A seca que está atingindo com força o RS desde novembro. Demorou um pouco mais para atingir a região da Campanha, mas quando os efeitos começaram a ser sentidos, vieram com força. Já começa a ser comum encontrar pelas estradas do interior cenários que lembram o sertão: açudes esvaziados, terra rachada, caminhões pipa socorrendo famílias que não tem mais água para beber, animais se alimentando de pasto seco, plantas enrugando as folhas, perdendo frutos e grãos e até mesmo secando antes do tempo da colheita.
– Eu nunca tinha passado por uma seca assim, de ver o açude secar desse jeito – afirma Aloíso Hemckes, residente desde 2011 no assentamento Estância Velha, em Hulha Negra. Do reservatório de água, utilizado preferencialmente para dessedentação do gado leiteiro, sobrou o lodo à mostra, já ressecado e rachado pelo sol, e umas poucas e rasas poças de água barrenta numa margem. “Estamos levando o gado beber água longe, em um açude menor e de menos qualidade, mas até lá já está secando”, afirma o assentado.
Situação semelhante vive o casal Sebastião Francisco Cerpa e Rosemar Fátima Engelman, residentes no assentamento Santa Elmira. Desde que a produção de leite foi inserida como atividade principal no lote, que não passavam por dias de tanta dificuldade. “A água que tem é pouca e barrenta, o gado bebe menos e isso afeta a produção do leite”, conta Sebastião. Outro ponto decisivo que está conduzindo a uma quebra de aproximadamente 30% da produção leiteira na unidade produtiva é o pasto, que está ressecando e morrendo: “Os animais estão ficando com pouco alimento, aí perdem peso e produtividade”, lamenta Rosemar. Segundo o casal, naquele lote e vizinhança já faz mais de mês que não chove, agravando o cenário que já era de chuva insuficiente no final do ano passado.
Prefeitura, Emater e cooperativas dedicadas ao beneficiamento do leite apontam perdas de 20% no período, que podem se agravar em cenário futuro, em consequência das perdas nas lavouras de milho e a impossibilidade da produção de silagem de qualidade que costumeiramente suplementa a alimentação do gado no período do outono e inverno.
Soja vai ser afetada
No assentamento Conquista da Fronteira, embora também esteja tendo perdas no leite e no milho, a maior preocupação está com os danos que vão crescendo a cada dia no plantio de soja: “Em boa parte das lavouras, se ficar como está hoje, as perdas são de 20 a 30%, o que praticamente inviabiliza apurar algum resultado positivo”, explica o assentado Rudinei Alves, mostrando uma lavoura em que a maior parte da plantação está se transformando em uma mancha amarelada onde neste momento deveria predominar o verde. “Se for como estão falando, que vai passar o resto do mês sem chover bem, a nossa safra vai virar só em prejuízo”, lamenta.
– Nas lavouras de soja que temos vistoriado, notamos perdas expressivas nas cultivares de ciclo precoce, aquelas que já estão em fase avançada de enchimento de grãos -, explica o extensionista da Emater, Guilherme Zorzi. “Essas cultivares, mesmo que tenhamos boa intensidade de chuvas a partir de agora e ao longo das próximas semanas, é provável que não recuperem mais”, acrescenta, explicando que isso se dá porque o ciclo da cultura já está chegando no seu final. Conforme as informações da Emater, essas cultivares representam cerca de 20% da área plantada, que está estimada em 15 mil hectares na totalidade. “As cultivares de ciclo médio e um pouco mais tardio ainda tem condições de aguentar um pouco mais de dias sem chuva e recuperar boa parte do potencial produtivo, mas será preciso que se confirme a informação de que a chuva poderá normalizar a partir da segunda quinzena de fevereiro”, finaliza.
O prefeito municipal, Carlos Renato Teixeira Machado, demonstra preocupação com a situação: “Mesmo que a chuva normalize, que se recupere o potencial produtivo do que ainda é possível, na melhor das hipóteses o produtor vai colher o suficiente para cobrir seus custos. Para se recuperar mesmo, somente na próxima safra”. Os efeitos da estiagem, que castigam os agricultores se refletem no município como um todo, cuja economia depende essencialmente do setor primário.
Para Emerson Capelesso, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e diretor de uma cooperativa sediada na região, a situação dos camponeses assentados está se tornando cada dia mais grave, sem que se veja um envolvimento mais forte do governo estadual ou do governo federal. “Eles não estão dando atenção para um problema grave, hoje é o agricultor que perde sua planta e fica com a unidade produtiva inviabilizada, mas amanhã isso vai se refletir no estado, que vai perder arrecadação, a economia que vai se ressentir da ausência dos recursos que são gerados a partir do setor primário, o comércio vai perder movimentação, as famílias vão perder com a oferta menor de alimentos de boa qualidade”, enumera o dirigente.
Milho X Leite
Entre todas as culturas, o caso do milho é o mais grave. Zorzi explica que os efeitos do déficit hídrico são bastante claros: “As folhas secam a partir de baixo, vão secando e vai subindo pela planta, isso justamente na fase da formação da espiga, em que quase todas as lavouras entrando na fase reprodutiva, quando são mais sensíveis à falta de chuva.
– Alguns produtores tem relatado que vão encilar as lavouras com mais de 30 dias de antecedência do que estava previsto, mesmo sem espigas formadas, para poder aproveitar a massa verde antes que a planta toda fique seca e não possa nem ser encilada mais”, explica. Para ele, essa situação é duplamente desfavorável, pois além do prejuízo financeiro imediato, deixa um novo revés programado para o futuro imediato: “Agora p produtor tem as perdas na lavoura e, no período do outono e do inverno, quando precisa utilizar essa cilagem para complementar a alimentação do gado, não vai ter material de qualidade para oferecer aos animais”, registrando assim prejuízo reincidente no leite.
Mas o problema não para por aí. Com o pasto secando e a silagem de baixa qualidade devido as perdas já registradas na cultura do milho, em concomitância com a escassez de água, o gado leiteiro é afetado com a perda de peso e de níveis de produção. Outro aspecto que preocupa os produtores é a incidência de “leite lina”, que se agrava devido à situação de alimentação de má qualidade e água insuficiente, resultando em produto que embora esteja em condições aptas ao consumo, não é aprovado para coleta e utilização em processos industriais. As causas são diretamente associadas à seca, principalmente a alimentação desequilibrada.
A Emater tem também registros de perdas na produção de gado para abate, principalmente pela dificuldade da rebrota do pasto nativo. O alimento acaba tendo que ser complementado, mas o déficit hídrico acumulado já induz a perda de peso.
Estado crítico:
Embora Hulha Negra ainda não tenha optado pela declaração de Estado de Emergência devido à seca (ironicamente em meados de 2019 o município foi obrigado a declarar SE devido ao excesso de chuvas), o indicativo é de que em breve essa situação seja oficiada aos órgãos responsáveis, em caso de não acontecer uma imediata normalização dos volumes de chuva.
Até o encerramento dessa reportagem (12/02) a prefeitura informava o atendimento de 350 famílias com caminhões pipa devido à escassez de água potável para consumo humano em muitas localidades. “As necessidades da população vão crescendo e a gente vai tentando atender conforme é possível, garantindo o básico para cada um, porque até o momento ainda não temos nenhum tipo de ajuda da parte dos governos estadual ou federal”, aponta o prefeito Carlos Renato, mostrando em seu telefone dezenas de imagens de famílias sendo atendidas pelos dois caminhões pipas de que o município dispõe. “Estamos reunindo informações para tentar sensibilizar o governo”, acrescenta.
A situação na região da Campanha só não ainda mais grave porque pelo menos 230 famílias dos municípios de Hulha Negra, Aceguá, Candiota e Pedras Altas instaladas em regiões de deficiência hídrica foram beneficiadas por um programa executado ao longo de 2019 via CIDEJA (Consórcio Público Intermunicipal de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental dos Municípios da Bacia do Rio Jaguarão), Ministério da Cidadania e Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ) que viabilizou a construção de cisternas de placas na região (número que deve crescer até as 283 unidades previstas).
Disparidade da precipitação
Os cenários na região da Campanha são característicos do que tem se afirmado neste período de estiagem: a precipitação de chuva, quando acontece, se dá de forma desigual, muitas vezes beneficiando alguns trechos e deixando outros muito próximos sem qualquer umidade. Andando poucos quilômetros se pode passar de um cenário de desolação total e perdas que beiram a totalidade, para lavouras que ainda não se ressentiram da falta de chuva.
Assim como já se pôde registrar em outras regiões do estado, a Campanha está passando pela chamada “seca verde”, onde não há interrupção total das chuvas, mas os níveis que acontecem ficam muito abaixo do necessário para o desenvolvimento adequado das culturas de verão. A referência à cor verde se dá pela vegetação mais resistente que logo recupera sua vitalidade ao sinal de poucos milímetros de chuva, contrastando com os plantios que vão minguando e perdendo o potencial produtivo conforme as lavouras ficam sem acesso ao nível de precipitação necessários. Embora a coloração verde predomine, o nível de produtividade cai drasticamente.
Embora os institutos de meteorologia apresentem cenários divergentes – alguns indicando retomadas das precipitações na segunda quinzena de fevereiro, outros apontando apenas para meados de março -, a Defesa Civil do Estado do RS tem emitido boletins diários abordando o tema da estiagem e tem reiterado o alerta de que as baixas e inconstantes precipitações devem persistir nas próximas semanas em todo o estado.
Ao todo 115 municípios do RS estão em Situação de Emergência declarada ou em fase de formalização. Porém, até o momento se teve informação de apenas 13 homologações por parte do Governo do Estado e só 7 reconhecimentos pelo governo federal. A reportagem do jornal Brasil de Fato segue mobilizada, percorrendo o interior do RS e registrando os efeitos de mais um ciclo de estiagem que se abate sobre o estado.