16 de janeiro de 2024
Yamila Goldfarb
Fundação Rosa Luxemburgo
A extrema direita brasileira nasce, cresce e se fortalece aliada aos interesses do agronegócio. Ela faz o “trabalho sujo” que o capital precisa neste momento: abre terreno para a mercantilização de terras e bens comuns. Isso significa o avançar sobre as terras e territórios de populações camponesas e povos tradicionais, seja com o uso da força, seja com o poder legislativo.
Apesar das diferenças internas, o agronegócio conseguiu criar um espaço de conciliação para garantir que os interesses de seus diferentes segmentos sejam garantidos. Além de manter a extrema direita a seu serviço.
Para realizar uma análise mais aprofundada da relação entre o agronegócio e a ascensão da extrema direita no Brasil é necessário fazer um breve recuo aos anos que antecederam a eleição de Jair Messias Bolsonaro.
É preciso ter em mente que o agronegócio é um setor amplo e bastante heterogêneo. Por isso, também há posicionamentos que podem parecer contraditórios. Se por um lado há um controle do negacionismo climático — certamente influenciado por interesses comerciais —, por outro, há amplo ataque aos direitos territoriais de populações tradicionais, bem como de segmentos do campesinato — como assentados da reforma agrária. Com a eleição de Bolsonaro, posicionamentos mais extremistas reacenderam, muitos presentes no período da redemocratização (década de 1980).
A direita brasileira possui um longo histórico antirreforma agrária. Nos anos de 1960, numa histeria anticomunista, organizações de direita — como a União Democrática Ruralista (UDR) e a Terra, Família e Propriedade (TFP) — uniam-se com o empresariado urbano para impulsionar o golpe civil-militar de 1964. (Fialho e outros, 2023).
Mais tarde, nos anos de 1980, com a democratização do país e o processo constituinte, o campo estava em ebulição e havia grande demanda por terra e por melhores condições de trabalho — o que gerava grande repressão, seja por parte do Estado, seja por parte dos latifundiários.
Era o momento do nascimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da formulação do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Ao mesmo tempo, uma crise do Estado brasileiro impedia a manutenção de políticas agroindustriais que haviam marcado o período militar anterior.
Esse contexto de tensão explica o surgimento de posicionamentos antiambientais e anti-indígenas. No entanto, naquele momento, a direita e setores patronais do campo, como a UDR, não deram tanta atenção à questão indígena e dos povos tradicionais na constituinte. Estavam focados na inclusão de dispositivos para frear a Reforma Agrária.
Os anos que se seguiram foram de constante tensão entre posicionamentos mais à esquerda — que defendiam a reforma agrária e a demarcação de Terras Indígenas — e aqueles que defendiam o latifúndio, mais tarde o agribusiness e depois o agronegócio, hoje midiaticamente chamado de Agro.
Nos anos 2000, o Partido dos Trabalhadores (PT) chega ao poder. O período é marcado pela alta dos preços das commodities e uma repactuação do Estado com o agronegócio (Delgado, 2012).
Nos últimos anos dos governos do PT, um novo líder da UDR começa a ganhar destaque: Nabhan Garcia. Ele consegue, rapidamente, aproximar a UDR de outros setores do campo patronal, como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
A fragmentação do setor patronal deu certo destaque para a Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG), que criticava a improdutividade das grandes propriedades e conseguiu promover o pacto de economia política com o Estado brasileiro (Pompeia, 2021; Delgado 2012). A reaglutinação dos diferentes setores do campo patronal se deu com a criação do Instituto Pensar Agro (IPA), importante Think Tank do agronegócio.
Nabhan ganhou destaque nos conflitos internos do setor, como o que houve entre produtores de gado e os frigoríficos. Parte desse conflito se deu com a CNA e a senadora Kátia Abreu, importante figura do ruralismo, quando esta aceitou fazer parte do segundo governo Dilma.
Em 2015, Nabhan Garcia foi um dos primeiros a organizar protestos contra Dilma Rousseff (Pompéia, 2021). Foi em meio às negociações do Funrural[1] que Nabhan começou articular a candidatura de Jair Bolsonaro.
Foi uma aposta alta, pois a UDR e Nabhan ficariam ainda mais isolados caso Bolsonaro não ganhasse a eleição. A radicalização do discurso encabeçado por Nabhan soava desproporcional dentro do IPA, por isso, em 2017, apoiaram o candidato do PSDB.
Naquele momento, dois grandes grupos do setor patronal se enfrentavam: um era composto por uma concertação intersetorial, intercadeias e privado-estatal, que possuía grande capital político, financeiro, técnico e comunicacional. O outro, era composto por representações da agricultura patronal de poderes regionais, sendo a UDR um dos principais exemplos (Pompéia, 2021).
O segundo grupo foi o mais impactado pela crise econômica. Ao mesmo tempo, se ressentia dos roubos cometidos por grupos criminosos envolvendo agrotóxicos, fertilizantes, máquinas e equipamentos. Tudo isso foi aumentando o apoio ao discurso mais radicalizado de Bolsonaro, que incluía a facilitação ao acesso às armas (Pompéia, 2021).
Com a dificuldade da candidatura do PSDB, o apoio e a radicalização foram aumentando. No que tange ao parlamento, as eleições de 2015 mostram o avanço do setor ruralista com o aumento dos integrantes da Frente Parlamentar Agropecuária.
Na legislatura de 2007–2011 eram 209 parlamentares. Na de 2011–2015 eram 203 parlamentares na Frente. No período de 2015–2019 saltaram para 255. A tendência de aumento se intensifica com o crescimento da extrema direita, passando para 283 na legislatura de 2019–2023 (Martins, 2023).
A Frente Parlamentar é composta atualmente por 374 parlamentares, além de membros de partidos de esquerda, como o PT ou o PCdoB, embora sejam minorias.
Com a vitória de Bolsonaro, Nabhan Garcia ganhou espaço no governo e influenciou políticas do Agronegócio e da agenda climática. Como exemplo, ele exerceu influência na ideia de extinção do Ministério de Meio Ambiente. Embora não tenha tido êxito, o Ministério foi reorientando ao núcleo conservador do bloco CNA/Conselho do Agro.
A escolha de Ricardo Salles, que havia sido diretor da Sociedade Rural Brasileira, como ministro do meio ambiente deixou evidente a nova orientação do Ministério. A chave para satisfazer aos interesses mais extremistas foi a criação da secretaria de Assuntos Fundiários, alocada no Ministério de Agricultura e Pecuária e entregue, claro, a Nabhan Garcia.
Toda a gestão da reforma agrária e agricultura familiar; demarcação de terras quilombolas e indígenas; e titulação de terras saíram da Casa Civil e foram para essa secretaria.
A mudança foi recebida de bom grado por setores contrários aos direitos territoriais de indígenas e populações tradicionais. Ao mesmo tempo, ajudou a preservar a então ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Tereza Cristina de desgastes nessa agenda.
A intensificação do desmonte das políticas para o meio ambiente levou a críticas das cadeias de commodities agropecuárias em relação aos problemas ambientais. Isso gerou certo embaraço em algumas negociações, por parte de setores do Instituto Pensar Agro.
Diante disso, não houve apoio a alguns projetos de lei, como o que tratava da eliminação das Reservas Legais[2] e ao que dava poder de veto na criação de unidades de conservação ao Congresso Nacional (Pompeia 2021).
É importante notar que as propostas mais extremistas possuem maior apoio em bases locais ou regionais e menor em setores empresariais das cadeias de commodities. Algo bastante conveniente, uma vez que o “trabalho sujo” é feito por outros segmentos, preservando a “imagem ESG” das empresas.
A extrema direita avançou não apenas no impedimento de novas demarcações, novos assentamentos rurais ou titulações de Terras Quilombolas, mas na tentativa de reversão de demarcações ou de processos de desapropriação que já estavam em andamento, algo que chamou a atenção enquanto ataca direitos já adquiridos.
Essas ações mais extremistas não encontraram resistência dentro do agro, como o negacionismo climático encontrou. Isso é simples de entender, isso porque o negacionismo climático atrapalha os negócios. Já o extremismo contra direitos territoriais de populações, ajuda.
Podemos elencar alguns exemplos que comprovam o avanço sobre as terras e recursos naturais articulados pela direita:
– Os ataques ao dispositivo constitucional da Função Social da Terra[3], por meio de Projetos de Lei que buscavam alterar a própria Constituição brasileira.
– A constante anistia aos desmatadores por meio de Projetos de Lei que alteram o marco temporal e a área em hectares anistiáveis e a regularização de terras griladas, por meio de programas que usam o discurso da segurança jurídica para, na realidade, se apropriar das terras públicas, as chamadas Terras Devolutas[4]. Dois exemplos emblemáticos desse tipo de ação são a Lei 2633/19 que permitiu em todo território nacional a transferência para particulares (sob o nome de “regularização”) de até 2500 ha sem licitação, sem vistoria presencial, de forma autodeclaratório e com o uso do desmatamento como forma de comprovação da posse. Na prática, isso representa a legalização do roubo de terras públicas que agora passam a estar disponíveis ao mercado. Outro exemplo foi a Lei 13.874/19, chamada Lei de Liberdade Econômica e Livre Mercado, que abriu as terras e recursos naturais para investimentos estrangeiros diretos, num claro caminho de pavimentação da estrangeirização e financeirização da terra.
– A criação de programas que privatizam as terras comuns ou públicas, como no Titula Brasil (2020). O programa autoriza a regularização de áreas de união e do INCRA pelos municípios, o que se traduz no fornecimento do título de propriedade aos assentados da Reforma Agrária que possuíam a Concessão Real de Uso.
– A criação de projetos de Lei que passam a permitir a mineração em Terra Indígena e em Assentamentos da Reforma Agrária, como o PL 191/20, barrado até o momento. (Aguiar e Torres, 2021)
Vale lembrar, no entanto, que esse processo de regularização de terras griladas tem início já nos governos de esquerda com o Programa Terra Legal (11.952/2009) que permitia a regularização de até 1.500ha na Amazônia Legal.
Vale colocar também o importante papel que o agronegócio teve no financiamento dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. No dossiê intitulado As origens agrárias do Terror (Fialho e outros, 2023), o observatório De Olho nos Ruralistas destrincha com precisão a relação entre o agronegócio e os golpes ou tentativas de golpe no Brasil.
Os inquéritos movidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e as diligências da Operação Lesa Pátria, da Polícia Federal (PF), mostram a existência de uma rede de empresários e políticos orquestrando e financiando a derrubada do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Houve uma articulação direta de empresários do agronegócio e do setor logístico — bem como de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros — no financiamento e organização dessas células terroristas.
O estudo identificou dezesseis fazendeiros entre os participantes da invasão da Praça dos Três Poderes, além de outros dez empresários do setor investigados pelo STF por financiarem diretamente as caravanas golpistas. Entre eles, podemos citar Alípio Schuwank Maggi, primo do ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi e do “rei da soja” Eraí Maggi — donos, respectivamente, dos grupos Amaggi e Bom Futuro, dois dos maiores grupos agropecuários do país. E Raijan Mascarello, sobrinho de um dos maiores proprietários de terras do Brasil, e que, em 2020, iniciou uma campanha para que empresários demitisse “petistas e esquerdistas” de suas companhias (Fialho e outros, 2023).
Entre as empresas que bancaram o transporte dos bolsonaristas destaca-se uma gigante do agronegócio brasileiro, a produtora de arroz e feijão Urbano Agroindustrial — dona de uma fazenda sobreposta à Terra Indígena Pindoty, em Jaraguá do Sul (SC) (Fialho e outros, 2023).
Soma-se a esse quadro outro aspecto importante da relação entre extrema direita e agronegócio: a violência, característica histórica da questão agrária brasileira. O aumento da violência no campo tem sido uma marca fundamental deste período recente. Não à toa, os ruralistas tiveram papel importante na liberalização do porte de armas de fogo. O setor mais violento atuou fortemente na certeza de impunidade, o que se refletiu nos números.
O ano de 2022 foi marcado pelo elevado crescimento do número de Violência Contra a Pessoa. Foram 553 ocorrências, que vitimaram 1.065 pessoas, 50% a mais do que o registrado em 2021 (368 ocorrências com 819 vítimas). Entre as principais violências registradas estão Assassinatos, Tentativas de Assassinatos, Ameaça de Morte, Morte em Consequência, Tortura, Prisões e Agressões/ferimentos (CPT, 2023).
Em 2022, ocorreram 47 assassinatos por conflitos no campo, um crescimento de 30,55% em relação a 2021 (36) e 123% em comparação com os dados registrados em 2020 (21). Nota-se, portanto, o aumento dos casos, o que, segundo a CPT (2023) reflete o momento em que a extrema direita no país e seus agentes, temendo a derrota nas eleições, se utilizaram de todos os artifícios arbitrários e brutais para impor, à força, seus interesses. Outro número que revela esta dinâmica dos conflitos é o relativo às Tentativas de Assassinatos. Em 2022 foram registradas 123 ocorrências desse tipo de violência, o número foi 272,72% maior do que os 33 registrados em 2021.
O fato de os indígenas terem sido os alvos mais frequentes, seguidos de Sem Terra, é reflexo do interesse do capital pelas terras preservadas, já que há enormes extensões de pastagens degradadas abandonadas.
A enorme demanda por terras e recursos minerais, em especial após a crise de 2007/2008, explica em grande medida o avanço da agenda da extrema direita sobre o campo. Ela tem feito sem pudor, o que o capital sempre precisou que se fizesse. Grandes empresas transnacionais, como as produtoras de agroquímicos e as traders de grãos, ou setores mais modernos do agronegócio, também fazem jogo sujo. São apenas mais discretos.
Aguiar, Diana e Torres, Mauricio. A boiada está passando. Desmatar para Grilar. Agro é fogo. 2021. Disponível em https://agroefogo.org.br
CPT (comissão Pastoral da Terra). Conflitos no campo Brasil 2022. Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno — Goiânia, CPT Nacional — 2023. Disponível em https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/6354-conflitos-no-campo-brasil-2022
Fialho, Bernardo; Bruno Stankevicius Bassi, Luís Indriunas, Mariana Franco Ramos e Nanci Pittelkow. As origens agrárias do terror: do golpe de 1964 aos atos golpistas de 8 de janeiro de, entenda como fazendeiros atuam contra a democracia. Observatório De Olho nos Ruralistas, São Paulo, 2023. Disponível em https://deolhonosruralistas.com.br/wp-content/uploads/2023/05/As_Origens_Agrarias_do_Terror_2023.pdf
Martins, Lucas Araújo. A construção do espaço político da bancada ruralista no congresso nacional e a questão agrária no século xxi (1999-2022). Dissertação de mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) da Faculdade de Ciências e Tecnologias de Presidente Prudente (FCT) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) 2023
Mitidiero Jr e outros. When crime becomes law: Legislative attacks on rural people’s rights and on nature in Brazil. Criminological Encounters. Vol 5(1) 2022
Pompeia, Caio. A reascensão da extrema direita entre representações políticas dos sistemas alimentares. Antropolítica. Revista Contemporânea de Antropologia. 2021. Disponível em https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/49653
[1] O FUNRURAL é uma contribuição social de caráter previdenciário, incidente sobre a receita bruta da comercialização da produção rural, constantemente sonegada e renegociada com o Estado.
[2] Áreas de preservação legalmente estabelecidas em todas as propriedades rurais.
[3] Artigo 186º — a função social é cumprida quando a propriedade atende simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em Lei, aos seguintes requisitos: (I) aproveitamento racional e adequado, (II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, (III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho, (IV) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores
[4] A Constituição Brasileira coloca que os órgãos gestores, no que se refere à destinação das terras públicas (também chamadas de Terras Devolutas), devem primeiramente atender às demandas das Terras Indígenas, das Unidades de Conservação, das Terras de Comunidades Remanescentes de Quilombos e por fim, dos Projetos de Assentamentos da Reforma Agrária. Somente após o esgotamento dessas opções é que se pode abrir para o interesse privado por meio de licitações públicas.
[5] Em 2022, 38% das pessoas assassinadas eram Indígenas (18), seguidos por Sem Terra (9), com 19%; Ambientalistas (3); Assentados (3) e Trabalhadores Assalariados (3), os três com 7%.
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