8 de agosto de 2018
Ontem (7) pela manhã, indígenas Guarani e Kaiowá fizeram uma visita de apoio e solidariedade aos militantes de movimentos sociais do campo e da cidade em greve de fome por Justiça há oito dias. Sob a sombra das árvores do Centro Cultural de Brasília (CCB), o grupo de cerca de 50 indígenas do Mato Grosso do Sul fez cantos e rezas em deferência aos grevistas.
Ao som dos taquapu e mbaraka, instrumentos ritualísticos sagrados Guarani e Kaiowá, os sete militantes em greve de fome receberam as rezas das nhandecy e dos nhanderu – rezadores e rezadoras, literalmente “nosso pai” e “nossa mãe” no idioma Guarani.
“Queremos agradecer pela coragem dos companheiros e companheiras de luta que estão aqui defendendo a vida de muitos indígenas e não indígenas”, afirmou Eliseu Lopes, liderança Guarani Kaiowá.
Vilmar Pacífico, Zonália Santos, Jaime Amorim (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST), Rafaela Alves e Frei Sérgio Görgen (do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA) e Luiz Gonzaga (da Central dos Movimentos Populares – CMP) estão em greve de fome desde o dia 31 de julho, em luta por Justiça, contra a volta da fome, o aumento do custo de vida e a prisão do ex-presidente Lula.
“O Poder Judiciário viola a Constituição e impede o povo de escolher pelo voto, soberanamente, o seu Presidente e o futuro do país”, afirmaram em manifesto divulgado no início da greve. No dia 6, Leonardo Armando, do Levante Popular da Juventude, somou-se à greve.
“Também estamos enfrentando uma luta grande no Mato Grosso do Sul. O nosso sangue, o sangue dos Guarani e Kaiowá está regando soja, milho, eucalipto, cana. Mas estamos resistindo há muitos anos e vamos continuar resistindo e apoiando os companheiros pobres que não tem terra, que não tem moradia. Estamos juntos”, garantiu Eliseu.
Eliseu também leu uma carta de apoio dos Guarani e Kaiowá aos grevistas.
“Parece que nossa proposta de mundo, mesmo em pequenos espaços, afronta o motor deste desenvolvimento que só fica satisfeito quando a última arvore está no chão e o último parente nosso está morto”, afirmam os indígenas no documento.
“O agronegócio tem fome demais mesmo de barriga muito cheia e por causa dele nós vivemos com fome demais de barriga vazia”, diz a carta. “Quisemos vir aqui onde vocês estão para rezar sobre vocês e com nossa reza proteger suas mentes, seu coração e seus corpos. Sabemos que em um corpo que passa fome pelos outros mora um coração que deve ser protegido”.
Com a saúde frágil após mais de uma semana de greve de fome, os grevistas agradeceram a solidariedade Guarani e Kaiowá. “Agradecemos pela oração, pela energia linda e maravilhosa que recebemos neste momento. Estamos aqui nessa greve de fome em denúncia à fome que se instalou neste país, a todas as mazelas causadas a todo o povo brasileiro, incluindo os indígenas”, afirmou Zonália Santos.
“Essa luta é mais do que justa, e por isso vamos nela até as últimas consequências de nossas vidas. Para que todos nós tenhamos comida farta em nossas mesas, para que todos os indígenas tenham suas terras de volta”, concluiu.
Frei Sérgio Görgen também agradeceu aos indígenas em nome dos demais grevistas. “Se nós tivéssemos que fazer greve de fome para pagar todos os erros que os brancos fizeram com vocês, iríamos passar centenas de anos fazendo greve de fome”.
Fome, inimiga íntima
“Nossa primeira motivação dessa greve de fome é contra a fome”, explicou ele. “E sempre tenho na minha mente, como inspiração, vocês povos indígenas, que são quem mais sofre com esse modelo de desenvolvimento implantado no país”.
A fome é uma inimiga íntima dos Guarani e Kaiowá. Expulsos de seus territórios tradicionais e confinados em reservas ao longo do século XX, grande parte deles vive em acampamentos precários à beira de rodovias ou em pequenas retomadas, feitas em fazendas que se sobrepõem a seus territórios tradicionais – seus tekoha, “lugar onde se é”.
Em 2016, um estudo publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e pela Fian constatou uma situação de extrema insegurança alimentar e nutricional entre os Guarani e Kaiowá que vivem em acampamentos no Mato Grosso do Sul. A desnutrição crônica abaixo de cinco anos de idade, por exemplo, atingia 42% das crianças Guarani e Kaiowá, um índice seis vezes maior do que o verificado entre não indígenas.
A luta pela demarcação de suas terras tradicionais esbarra na institucionalidade do Estado brasileiro e é marcada, também, pela violenta ação ruralista, inclusive com a utilização de milícias armadas.
“Precisamos dizer à esquerda brasileira que ela precisa ter uma outra compreensão da questão indígena. Quando esteve no poder, ela não respeitou corretamente os seus direitos, sonhos e necessidades”, advertiu Frei Sérgio. “Enquanto não se respeitar os povos indígenas, com sua cultura, com suas terras, com sua religião, com sua maneira de viver, não se terá justiça plena nesse país e os pobres não terão sido respeitados corretamente”.
O pedido dos militantes em greve de fome para abraçar uma das crianças Guarani Kaiowá que estavam com o grupo, como símbolo de esperança, logo se transformou numa grande troca de abraços entre grevistas e indígenas. Em seguida, os rezadores e rezadoras dedicaram mais alguns momentos de rezas para os grevistas e também para o médico Dr. Ronald Wolff, que monitora sua saúde.
Encontro no STF
À tarde, os grevistas e os Guarani e Kaiowá encontraram-se novamente, à frente do Supremo Tribunal Federal (STF). Os grevistas protocolaram pedidos de audiência sobre as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, que questionam a prisão em segunda instância e poderiam garantir a liberdade do ex-presidente Lula, uma das pautas da greve.
Os Guarani e Kaiowá, por sua vez, fizeram uma vigília em defesa dos direitos constitucionais indígenas, ameaçada pela tese do marco temporal, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988.
Confira a íntegra da carta dos Guarani e Kaiowá:
CARTA DA ATY GUASU GUARANI E KAIOWA AOS AMIGOS EM GREVE DE FOME: CONTRA A FOME E POR JUSTIÇA.
Aos amigos de luta: Frei Sérgio Gorgen, Zonália Santos, Jaime Amorim, Luiz Gonzaga, Rafaela Alves, Vilmar Pacífico, Leonardo Armando.
Viemos de terras ancestrais e sagradas das quais talvez vocês ainda não tenham ouvido falar. Lá onde as fogueiras ainda iluminam os cantos e as danças do nosso povo Guarani e do nosso Povo Kaiowa. Onde contra toda injustiça ainda podemos sorrir e sermos o que somos, povos nativos deste Brasil.
Infelizmente, nossa vida enquanto povo esta ameaçada. Lá onde vivemos, onde os brancos chamam Mato Grosso do Sul, o agronegócio avança forte contra nosso povo tentando esmagar nossas Tekoha. Parece que nossa proposta de mundo, mesmo em pequenos espaços, afronta o motor deste desenvolvimento que só fica satisfeito quando a ultima arvore esta no chão e o ultimo parente nosso esta morto. O agronegócio tem fome demais mesmo de barriga muito cheia e por causa dele nós vivemos com fome demais de barriga vazia. Por conta deste modelo de desenvolvimento temos perdido nossas fontes sagradas de alimento. Sem terra temos fome de tudo, do alimento, da nossa vida, da nossa cultura.
Conhecemos bem a fome. Talvez como poucos hoje no Brasil, nós conhecemos a fome. A fome e a morte infelizmente são as vizinhas mais próximas de nossos Tekoha. Temos sofrido um verdadeiro genocídio. São mais de 400 lideranças de nosso povo assassinadas nos últimos anos. Nossas comunidades tem sofrido tantos ataques que já perdemos a conta. Para manter vivo estes nossos territórios, fontes das ultimas matas puras, águas puras e sorrisos puros, temos pagado com nossas próprias vidas e assim fizemos, assim fazemos, assim faremos. Muitos de nós ainda hoje vivemos praticamente sem terra, em acampamentos na beira da estrada, acampados dentro da cana, nos fundos de fazendas erguidas sob nossos territórios, debaixo da lona que esquenta no sol.
Mas nada disso pode tirar de nós o principal alimento da luta: A esperança. Com esperança temos mantido as fogueiras acesas e recuperado um por um de nossos territórios.
Quando viemos a Brasília, trouxemos nossa fé e nossa esperança para lutarmos contra este Governo Golpista que esta massacrando nossos direitos. Logo que chegamos ficamos sabendo da greve de vocês. Quisemos vir aqui onde vocês estão para rezar sobre vocês e com nossa reza proteger suas mentes, seu coração e seus corpos. Sabemos que em um corpo que passa fome pelos outros mora um coração que deve ser protegido.
Nós lideranças também fazemos isso. Passamos fome em nome de nosso povo. Caminhamos mais que comemos, dividimos mais do que temos. Mas o segredo esta na nossa reza e nossa espiritualidade. Nós quando não temos mais nenhum pão nos alimentamos dela e procuramos nela a força que precisamos para resistir.
Somos gratos pelo ato de sacrifício de vocês para que o povo brasileiro possa se alimentar de pão mas também de justiça. Iremos rezar com toda nossa força para que fiquem bem e temos certeza que com nossa reza e com atos de coragem como o de vocês este país poderá ser melhor, mais democrático e mais justo com todos nós, em especial com os povos indígenas que são seus filhos primeiros. Todos estamos juntos e sabemos que a fome que passamos também conduz nossos pés para o mundo onde ninguém precisará passar fome.
Deixamos aqui, junto com a benção de nossos rezadores, nosso abraço, nosso obrigado e nossa amizade enquanto Guarani e Kaiowa.
Brasília, 07 de Agosto de 2018.
Por Tiago Miotto/Assessoria de Comunicação do CIMI
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