Entrevista | Processo de Desertificação no Brasil: Conceito, características e causas
1 de março de 2020
O MPA entrevistouDr. Aldrin Martin Perez-Marin. Ele é Latinoamerico, Nicaraguense de nascimento, Brasileiro por opção e nordestino de coração. O Dr. Pérez-Marin, há vivenciado as diversas fases da vida acadêmica (graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado) nos territórios da agroecologia como ciência, movimento e prática na América Latina. Seu caminhar acadêmico transita por processos de Pesquisa Popular Participativas (3P) abordando diversas temáticas relacionadas a Desertificação e Agroecologia em terras Secas, Comunicação e Desenvolvimento Rural e Educação Ambiental contextualizada. Em 2016, fez outro caminho compartilhado com outro companheiro de viagem, o Prof. Miguel A. Altieri, à Universidade de Califórnia, Berkeley, Estados Unidos, onde vivenciaram um caminho intenso, gradual e formativo sobre experiencias agroecológicas no mundo, e assim que chegou, ele vem compartilhando seu trabalho em diferentes espaços nacionais e internacionais. Hoje, o Dr. Perez-Marin trabalha no Semiárido brasileiro e participa como Professor em Programa de Pós Graduação do nordeste brasileiro.
Dr. Aldrin Martin Perez Marin / Divulgação
MPA: Como podemos definir o processo de desertificação?
Aldrin Perez (AP): No âmbito da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (UNCCD) a desertificação é definida como um processo de degradação das terras que ocorre essencialmente nas áreas que se situam nas zonas áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas entendidas como “Todas, com exceção das polares e subpolares, nas quais a razão entre a precipitação anual e a evapotranspiração potencial está compreendida entre 0,05 e 0,65”. Tal processo resultaria das variações climáticas e as atividades humanas. Assim, no Brasil, esta definição restringe a desertificação a uma parte da região Nordeste e do norte de Minas Gerais. Quer dizer, que nas outras regiões do Brasil, pode haver processos de degradação da terra semelhantes aos desta parte do Nordeste (NE) e de Minas Gerais, mas no âmbito da UNCCD eles não podem ser denominados de desertificação porque não se enquadram na Convenção. Desta forma, no Brasil, as áreas susceptíveis a desertificação compreendem 1.340.863 km2, incluindo 1.488 municípios, localizados em dez estados da região semiárida do nordeste brasileiro, municípios no Norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, onde o grau de conhecimento destes processos degradativos e sua extensão são ainda deficitários e necessitam de constantes atualizações.
MPA: Quais são as principais características de um Solo em processo de desertificação?
AP: Um Solo em processo de desertificação caracteriza-se mais ou menos assim, numa sequencia de etapas, num ciclo vicioso, que somente se percebe após três ou quatro gerações:
Primeira característica: Chegada do homem e ocupação de uma certa área;
Segundo característica: O homem derruba e queima a vegetação. Usa o solo com atividades agrícolas ou pecuárias por três ou quatro gerações, com práticas agressivas, que o lastimam (deploram) e o expõe a ação do vento e da chuva;
Terceira característica: O Solo sendo lastimado e violentado perde sua fertilidade. À água e o vento o arrastam, assoreando os rios e açudes. Outra parte percorre distâncias mais longas, chegando até o mar. A superfície da área onde Solo foi levado (arrastado) pelo vento e a chuva, resseca-se e impermeabiliza-se; a cobertura vegetal que brotava dele perde a pujança e degrada-se; logo a atmosfera desidrata-se e se aquece, dificultando as precipitações; as reservas de água das profundidades do solo mínguam, as fontes estancam-se e os rios tornam-se intermitentes.
Quarta característica: Com a redução da pujança do Solo, de sua fertilidade, de sua capacidade produtiva, ocorre uma redução da renda familiar nas áreas afetadas;
Quinta característica: Com a redução da renda familiar nas áreas afetadas, ocorre uma deterioração das condições sociais das famílias que ocupavam aquele Solo, agora desertificado, com o coração erosionado. Isto sucede por que as famílias, não conseguem mais converter os bens ecológicos do Solo em bens econômicos para sobreviver.
Sexta e última característica: Por último, as famílias fogem, migrando para grandes centros urbanos. As famílias, agora como refugiadas ambientais, sem condições financeiras e instrução adequada para concorrer a um mercado trabalho altamente competitivo, se estabelecem em áreas periféricas geralmente inadequadas para ocupação. Nestas áreas por sua vez, dadas a intensas chuvas, ocorrem deslizamentos ou deslaves de terras, expulsando as famílias a viver na rua, sem moradia digna. Nós dizemos que quando isso ocorre, há uma decomposição social nas áreas afetadas, criando sociedades sem perspectivas, que coloca em permanente evidencia as desigualdades sócio econômicas e criando um estado de continua tensão social. Este é o nível mais elevado de degradação da terra, tornando-se assim a desertificação, em um problema ambiental, social, econômico, cultural e político.
MPA: Quais as causas que a provocam?
AP: Existem diferentes causas que provocam a desertificação, como as práticas agropecuárias e antrópicas adotadas para o uso dos recursos naturais da região semiárida, especialmente para o bioma Caatinga, que levam a exaustão dos solos e, finalmente, da vida humana. As áreas mais degradadas, de forma geral, apresentam, em boa parte dos seus solos, baixos teores de fósforo. O nitrogênio também é muito escasso, devido aos baixos teores de matéria orgânica. Com a supressão vegetal e a baixa capacidade de produção de massa verde, quando da ocorrência das chuvas, o que resta de matéria orgânica nos solos desnudos são rapidamente mineralizados, agravando mais ainda a deficiência de nitrogênio, água e alimentos.
Mas, numa visão mais ampla, essencialmente podemos dizer que as causas que provocam a desertificação estão necessariamente relacionadas com as atividades dos próprios seres humanos, vítimas de semelhante “civilização”. Por exemplo, na agricultura ou pecuária tradicional e a agricultura industrial, o fator indutor é a crescente pressão de mercado onde o processo econômico agrícola ou pecuário assume uma imagem de um fluxo linear destinado a converter recursos mobilizados nos mercados em produtos, também orientados aos mercados. Esse enfoque implica abordar o meio natural “Solo” como uma fonte inesgotável de recursos, como mero suporte físico ou como um mero chão de fábrica, realizado por estratégias técnicas destinadas a substituir os processos ecológicos que ocorrem na escala de paisagem, de forma cíclica, pela importação maciça de energia sob a forma de insumos e de trabalho econômico. Esta visão, cria no plano das ideias, as condições político-ideológicas de gestão econômica comandada pelas regras do mercado, gerando custos ambientais e sociais devastadores para todos nós, enquanto sociedade.
Também vale destacar que fatores estruturais como a concentração de terra, renda, biodiversidade, água, meios de produção e alta densidade demográfica, contribuem de forma significativa para o agravamento da desertificação.
MPA: Que medidas precisam ser adotadas para combater esse processo?
AP: Veja só, combater a desertificação, mais que tudo implica influenciar ou mudar o comportamento cultural, social, econômico e político da sociedade atual. A sociedade de consumo é uns dos mais tenebrosos inventos do atroz sistema econômico imposto ao mundo. Todo esforço para combater a desertificação é incompatível com o sistema econômico predominante.
Nessa perspectiva precisamos mudar o enfoque linear de desenvolvimento humano ou também chamado de “Viver Melhor” pelo enfoque denominado “Bem Viver”. Isto se faz necessário porque o “Viver Melhor” pressupõe a ética do progresso ilimitado; a capacidade infinita do meio em reciclar matéria e absorver resíduos e nos incita a uma competição com os outros para criar mais e mais e subsequentemente “Viver Melhor”, entretanto, para que alguns “Vivam Melhor”, milhões e milhões têm que “Viver Mal”.
Faz-se necessário por tanto mudar esse enfoque de “Viver Melhor” pelo enfoque de desenvolvimento sustentável ou chamado de “Bem Viver”, que necessariamente implica em mudar a visão linear da vida por uma visão holística e integradora do ser humano, da ética da suficiência para a comunidade, não apenas para o indivíduo. Para essa transição precisamos confrontar com muita humildade a verdadeira dimensão de nossa existência, num planeta indiferente a nossa presença. A coexistência de nosso poder destrutivo, com a fragilidade de nosso planeta é precária. A boa notícia é que estamos num beco com saída, ainda: podemos tomar decisões hoje para continuar futurando sobre nossa existência, de um mundo mais humano e humanizante, a final, nada é mais importante que a preservação da vida.
MPA: Olhando para o Brasil e para o Nordeste Semiárido, como é feito o monitoramento das áreas em processo de desertificação e onde esses processos estão mais avançados?
AP: A desertificação implica mudança no tempo e, para ser caracterizada, demanda uma série temporal de dados. Isso é fundamental para a determinação de risco, na estimativa da progressão de desertificação e na avaliação de ações preventivas. Atualmente, embora com tantas evidências sobre a desertificação, sua organização em um sistema de indicadores quali-quantitativos ainda é muito incipiente e não fornece resultados consistentes para alimentar tomadas de decisão sobre esse grave processo evolutivo, mesmo mediante as tentativas de mensuração. A situação dos indicadores de Solos é a mais crítica de quantos aspectos ambientais, econômicos e sociais já foram considerados. Nenhum fenômeno de avaliação da degradação do Solo foi trabalhado em alguma escala de mensuração de fácil uso. As avaliações propostas são todas aplicáveis a pequenas áreas e não há uma maneira fácil de extrapolá-las a superfícies maiores, como a da região semiárida.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, as áreas onde os processos estão mais avançados são os denominados Núcleos de Desertificação no Semiárido Brasileiro: Seridó, (RN/PB), Cariris Velhos (PB), Inhamuns (CE), Gilbués (PI), Sertão Central (PE), Sertão do São Francisco (BA). Estes núcleos se constituem na fiel expressão da inadequação ou ausência de práticas adequadas, quando da interação entre as ações produtivas e os recursos naturais disponíveis em um ambiente de equilíbrio ecologicamente frágil. Em geral, esses núcleos são áreas com grandes manchas desnudas, presença ou não de cobertura vegetal rasteira e sinais claros de erosão do solo. No entanto, existem outros locais com aparência de degradação semelhante, porém, ainda não reconhecidos como núcleos. As consequências se apresentam tanto em âmbito local, como regional, nacional e global, visto que resulta no empobrecimento da população local e declínio da qualidade ambiental nesses ambientes, em processos migratórios intra-regionais, perda de biodiversidade, perda de território produtivo do país e na elevação do risco social em uma extensa área e, finalmente, nos aspectos negativos referentes ao clima do planeta, com a elevação da temperatura, interferências em processos biogeoquímicos, particularmente, na ciclagem da água e do carbono. Dessa forma, o processo de desertificação deve ser encarado como um problema pan-geoespacial, articulado às demais áreas em desertificação do planeta. Com o advento das mudanças climáticas em movimento, espera-se que estes processos se intensifiquem.
O monitoramento dessas áreas também deve se constituir em especial atenção por parte dos órgãos de governo, visto tratar-se da perda de território nacional produtivo para as presentes e futuras gerações de brasileiros. Para tanto, é fundamental a identificação, experimentação e pactuação de indicadores que permitam o monitoramento socioambiental dessas áreas submetidas ao grave processo de degradação de sua qualidade ambiental, designada genericamente de “processo de desertificação”.
MPA: Existem tecnologias sociais que auxiliem no combate a desertificação?
AP: Sim, existem tecnologias sociais. Ao redor do mundo muitas famílias agricultoras experimentadoras em transição agroecológica, vêm respondendo as condições climáticas cambiantes, demonstrando inovação e resiliência frente as mudanças climáticas e desertificação. É o que se vê, por exemplo, na agricultura familiar agroecológica no Semiárido brasileiro, que vem promovendo processos de intensificação da produção baseados na valorização dos recursos locais, no emprego de tecnologias e práticas de manejo que diversificam os sistemas produtivos com atividades que se complementam e permitem a formação de estoques de riquezas (água, forragem, alimentos e sementes) e uma maior circulação de nutrientes dentro do agroecossistema, estratégias estas interligados com uma forte articulação social, organização e momentos sinérgicos de comunicação entre os diversos sujeitos com interesses em jogo nas comunidades ou territórios.
Estas observações foram sistematizadas através pesquisa- articulação-ação entre o Instituto Nacional do Semiárido e a Articulação para o Semiárido – ASA Brasil, denominado Projeto ASA-INSA, que resgatou e mapeou sistemas agrícolas familiares camponeses em zonas áridas e semiáridas. A pesquisa mostrou que a adaptação as mudanças climáticas e desertificação nos agroecossistemas da região semiárida, passaram de um conceito a um fato, como consequência do conjunto de transformações estruturais, agroecológicas, sociais em combinação com o fortalecimento de mecanismos de reciprocidade comunitária, originados pela implementação de políticas públicas contextualizadas de convivência com a semiaridez adotadas. A integração de Políticas Públicas ambientais, territoriais, patrimoniais e urbanísticas, é fundamental para que as ações possam se dar de forma concatenada, ao invés da dispersão de esforços verificadas em diversas áreas. Por ultimo, destaco que um desafio chave, para a comunidade científica é definir marcos conceituais e metodológicos para decifrar os princípios e mecanismos chaves que explicam a resiliência dos sistemas diversificados, de tal forma que estes possam ser transmitidos a outras famílias camponesas e os formuladores de políticas públicas possam responder de maneira oportuna e eficaz.
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