25 de março de 2023
Emiliano José
Caros Amigos
Eu o conheci às margens do Rio Corrente.
Em terra de monstros e assombrações surgidos das águas, espantados pelas carrancas de Francisco BiquibadyLa Fuente Guarany. Monstros e assombrações revelados pela pena de Osório Alves de Castro em “Porto Calendário”, em “Maria fecha a porta prau boi não te pegar”, autor que mereceu a bênção carinhosa, entusiasmada de Guimarães Rosa, a ver sua grandeza.
Foi nela também, nessa mesma terra, em 1977, que a rua foi tingida de vermelho pelo sangue de Eugênio Lyra, jovem advogado de posseiros, morto por sicários à luz do dia, a mando de latifundiários.
Santa Maria da Vitória fica nas lonjuras do Oeste da Bahia, a quase 900 quilômetros de Salvador, e dessa terra se diz que quem bebe de sua água jamais esquece.
Terra difícil de chegar, mais difícil de sair pelas suas muitas seduções.
Foi nessa terra, nesse município de tanta história, que nasceu Clodomir Morais, em 30 de setembro de 1928. A ela voltou, já no outono da vida, que o feitiço da água do Rio Corrente não é fácil de quebrar.
Foi nela que passou a dormir para sempre no início da tarde de 25 de março de 2016, uma sexta-feira.
Foi de Santa Maria da Vitória, onde já estive tantas vezes, que recebi naquele dia o telefonema de Joaquim Lisboa Neto – Kynkas, só o conhecem com esse nome, com essa grafia.
Morreu Clodomir.
Logo depois das 13h, a ligação.
Ouvi com tristeza.
Mas, pensei: uma vida a ser celebrada, tão grande fora.
Kynkas – eu só o chamo, verdade, verdadeira, de Quincas Berro D´Água, que ele evoca em mim o personagem de Jorge Amado – me pedia que o homenageasse de algum jeito.
Tinha merecença pra isso. Demais, sei disso.
Pena não esteja à altura de tanta merecença.
Pena não soubesse por que caminhos homenageá-lo.
Escrevo.
Esclareço: Quincas Berro D´Água é um dos santos-loucos-revolucionários daquela terra.
Organizou a Biblioteca Campesina – a maior biblioteca pública não-estatal de todo o Oeste da Bahia, mais de 20 mil volumes, devidamente catalogados, principalmente obras voltadas à literatura e história camponesa. Um arquivo monumental da imprensa alternativa. Coisa rara, aquele ajuntamento de livros e de jornais.
Dele, Clodomir Morais, ouvi histórias.
O espírito revolucionário despontou cedo.
Frequentou escola pública e privada, no primário. Não terminou nenhuma, tão rebelde era. Foi expulso das duas.
O pai o encaminha a um amigo para aprender ofício – de alfaiate. Ofício naquele tempo era importante – e quando não é? E para que não se apequenasse, mandou-o aprender a tocar clarinete e saxofone. Alfaiate e músico – uma boa mistura, pensou o pai. Passar fome, ia não. E ainda podia fazer a alegria de algumas festas.
Na adolescência, início dos anos 40, São Paulo.
Pai que era pai, então, à falta de oportunidades no Nordeste Graciliano, mandava filho pro Sul.
Termina o primário. Estuda em colégio dos Salesianos, onde podia trabalhar e estudar.
Eram 609 alunos internos e 1.300 externos, a maioria filhos de emigrantes italianos e alemães, simpatizantes de Hitler e Mussolini. Clodomir Morais, único nordestino, único mulato. Negro, cabeça chata – os colegas o chamavam assim, ou o xingavam assim. Faziam bullying com ele, como se diz nos dias de hoje. Nunca se deixou abater. Tinha consciência de seu valor. Passa por um colégio agroindustrial adventista, que também lhe permitia trabalhar. Trabalha na Ford durante dois anos, chega a inspetor de linha de montagem.
Segue viagem de volta ao Nordeste, aí já pra Salvador, onde fundou o jornal A Crítica, de oposição ao governador Régis Pacheco, depois Recife, vida adulta. Torna-se jornalista, e dos bons: trabalha no Diário de Pernambuco, Jornal do Commércio, Diário da Noite, Folha da Manhã, Correio do Povo. Faz a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. É eleito deputado estadual nos anos 50, militando no PCB.
O ímpeto revolucionário o leva para os braços das Ligas Camponesas, a mais aguerrida organização dos trabalhadores rurais, que incendiou corações e mentes do Brasil rural, principalmente entre 1955 e 1964, quando foi violentamente reprimida pela ditadura militar implantada em 1º de abril de 1964.
Esteve lado a lado com Francisco Julião, o mais importante líder das Ligas. Está em minha memória até hoje “Até quarta, Isabela”, carta escrita por Julião à filha de apenas dois meses, transformada em livro. Amargou prisão e exílio quando sobreveio o golpe de 64. Grande Julião.
Clodomir faz a síntese das lutas camponesas no Brasil desde 1945, num pequeno livro de quase 100 páginas, com prefácio e tradução de Quincas Berro D´Água – Joaquim Lisboa Neto. (“História das Ligas Camponesas do Brasil”. Brasília: IATTERMUND, 1997). É uma preciosidade. Sabia não: Julião e o padre Alípio de Freitas, que era de Ação Popular, disputavam a direção do movimento em 1962.
Havia a proposta de realização do 1º Congresso das Ligas Camponesas do Brasil em junho de 1964, mas surgiu o monstro com suas patas de ferro e suas metralhadoras e suas prisões em 1º de abril.
No Nordeste, as Ligas foram a organização que mais sofreu prisões, inclusive assassinatos. O apogeu político delas deu-se exatamente nos primeiros meses de 1964, às vésperas do golpe – devia congregar nacionalmente entre 70 e 80 mil militantes.
Preso em 1964, compartilha cela com Paulo Freire.
Segue para o exílio. Faz especialização em Antropologia Cultural na Faculdade de Direito do Chile.
Na Europa, faz doutorado em Sociologia na Universidade de Rostock, na Alemanha, onde torna-se por um tempo professor residente. Foi um longo período longe da pátria, 15 anos.
Nunca depôs armas, militante sempre.
Torna-se conselheiro da ONU para a América Latina em assuntos de reforma agrária e desenvolvimento rural. Dirige projetos de capacitação e organização popular em Honduras, México, Nicarágua e Portugal. Dá consultoria para missões técnicas na Europa, América Latina, África e Ásia, sempre em torno da questão camponesa.
Nunca largou a pena.
Escritor de mão cheia.
Talentoso.
Navegou pelos mares da antropologia, da sociologia, da cultura, da história, da poesia, do conto. Produziu mais de 20 livros.
Seguiu a tradição literária de sua terra, agora ele também um ser encantado a povoar a imaginação dos santa-marienses. As pessoas não morrem, ficam encantadas – a sentença, bendita sentença, é de Guimarães Rosa, o mesmo que se encantou com a literatura de um nascido às margens do Rio Corrente, como revelado no início deste texto.
“O amor e a sociedade” é poesia. “Contos Verossímeis”, volume I, inclui “Pedro Bunda” e “Causos de Sentinela”. No volume II, encontraremos “O ladrão da calça de casimira” e “Mestre Ambrósio”. Há, ainda, “Queda de uma oligarquia”, “Elementos de Teoria de Organização”, “A marcha dos camponeses rumo à cidade”, “Teoria da Organização Autogestionária”, “O reencontrado elo perdido das reformas agrárias”, eis algumas das obras de Clodomir Morais. Muita coisa.
Vamos combinar: não é pra dar razão a Guimarães Rosa?
Não foi este um ser encantado?
Militante, revolucionário internacionalista, poeta, romancista, semeador de sonhos, arauto da liberdade, do socialismo, isso é raro caber num homem só.
Cabia em Clodomir Morais.
Vai continuar na mente e no coração das mulheres e dos homens do Brasil. De todos os Pedro Bunda, os sentinelas, os ladrões de calças de casimira, os homens e mulheres que puxam enxada, que lavram a terra, semeando-a, fertilizando-a com seu suor.
Já acantonou-se na mente e no coração de cada um deles. Encantado, Clodomir já navega pelo Rio Corrente, acena para os ribeirinhos, para os camponeses, trabalhadores, para os que o veem passar na barcaça com a carranca de Guarany na proa, sussurra no ouvido de cada um: sempre há um futuro para os excluídos. Eles ouvem o sussurro. Clodomir tem dúvidas se eles o ouvem mesmo. Grita, sem assustar ninguém: SÓ DEPENDE DE VOCÊS!
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