominador comum que permite a metrificação dos gases de efeito estufa. Permite a comparação entre os volumes de concentração desses gases na atmosfera, o seu impacto em termos de poluição e esses cálculos que vão gerar o próprio mercado de carbono”, explica.
Tatiana, que é doutora em Desenvolvimento Sustentável pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma que “apesar de haver uma racionalidade estruturada em torno desses mercados para defendê-los e de o mercado criado pelo lobby ser muito ativo, a gente não consegue ver o real impacto dos mercados de carbono para combater as mudanças climáticas. Muito pelo contrário. Nos últimos anos, temos visto uma série de estudos de instituições renomadas que questionam sua real eficácia”.
Um dos levantamentos é o intitulado: Olhar para o céu com os pés fincados na terra: Áreas de uso coletivo e mercado voluntário de carbono na Amazônia brasileira: uma abordagem baseada em direitos, realizado pelo escritório de advocacia Hernandez Lerner e Miranda, feito com dados da certificadora de carbono Verra.
O estudo analisou 69 projetos disponíveis para avaliação e verificou que, destes, 11 possuem sobreposição total com áreas de uso coletivo, 22 possuem sobreposição com áreas públicas e 23 são desenvolvidos em áreas privadas. O estudo aponta riscos em relação à situação fundiária de áreas de uso coletivo com titulação privada nos mercados voluntários de carbono – é o caso das terras quilombolas.
O que se observa, sobretudo nos mercados voluntários, diz Tatiana, “é uma série de violações de direitos humanos, territoriais e de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, e a transferência muito preocupante da gestão dos territórios e de terras públicas para atores privados”.
Enquanto o mercado de carbono ainda não está regulamentado no país, comunidades indígenas e quilombolas estão expostas a abusos e assédios cometidos por empresas de crédito de carbono na assinatura de contratos, como mostramos na primeira reportagem da editoria de colapso climático.
Contamos como uma empresa de carbono anunciou um projeto em terras quilombolas sem conhecimento e aval de parte da comunidade, em Abaetetuba, no Pará. “É uma situação preocupante, que deriva da autonomia que o mercado voluntário de carbono tem em relação ao ordenamento legal no país”, aponta Marcelo Piedrafita, especialista sênior do Talanoa.
Nos últimos dois anos, relata, “a Funai, por exemplo, teve conhecimento de mais de 30 iniciativas de empresas em relação a organizações e comunidades indígenas na Amazônia, das quais uma dezena resultou em contratos ou outros instrumentos jurídicos. Nenhuma dessas iniciativas, todavia, foi registrada como projeto, mesmo que em desenvolvimento, na plataforma da [certificadora] Verra/VCS. Constata-se, portanto, que as empresas têm buscado, num jogo de antecipação, garantir compromissos futuros sobre estoques de carbono, e mesmo sobre outros serviços ambientais providos pelas florestas, de territórios públicos cujo usufruto cabe, legalmente, aos povos indígenas e comunidades tradicionais”.
De acordo com Fabrina Furtado, professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), a regulamentação atenua determinados problemas decorrentes dos projetos, “mas o problema de fundo permanece”.
Para ela, tal problema se assenta no fato de que, ao se criar um mercado de carbono, não se lida com a raiz da questão, “que é sistêmica, então nunca vai resolver de fato”. A precificação do carbono, acredita, permite que as corporações comprem o direito de continuar emitindo. “Não se revê, não se abre o debate sobre isso [emissão de gases]. Então, essa discussão toda de emissões líquidas zero de carbono, o que está dizendo, no fundo, é que a gente vai continuar minerando. O agronegócio vai continuar. A gente vai continuar explorando, extraindo, destruindo. Mas agora a gente pode compensar, né?”, analisa.
A professora da UFRRJ acredita que a iniciativa dá legitimidade para atores que historicamente são responsáveis pela destruição do meio ambiente. “A Vale diz que não destrói a biodiversidade. Que ela cria biodiversidade. Então, a mineração não é mais um problema, ela é parte da solução. Esses projetos não desaceleram as monoculturas, o extrativismo, ou seja, o capitalismo extrativista, que é a causa do grande problema”, diz. Além disso, não beneficia as comunidades, “pelo contrário, gera mais problemas, mais corrida por terra e território e nos coloca como países mais uma vez naquele lugar de inserção subordinada, dependente do capitalismo global”.
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