18 de abril de 2022
Nara Lacerda
Edição: Felipe Mendes
Brasil de Fato | São Paulo (SP)
O número de mortes em conflitos no meio rural aumentou mais de 1.000% no ano passado, segundo relatório divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) nesta segunda-feira (18). O Caderno de Conflitos no Campo 2021 aponta ainda que houve crescimento considerável nas violações de direitos humanos, despejos, execuções e massacres.
Os assassinatos subiram 75%. O maior número de casos foi observado nos estados da Amazônia Legal, que registraram 28 crimes dessa natureza, 80% do total. Dos 35 registros nacionais no ano passado, 33 vítimas eram homens e duas mulheres. Rondônia, Maranhão, Roraima, Tocantins e Rio Grande do Sul foram os estados que mais tiveram ocorrências.
As vítimas foram indígenas, trabalhadores sem terra, posseiros, quilombolas, assentados, pequenos proprietários, quebradeiras de coco babaçu, lideranças e apoiadores da luta pela terra.
Em duas ocorrências houve assassinatos de mais de três pessoas na mesma ação criminosa. A CPT considera casos com essas caraterísticas como massacres. As tentativas de assassinato também aumentaram, assim como as ameaças de morte, que chegaram a 132. Os casos de tortura subiram de 9 em 2020 para 13 em 2021.
No ano de 2020 a CPT já havia registrado o maior número de conflitos da história. Segundo Andréia Silvério, da coordenação da instituição, o crescimento do ano passado ocorreu sobre bases já muito altas, o que multiplica o alerta.
“O ano de 2021 reafirma uma tendência que a CPT vem registrando pelo menos desde 2015 e 2016, quando aconteceu essa ruptura política no Brasil. Desde esse período, nós temos registrado aumento com relação ao número de conflitos e com relação ao número de famílias envolvidas nesses conflitos”, aponta.
A alta substancial nos assassinatos e nas mortes em consequência de conflitos aponta uma realidade de insegurança e falta de direitos para famílias e lideranças do campo. “Não são assassinatos diretos, são ocasionados pelas situações de conflito e pelas condições em que famílias se encontram, em decorrência dos processos de luta que elas travam em defesa da terra, do território e do meio ambiente no Brasil”, ressalta Silvério.
Como principais operadores da violência estão agentes privados que se designam fazendeiros, agromilícias, grupos de pistoleiros que atuam sob encomenda e o poder público. De acordo com Andréia Silvério, a CPT observa que tem crescido o avanço sobre espaços já destinados, como territórios indígenas, unidades de conservação, terras quilombolas e áreas de reforma agrária.
“É sempre nessa perspectiva de apropriação dos bens naturais. São atividades como garimpo e exploração madeireira. Não são ações protagonizadas apenas por grupos econômicos, empresários, fazendeiros e grileiros. Elas são, em certa medida, também protagonizadas e incentivadas pelas ações do governo federal e palas ações legislativas dos governos dos estados”, alerta.
Entre os massacres registrados no ano passado, pelo menos três indígenas do povo isolado Moxihatëtëa foram chacinados na Terra Yanomami, em Roraima. Em Rondônia, três pessoas que viviam em no Acampamento Ademar Ferreira foram mortas em agosto de 2021.
“A grande maioria dos conflitos aconteceu na Amazônia. Nós sabemos que a fronteira agrícola da agropecuária e da mineração avança justamente sobre esses territórios e se relaciona com a tentativa de apropriação de áreas ainda conservadas”, salienta Silvério.
Entre as 100 pessoas detidas em 2021 por causa de conflitos no campo, há até mesmo o registro de crianças apreendidas (o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – usa o termo “apreensão” quando há crianças acusadas de ato infracional). Quase um terço do total de casos ocorreu também em Rondônia. Em novembro passado, a Polícia Militar deteve 30 camponeses e camponesas do Acampamento Escurão. Os agentes destruíram casas, roubaram equipamentos e espancaram moradores e moradoras.
Pela primeira vez, o relatório da CPT apresenta informações sobre a orientação sexual e à expressão de gênero das vítimas da violência no campo. Cinco pessoas LGBTQIA+ foram alvo de assassinatos, prisões, intimidações e torturas.
Seguindo a tendência de acirramento da violência no campo, os flagrantes de trabalho escravo também aumentaram em 2021. Foram resgatadas 169 pessoas em condições análogas à escravidão no campo. O número representa alta de 76% em relação ao ano anterior.
Apesar das recomendações de órgãos internacionais e do Conselho Nacional de Justiça, o ano de 2021 registrou mais de 22 mil famílias despejadas no campo. Em plena pandemia da covid-19, na fase mais crítica da crise sanitária global, o índice de despejos aumentou 12%.
O ano também teve alta de 18% no total de famílias expulsas de onde viviam. Mais de 550 tiveram que deixar suas terras e casas. “As tentativas de destruição dos modos de vida significam a destruição das casas, das roças e dos plantios, que muitas vezes são o meio de subsistência dessas famílias. São essas áreas as responsáveis pela produção de alimentos no Brasil”, afirma Andréia Silvério.
“Essas famílias são as principais responsáveis por ainda trazer uma identidade sociocultural, sobretudo na Amazônia. Infelizmente esse processo de ocupação tem caráter muito colonial. Trazem uma visão estereotipada e tentam impor uma lógica de mercado sobre os modos de vida das populações, o que impacta diretamente essas comunidades”, completa.
Em dados parciais de 2022, a CPT já computa 14 assassinatos em conflitos no campo. Silvério aponta falta de investimento na reforma agrária, desmonte de órgãos de proteção aos povos do campo e fiscalização de crimes ambientais e ausência de vontade política por parte do governo federal.
“Há um abandono absoluto da política de reforma agrária como ela foi pensada a partir da constituição de 1988. A reforma agrária no Brasil, de fato, nunca foi feita. Mas essa política, que minimamente possibilitava a distribuição de terras e o atendimento das demandas dessas comunidades foram abandonados nos últimos anos”, completa a coordenadora da CPT.
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