28 de fevereiro de 2022
Com produção de café orgânico e hortaliças, famílias atingidas vivem clima de tensão e resistem à pressão de fazendeiros
Murilo Pajolla
Edição: Camila Salmazio
Brasil de Fato | Lábrea (AM)
Uma aeronave lançou agrotóxicos sobre áreas de cultivo de café orgânico, frutas e hortaliças no sul do Amazonas. Até então inédita na região, a “chuva” de veneno foi direcionada às últimas comunidades remanescentes de pequenos produtores no município de Apuí, que resistem ao avanço da pecuária extensiva.
A substância química causou danos em culturas de laranja, limão, mandioca, abóbora, gergelim e eucalipto. Pelo menos dez agricultores sofreram intoxicação e tiveram a produção prejudicada. Duas das propriedades atingidas produzem café orgânico, no sistema de agrofloresta.
Desde o último fim de semana, quando ocorreu o despejo, moradores temem novos ataques e analisam se é possível recuperar as lavouras. As principais áreas afetadas são dois setores chamados Raulino e Coruja, a cerca de 20 quilômetros da área urbana de Apuí.
A Polícia Civil afirmou ter identificado o mandante do crime, mas não revelou sua identidade, nem se a ação teve como objetivo intimidar os agricultores. Na terça-feira (22), policiais colheram amostras da vegetação que serão periciadas em Manaus (AM).
Com um dos maiores índices de desmatamento do estado, Apuí vê cada vez mais áreas de floresta serem convertidas em pastos. Sem alternativa econômica, agricultores que chegaram à região há quatro décadas têm vendido terras aos pecuaristas e abandonado a área.
Sete vezes mais boi do que gente
A ocupação da região atingida pelos agrotóxicos remonta ao começo da década de 80, quando o Incra criou o Assentamento Rio Juma, o maior da América Latina. Com capacidade para 7.500 famílias, o objetivo era atrair colonos principalmente do Paraná. O município de Apuí seria criado anos depois, em 1988.
Hoje as terras da agricultura familiar estão no caminho da expansão da fronteira agropecuária, que chega principalmente por meio da BR-230, a rodovia Transamazônica. A falta de infraestrutura, como rotas de escoamento da produção, também é um fator de evasão dos assentados.
“A dinâmica lá está muito grande de procura por terra, como nunca se viu. As famílias, com pouca assistência para permanecer no setor primário, uma carência histórica no Brasil, elas vão vendendo terra. E essa terra está sendo desmatada para pasto”, afirmou a coordenadora técnica do projeto Café Apuí, Marina Yasbek Reia, em entrevista ao Brasil de Fato em agosto do ano passado.
Em 2021, Apuí liderou o ranking de cidades com mais focos de queimadas no estado do Amazonas, junto com o município de Lábrea (AM), segundo dados da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema).
Nos últimos anos, o sul do Amazonas foi convertido em um polo de produção de carne bovina no estado. Do tamanho do Rio Grande do Norte, Apuí tem 160 mil cabeças de gado, sete vezes mais do que a quantidade de moradores, estimada em 22,7 mil pelo IBGE.
Conquistas ameaçadas
Mesmo assim, Apuí dá exemplo na produção de café orgânico. Atualmente mais de 30 famílias têm no produto sua principal renda anual. Desde a década de 1980, o café já era cultivado pelos moradores, mas, nos anos 2000, começou a entrar em declínio.
O cultivo ganhou novo fôlego com a introdução da agrofloresta, método que une plantações de valor comercial com árvores que ajudam a adubar o solo. O projeto foi implementado com auxílio técnico do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam).
O resultado foi o aumento da produtividade e a preservação ambiental, além da obtenção do selo orgânico, conquistas ameaçadas pela pressão da pecuária. Procurado pela reportagem, o Idesam afirmou que emitirá posicionamento em nota a ser publicada em breve.
Identidade do mandante permanece em sigilo
Na terça-feira (22), as polícias Civil, Militar, Federal e Militar Ambiental estiveram na área mais prejudicada pela “chuva de agrotóxicos”. Eles constataram a destruição das plantações e coletaram amostras da vegetação atingida.
O inquérito aberto sobre o caso investiga crimes ambientais, além de intoxicação humana e danos materiais. A Polícia Civil identificou o piloto da aeronave que lançou a substância de maneira irregular. Ele se propôs a arcar com o prejuízo que provocou aos agricultores.
O contratante do serviço também foi identificado pela investigação, mas sua identidade permanece em sigilo. Um comunicado da Polícia Civil se limitou a dizer que o mandante “tentou fugir das responsabilidades”, sem informar se houve prisão.
Segundo um produtor de café ouvido pela Polícia Civil, o primeiro sinal de contaminação foi o desaparecimento de pássaros e insetos que se alimentam das plantações. Dias depois, as folhas começaram a amarelar.
O material foi enviado para o Instituto de Criminalística (IC) do Amazonas, em Manaus, onde passará por perícia. O objetivo é identificar qual substância foi utilizada e comprovar o uso dos agrotóxicos de maneira irregular.
“O objetivo da diligência foi colher os vegetais afetados para enviar a perícia técnica e verificar se o agrotóxico estava licenciado pelos órgão de controle da União, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, além de averiguar as colônias que foram afetadas”, disse o delegado Francisco Rocha.
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