20 de outubro de 2021
Nanci Pittelkow
De Olho Nos Ruralistas | São Paulo (SP)
As comunidades Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul estão na posse de apenas 29% das suas terras já reconhecidas pelo estado brasileiro, cada vez mais cercados pelo agronegócio. A resistência desses indígenas encontrou a ação solidária dos camponeses no dia 13 de agosto, quando foram entregues 3,4 toneladas de sementes crioulas e agroecológicas às comunidades indígenas dos povos Guarani e Kaiowá no estado.
São sementes de milho, feijão, arroz de sequeiro, amendoim, gergelim, fava, urucum, feijão miúdo, guandu e hortaliças. Para que as sementes se desenvolvam e se multipliquem plenamente, serão entregues biofertilizantes e cerca de 1,5 toneladas de remineralizador de solo (pó de rocha).
A ação foi executada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e pela Associação Nacional de Agricultura Camponesa (Anac), com apoio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Instituto Cultural Padre Josimo e das cooperativas Cooperbio, Cooperfumos, Bionatur e ArpaSul.
“A entrega foi feita nessa época para aproveitar a janela de plantio, com a chegada da chuvas”, conta Frei Sérgio Görgen, do MPA. As sementes foram selecionadas a partir das necessidades e saberes dos indígenas. “Eles demandaram o milho branco, essencial para sua soberania alimentar e utilizado em rituais, como os de batismo”. “Mas ainda não choveu, está muito seco”, informou Anastácio Peralta, da Aldeia Panambizinho, em Dourados.
Todos os envolvidos consideram a entrega das sementes uma devolução, e não uma doação. “Se alguns camponeses conseguiram garantir uma produção de sementes — crioulas, originárias ou nativas — e entenderam que isso é parte da geração de um mundo melhor tanto na alimentação como fonte de sobrevivência, a gente deve isso aos indígenas, que salvaguardaram essas sementes”, afirma Matias Benno Rempel, do Cimi.
“A semente para nós é um bem espiritual, é uma coisa que vem junto com a gente; sem ela nós não existimos”, afirma Anastácio Peralta. “Precisa ser cuidada como uma criança. Por meio dela a gente se alimenta, se fortalece”.
Frei Sérgio observa que os indígenas sempre cultivaram milho, amendoim, abacaxi, batatas, mandioca. “O roubo de terras também foi um roubo da biodiversidade e da riqueza genética”, explica. “Nós, os brancos, tiramos os meios – a terra e as sementes. Nada mais justo que os camponeses preservem e cultivem essas sementes para devolvê-las aos indígenas”.
O relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, de 2018, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostrou que os Guarani Kaiowá detêm apenas um terço de suas terras e contabilizou o assassinato de catorze líderes da etnia entre 2001 e 2016. Dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e secretarias estaduais de saúde informaram a ocorrência de 113 assassinatos de indígenas em 2019.
“Essa violência não provocou o extermínio desses povos por conta justamente da imensa capacidade de resiliência, resistência e defesa obstinada dos Guarani Kaiowá”, relata Matias Benno, do Cimi. Matias relembra que o estado brasileiro planejou retirar todos os indígenas de suas terras para confiná-los em reservas artificiais. “E desde o primeiro dia em que isso aconteceu os indígenas começaram a retomada de seus territórios”.
A violência cerca os indígenas da região por todos os lados. Desde a terra que é negada e tomada, a água envenenada propositalmente, as ameaças que chegam pelos tratores que derrubam ocas, o fogo que consome casas de reza, os aviões que despejam agrotóxicos. A dificuldade dos Guarani Kaiowá de manter o território e de produzir na terra gera fome, que consome até as sementes. O estado, quando age, opta pelo assistencialismo, com a entrega de cestas básicas. “As sementes são um caminho para a busca da autoidentidade, auxiliando na reconstrução da existência indígena por meio da solidariedade camponesa”, diz Frei Sérgio.
Anastácio faz um diagnóstico certeiro de como o agronegócio interfere não somente nas comunidades indígenas, mas na vida de todos.
O agronegócio quando chega não é sustentável. É destruidor da mata, da água, do peixe, da semente crioula. Depois ele destrói ele mesmo. É crise em cima de crise. Não tem um pensamento de futuro, o pensamento é ganhar muito. Mas então destrói tudo e não consegue recuperar.
A luta dos indígenas por território e soberania sensibilizou os agricultores participantes de um encontro da Via Campesina há alguns anos. Segundo Matias Benno, a participação de Frei Sérgio durante o evento foi bastante impactante no sentido de orientar que não caberiam apenas palavras de solidariedade diante da situação dos Guarani Kaiowá, mas tratava-se da defesa dos últimos territórios livres do país. “Se eles caíssem, todos em seguida cairiam também, as aldeias e os assentamentos e acampamentos de camponeses em todo o Brasil”.
Matias conta que as palavras de Frei Sérgio marcaram o início da ação: “Se a distância geográfica nos impede de colocar nosso corpo na frente da bala, pelo menos as sementes que a gente aprendeu a salvaguardar no nosso território podem caminhar”.
Além da entrega das sementes, a ação proporciona a troca de saberes entre camponeses e indígenas na busca de soluções de manejo dos grãos e dos bioinsumos. Um dos desafios do cultivo de alimentos de maneira orgânica e não industrial é lidar com os organismos ou pragas que fogem das monoculturas do agronegócio vizinhas e encontram nas lavouras indígenas um alimento apetitoso.
Matias, do Cimi, ressalta que os camponeses que produzem as sementes reconhecem que o desafio é grande diante de terras indígenas que estão devastadas. Mas se mostram confiantes. “O mato vai demorar para vir, mas vai vir”. Ele ainda lembra a importância desses cultivos diante da proposta de deputados que querem criminalizar a distribuição e o armazenamento das sementes nativas em prol do monopólio dos grandes indústrias fornecedores de sementes inférteis e transgênicas.
Mestrando na área de Educação e Territorialidade, Anastácio diz que a educação formal e as universidades precisam se transformar para lidar com os desafios da sustentabilidade. “É preciso ter mais pesquisas para desenvolver outras formas de lidar com a terra e com a produção para a continuidade do planeta”, explica.
Por ora, os Guarani Kaiowá comemoram a chegada das sementes e dos camponeses para essa troca de saberes:
Algumas sementes estavam em falta e trazem muito ânimo para gente plantar, colher, comer, beber e ser feliz. A semente de boa qualidade traz uma vida de boa qualidade. Nós somos uma semente também. A gente fica forte conforme a semente que a gente come. Se a semente é de boa qualidade, você é feliz, você é forte, você é alegre. Se a semente é envenenada você se entristece. 90% da sua alegria é o que você come.
Entre as espécies entregues aos Guarani Kaiowá está o urucum, usado no artesanato indígena, nos rituais como os de passagem para a vida adulta, além do uso medicinal, e na pintura do corpo para guerra, o que faz dessa semente um símbolo de resistência. “Os indígenas são exemplo nesse sentido”, reflete Frei Sérgio. “Depois de um golpe eles se recolhem e se reorganizam, de forma paciente, sem se acomodar”.
Foi o que fizeram depois da invasão portuguesa, durante a ditadura, depois do golpe de 2016, durante a pandemia. “Nós, brancos, agimos por espasmos, e precisamos aprender com os indígenas essa forma de resistir e nos organizar com persistência”. Outro aprendizado é o de viver com pouco, não tão pouco como são obrigados hoje, sem terras e sem bioma, “mas sem acumulação e respeitando a natureza do outro”, explica o religioso.
Anastácio Peralta, ou Homem Sol Nascente, resgata a simbologia que ilustra o momento:
A gente tem que ser forte como uma semente. Mesmo passando no fogo, afogada no meio das terras ou na poluição, no dia em que chover ela retorna. Nasce.
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