11 de julho de 2021
Joana Horta e Leila Santana
ELA e MPA Brasil | Chapada da Diamantina (BA)
A fome, além de se caracterizar como uma forma de violência à vida humana, é, para o capitalismo uma das formas de controle sobre corpos e territórios. Este controle tem implicado na condição e liberdade de um povo de produzir, se alimentar e viver. Corpos com fome não lutam e, quando se põe em luta, o fazem com muita limitação. A fome está entre nós e vem crescendo desde o golpe promovido contra a Dilma Rousseff. Quando começamos a alardear o grau de mortalidade do COVID-19, ainda em 2019, algumas pessoas se queixaram que fome matava mais e não gerava essa comoção. Hoje temos consciência de que à pandemia se soma a fome, fruto do aprofundamento das desigualdades estruturais imposta ao povo brasileiro. De fato, carecemos nos rebelar diante do quadro nacional da fome e ajudar a sociedade a se mover em direção aos coletivos e organizações que, efetiva e estrategicamente, travam uma batalha para garantir e/ou produzir o alimento limpo, agroecológico de um lado e, ao mesmo tempo, pautando a soberania alimentar para o povo brasileiro, povo este abandonado por um chefe de estado que avisou que “iria garantir o filet mignon para seus filhos”.
Para esse enfrentamento é preciso ser como Josué de Castro, localizar a centralidade da desigualdade e falar, sem eufemismos, que a gente está tratando de fome, e que ao falar da fome faremos uma demarcação política das desigualdades dentro de um país e de um povo que foi, historicamente, explorado e subalternizado. Deste lugar o Nordeste, por vários processos históricos, políticos, agrários e etc, foi colocado dentro de uma relação de subalternização, posto como fornecedor de matéria-prima, local de grande exploração de trabalhadores/as oprimidos/as, territórios expropriados, mulheres mercantilizadas e natureza ameaçada, tudo em função de um suposto “desenvolvimento nacional” que só produziu mais desigualdade e fome e que, na atualidade, tem revelado através dos dados que a fome tem cor e gênero bem demarcados no Nordeste (mulheres e o povo negro) dentro do avanço capitalismo que caminha de mãos dadas com o caráter neofascista do Governo Bolsonaro.
No nordeste, a marca da fome está no corpo das trabalhadoras e dos trabalhadores, do campo e da cidade, nas mulheres, no povo negro, no povo indígena, na população de rua, nos LGBTQI+, que estão no centro das desigualdades sociais. Daí que é preciso demarcar a fome e seu estado crescente não é só como um dado relativo ao tempo presente, mas que reflete a história de colonização do País e de uma parcela muito grande dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.
Na longínqua década de 1950 do século passado, Josué de Castro, o médico, transformava-se em geógrafo e passava a olhar a má nutrição de um ser humano como parte do funcionamento da sociedade capitalista. Castro identificava, por exemplo, a alimentação sertaneja uma das mais balanceadas do País e concluiu que o regime alimentar no sertão nordestino atendia com equilíbrio às necessidades nutricionais de seu povo. Nesse tempo, o médico encontrava uma população livre de artrites, obesidades e diabetes. (CASTRO, 1980, p. 207). A fome e as secas, dessa forma, somente se justificavam pela ausência do Estado no auxílio e pela presença do Estado como elemento de pressão social. Os tempos são outros, somam-se novas pressões, mas a necessidade de enxergar a fome em sua amplitude segue a mesma.
Fome e Gênero
Não estranha que a retirada de Dilma Roussef, através de um golpe hoje comprovado, tenha sido acompanhada pela volta do País ao mapa da miséria. Na miséria, a fome traz consigo a violência de gênero, muito bem representada na forma em que foi conduzido o impeachment da presidenta.
Instala-se a insegurança generalizada, com a perda de direitos conquistados com muita luta e o enfraquecimento de políticas de segurança social. E dentro desse quadro, as mulheres negras estão no epicentro da violência promovida por esse Estado. Da senzala à empregada doméstica da atualidade, a condição das mulheres negras pouco saiu do lugar.
É consenso que a mulher enfrenta um lugar de maior vulnerabilidade. É a mãe, mulher, quem primeiro corta a proteína ou a variedade de seu prato para oferecer aos filhos ou ao marido a melhor refeição. E são também as mulheres que assumem as frentes de trabalho de combate à fome.
O mapa da fome
No dia 07 de julho de 2021, foi realizado o Encontro Regional Nordeste da Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que reuniu cerca de 200 representantes de organizações, conselhos de segurança alimentar, pesquisadores e sociedade civil. Através de um processo de escuta, 8 grupos de trabalho apresentaram seus saberes sobre a fome na região nordeste. Foi consenso entre os participantes que a fome está sendo vista e sentida e que a unificação em torno da retirada do governo Bolsonaro é caminho para a erradicação da Fome.
O encontro apresentou ainda os resultados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).
A pesquisa mostra que, em 2020, a Insegurança Alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares de 2004. “Mais que isso, foi anulado, para parcela significativa da população brasileira, o sucesso obtido entre 2004 e 2013 na garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável”, aponta o documento.
Em 2018, eram 10,3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave, passando para 19,1 milhões, em 2020. Portanto, neste período, foram cerca de nove milhões de pessoas a mais que passaram a ter, no seu cotidiano, a experiência da fome no Brasil.
Organização social para o enfrentamento à fome
Os movimentos sociais do campo, como MPA, a Via Campesina, MST e alguns grupos progressistas vêm constantemente denunciando e combatendo a situação de fome. Vemos aquelas que menos tem “segurança alimentar” compartilhando o que possuem para quem tem fome. É o caso de um grupo de mulheres camponesas, que vivem no interior do interior da Bahia, no município de Lençóis e que há um ano tem tirado de seus quintais os alimentos que consomem, e excedentes para a venda e para a doação. Os alimentos agroecológicos produzidos pela Cesta da Volta (@cestadavolta) são limpos, diversos, múltiplos, naturais e saudáveis. E assim como neste caso pontual, milhares de toneladas de alimentos, produzidos por camponeses, agricultores familiares, em sítios, assentamentos ou quintais, foram doados e distribuídos a grupos e comunidades que têm sobrevivendo sem auxílio do Estado, desde o início da pandemia.
A parcela da população que produz e doa alimento parece ter mais facilidade em enxergar a fome do que aquela parcela que encontra as prateleiras de supermercado abarrotadas de produtos ultraprocessados, “comestíveis”, produzidos por grandes corporações que concentram, como nunca, as riquezas. Entre essas corporações estão àquelas vinculadas ao sistema agroindustrial e que se apropriam do discurso da doação e da caridade, sem de fato retornar à sociedade o que recebe dela. A classe média, que alimenta sua família mas fecha os olhos para os irmãos que vagam pelas ruas, tarda a perceber que está na mira da epidemia de fome que vem devorando o país. É preciso enfrentar a cegueira e conter a sangria que vivemos hoje.
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