15 de dezembro de 2022
Com a crise alimentar no centro das preocupações do novo governo Lula, é fundamental entender que ela não se resolve sem que cheguemos ao autoabastecimento nacional. Ou que as importações sejam algo complementar e episódico, em função de situações específicas como quebras de safras.
Atualmente temos um déficit significativo na produção dos alimentos básicos para uma dieta nutricionalmente correta. Embora a propaganda na TV afirme que “agro é tec, é pop e é tudo”, este agro, o agronegócio capitalista, não está voltado para a produção de alimentos para o consumo popular. Boa parte dos alimentos consumidos pelo povo vem da produção da agricultura familiar, mas também neste extrato do agro, esta produção vem caindo paulatinamente, nos últimos 30 anos. A lógica capitalista domina o nosso agro, seja o agronegócio ou seja a agricultura familiar. Pode levar um tempo para as mutações acontecerem, mas o mercado acaba comandando o que é produzido, predominando o que remunera melhor o agricultor, grande ou pequeno.
E, na lógica do mercado, quem paga melhor são as firmas exportadoras com preços ditados pela bolsa de Chicago e pelas compras dos chineses. E a demanda vai sobretudo para a soja e o milho, ou para carnes de frango, porco ou gado bovino. Ou para açúcar, madeira e polpa de papel, suco de laranja, cacau e café. Os produtos dirigidos para o nosso mercado interno acabam tendo preços que são definidos pelos dos produtos do mercado internacional e que não pararam de crescer nos últimos 10 anos.
Tudo isto é para dizer que, se quisermos aumentar a produção de alimentos para o consumo popular, cuja demanda vai crescer com a nova Bolsa Família, precisamos levar em conta esta competição internacional e nacional, onde a produção para os mais pobres perde sempre para a produção dirigida aos mais ricos, aqui e no exterior.
Para corrigir este desvio do mercado, vai ser necessário uma política de preços mínimos capaz de atrair os produtores de todos os tamanhos para a produção de arroz, feijão, milho, mandioca, trigo, hortaliças e verduras e frutas, entre outros produtos de menor demanda. É mais provável que esta política atraia sobretudo os agricultores familiares do que os megaprodutores do agronegócio. Os vínculos dos grandes com as cadeias dos principais produtos de exportação são consolidados e não creio que haja muita gente entre eles disposta a trocar a segurança de um mercado em alta permanente por um mercado dependente da intervenção do Estado.
Temos um segundo problema a resolver nesta promoção da produção de alimentos. Desde os tempos da ditadura militar que o Estado vem favorecendo um modelo de produção baseado no uso de sementes de variedades melhoradas cientificamente, aplicação de adubos químicos e de agrotóxicos, além do uso de mecanização pesada do preparo até a colheita. Além de ter imensos impactos negativos nos solos, águas e ar, assim como na biodiversidade natural e na agrícola, este modelo está em franca crise devido aos seus custos cada vez mais elevados. Como se trata de um modelo produtivo centrado no uso de recursos naturais não renováveis, como derivados de petróleo e gás e minerais como potássio e fósforo, cabe perguntar como estão as reservas destes insumos essenciais para a produção do agronegócio e do agronegocinho. E como elas estão em declínio, seus preços vão ficando, ano após ano, mais altos e tudo isto incide sobre os preços dos produtos agrícolas.
Está chegando o momento em que vai ser preciso mudar o modelo e adotar um mais sustentável e com preços menos escorchantes. Na verdade, os sistemas agroecológicos só não são hoje mais baratos do que os convencionais porque estes se beneficiam de uma enorme vantagem em termos de subsídios. Mas uma mudança radical não se faz do dia para noite e cobra uma etapa de transição.
A transição para a produção agroecológica depende de vários fatores: o preço dos alimentos deve ser garantido pelo governo e deve remunerar corretamente os agricultores pequenos ou grandes. Por outro lado, abandonar as práticas convencionais pelas agroecológicas exige um forte apoio em assistência técnica. Por sua vez, a assistência técnica depende da formação de agrônomos e técnicos agrícolas voltados para as práticas agroecológicas e isto toma tempo.
O governo deveria dar início a uma transição para a produção agroecológica com uma dupla iniciativa. Para a massa de produtores grandes e pequenos, que já usam os insumos industriais, a orientação deve ser para a produção de alimentos, buscando ir substituindo estes insumos por outros, orgânicos. Isto funciona melhor em propriedades menores, mas há exemplos de operações de substituição de insumos em grande escala e com bons resultados agronômicos e econômicos. Vai ser preciso também favorecer a produção dos insumos alternativos, em particular com a compostagem de lodo de esgoto e de lixo orgânico. A produção estendida de adubo orgânico pode, no médio prazo, superar a nossa terrível dependência da importação de adubos fosforados e de potássio. O mais difícil (pela resistência do agronegócio) nesta transição vai ser a retirada paulatina dos subsídios para o uso de adubos químicos e agrotóxicos. Infelizmente, as experiências da FAO na Ásia e na África com produtos como arroz e algodão mostraram que os subsídios distorcem a concorrência e favorecem a produção insustentável. Retirá-los é fundamental.
A segunda iniciativa diz respeito a um público de produtores que já está engajado na transição agroecológica e que necessita apoio financeiro, técnico e de preços para completar o processo. Segundo algumas estimativas, são perto de 200 mil agricultores familiares, a maioria engajados nas primeiras etapas da transição. Apoiá-los cobra a definição de uma política adequada.
Durante os anos dos governos de Lula e de Dilma, várias políticas foram aplicadas visando apoiar a transição agroecológica. As mais importantes foram a de crédito (Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] agroecologia e Pronaf semiárido), a de assistência técnica (PNATER – Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural) e a de compras públicas (o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos e o PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar). Todas elas tiveram problemas de concepção e/ou de execução.
No caso do crédito, as modalidades do Pronaf voltados para a agroecologia foram mal concebidas e encontraram resistências da rede bancária na sua execução e tiveram um acesso minúsculo pelos agricultores familiares. O crédito Pronaf funcionou essencialmente na promoção do modelo de produção agroquímico, típico do agronegócio, e ajudou a promover o que veio a ser chamado de agronegocinho. O acesso às modalidades voltadas para a agroecologia sofreu ainda com a política de seguros adotada pelo governo. O seguro se define como uma proteção ao crédito e não como uma proteção à produção do conjunto da propriedade. É um seguro voltado para produtos (milho, soja, feijão etc) e não para sistemas. E, na sua normativa, este seguro só se aplica para quem aplica as técnicas indicadas pela Embrapa e que são todas voltadas para o uso de sementes melhoradas, adubos químicos e agrotóxicos. Ou seja, quem aplicou as práticas da agroecologia e tomou empréstimos do Pronaf ficou sem cobertura de seguro.
A política de assistência técnica foi objeto de uma queda de braço entre o Comitê de ATER do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf)/ Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o ministério e prevaleceu o direcionamento para a agroecologia nas chamadas para projetos de ATER, financiados pelo governo. No entanto, a concepção destas chamadas induziu ao abandono de metodologias participativas na promoção do desenvolvimento, elemento fundamental para que funcione a transição agroecológica. Estes projetos tiveram ainda uma enorme dificuldade na sua execução em função do modelo burocratizado adotado e das limitações do governo em processar as informações necessárias para o pagamento do apoio. A meu ver toda esta política tem que ser revista se é que queremos, de fato, promover a transição agroecológica.
É preciso também levar em conta a forte limitação da disponibilidade de técnicos com formação em agroecologia e em métodos adequados para promovê-la. Pela falta de técnicos preparados, os projetos aprovados tiveram dificuldades em encontrar quem pudesse operá-los corretamente e o efeito desta carência se fez sentir nos resultados na prática dos agricultores. A meu ver, não podíamos ter optado por financiar apenas projetos de promoção da agroecologia com os recursos do governo, pois faltavam as condições para generalizar esta opção.
O grosso da assistência técnica para a agricultura familiar foi dirigido à promoção do uso de práticas convencionais. Isto se deu pelo fato de que a maior parte da ATER foi feita sem os recursos e exigências do MDA, mas com os que dispunham as Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) dos governos estaduais. Em uma estimativa grosseira, os técnicos das Emater representam 95% de toda a extensão rural no Brasil. Os 5% restantes se encontram nas organizações não governamentais. Embora algumas Emater tenham programas voltados para a agroecologia, a maioria dos técnicos com esta orientação se encontram nas ONGs. São ainda muito poucos para podermos pensar, no curto prazo, em uma universalização de uma ATER agroecológica.
A política de compras governamentais dedicou uma pequena parte dos seus recursos para adquirir alimentos orgânicos ou agroecológicos, inclusive com preços mais remuneradores. Entretanto, ambos os programas tiveram recursos muito limitados, embora eles tenham sido, pontualmente importantes, como suporte da produção agroecológica.
O balanço geral das políticas voltadas para a agricultura familiar indica que o impacto maior foi na direção da adoção das práticas convencionais, sobretudo nas regiões sul e sudeste. O impacto em termos de promoção da agroecologia não foi avaliado, mas eu estimo que ele foi, não só limitado em termos de adesão dos agricultores familiares, como também teve impactos negativos em várias situações, pelos problemas de concepção e de execução já apontados. No entanto, não tenho conhecimento de impactos no nível do abandono da agricultura entre os produtores agroecológicos, enquanto os que enveredaram pela adesão ao modelo dito do agronegocinho tiveram enormes problemas de endividamento e muitos perderam suas propriedades ou passaram a viver da renda do aluguel de suas terras para produtores maiores.
É preciso que sejam estudados os dados do censo de 2017 que indicam a diminuição do número de agricultores familiares em relação ao censo de 2006. São quase 400 mil a menos. É preciso lembrar que, no intervalo entre os censos, foram assentadas perto de 400 mil famílias e isto indica que 800 mil deixaram o campo. Isto se deu em quais regiões? Quais as categorias mais afetadas? Quais as causas deste êxodo? Isto se deu apesar das políticas públicas promovidas pelo governo ou por causa delas?
A minha hipótese é que a maior parte deste êxodo veio das regiões sul e sudeste e tem a ver com a promoção do agronegocinho. Uma minoria se deu bem e “enricou”, como dizem os agricultores, mas um número considerável quebrou. Lembremos que a principal reivindicação dos movimentos sociais do campo (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag; Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar – Contraf, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA), a partir de 2005, foi a renegociação das dívidas dos agricultores com o Pronaf, indicando que as políticas públicas estavam com problemas.
Em outras regiões, houve uma evasão significativa entre os assentados da reforma agrária, em função de vícios nas desapropriações (terras de baixa qualidade em agroecossistemas frágeis) e na distribuição de terras (lotes de tamanho inadequado e mal desenhados) e no apoio à produção (ATER e crédito), bem como infraestruturas produtivas inexistentes, acessos difíceis e limitações nas políticas sociais (saúde, educação, comunicação, energia).
Houve ainda outro tipo de efeito induzindo esta evasão, as maiores dificuldades climáticas produzidas pelo aquecimento global (secas, inundações, geadas) e que arruinaram muitos produtores.
Finalmente, não podemos deixar de mencionar o processo de envelhecimento da população rural, com a aposentadoria de muitos produtores e as dificuldades na sucessão das propriedades, somada à evasão da juventude, desencorajada com as condições de vida mais difíceis no campo.
No meu balanço, de todas estas causas persiste a ideia de que temos de rever as políticas adotadas, tanto as que favoreceram o agronegocinho como as que tentaram apoiar a transição agroecológica.
A meu ver, qualquer tentativa de promover a agroecologia através das políticas usadas no passado vai resultar na repetição dos problemas já identificados acima. Estas políticas se caracterizam pelo que se chama de “caráter universal”. Em outras palavras, elas são dirigidas para todos os eventualmente interessados, até, hipoteticamente, a totalidade da agricultura familiar. Mesmo se pudéssemos redefinir cada uma destas políticas de forma mais correta, elas seriam inaplicáveis para a totalidade do público-alvo. Não só a maioria dos agricultores familiares não está clamando pela agroecologia, como a maior parte deles nem sabe o que é isso. E mesmo se houvesse um grande movimento reivindicativo pela adoção da agroecologia, não existem condições objetivas para a sua promoção em massa. Faltam técnicos para a ATER em número e qualidade para este fim. É preciso ter uma política para formá-los e isto implica em alterar os currículos das universidades rurais e das escolas técnicas. Crédito, seguro e compras podem ser mais bem formulados, mas isto não garante que os agentes financeiros vão colaborar com esta orientação. E vai ser preciso ampliar a pesquisa em agroecologia, de forma a oferecer respostas técnicas adequadas em todos os sistemas produtivos. Tudo isso leva tempo.
Nos próximos quatro anos, a promoção da agroecologia deveria ser dirigida à consolidação das cerca de 200 mil famílias já engajadas na transição agroecológica. No médio prazo, estes agricultores servirão como modelo e exemplo a ser imitado por outros, à medida em que vão se preparando as condições para a adoção de políticas de acesso aberto e generalizado. Serão a semente da conversão da agricultura familiar.
Para apoiar este processo a solução está, não na criação de políticas universais, mas na criação de um programa de dimensões limitadas. Os projetos de transição agroecológica deverão ser definidos coletivamente em grupos de interessados em territórios bem demarcados. Estes projetos deverão prever recursos para atividades de ATER, para a experimentação individual e coletiva de práticas agroecológicas, crédito para a aplicação destas práticas em maior escala em cada propriedade, seguro para o conjunto das atividades produtivas de cada propriedade, infraestruturas produtivas como captação de água e irrigação, cercas, equipamentos produtivos apropriados à escala de cada um, infraestruturas coletivas de beneficiamento da produção, infraestruturas de armazenamento e de comercialização. Lembro que os recursos de crédito não serão acessados em bancos, mas em fundos rotativos geridos pelos projetos e reinvestidos no público-alvo.
Os projetos deveriam ser apresentados por organizações dos produtores em cooperação com entidades de ATER e, se possível, entidades de pesquisa e de comercialização. Devem ser projetos pensados para prazos largos, quatro anos renováveis por duas vezes, mediante avaliação a cada etapa. A dimensão de cada projeto poderá variar em função do tamanho das organizações proponentes, podendo variar ainda de uma comunidade, um conjunto de comunidades agrupado em uma microbacia, por exemplo, um município ou um conjunto de municípios com uma problemática em comum.
Os recursos para estes projetos deveriam ser calculados a partir de levantamento das experiências em curso e colocados em um fundo especial, gerido pelo novo MDA com a representação dos movimentos sociais e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA.
Para concluir, quero defender um subprograma nesta proposta de transição agroecológica. O objetivo desta proposta é o de garantir a melhoria da alimentação da família dos agricultores. Sabemos que existem perto de 1,4 milhões de famílias de agricultores familiares em situação de insegurança alimentar moderada (600 mil) e grave (800 mil). Um projeto de produção de hortaliças, verduras e de criação de pequenos animais naquilo que se chama no nordeste de “ao redor da casa” e no sul de “quintais” poderia tirar estas famílias do mapa da fome e até, como mostra a experiência, auferir alguns ganhos com a venda de excedentes nos mercados de vizinhança. Este deveria ser um projeto dirigido às mulheres e com assistência técnica de mulheres. Eles deveriam incluir um componente de educação alimentar e, se necessário, de culinária, de forma a facilitar a adoção do consumo de alimentos pouco conhecidos do público.
Não vou discutir, por enquanto, como deveria ser alterada a política de pesquisa e a de educação em ciências agrárias. Ou os detalhes de cada uma destas propostas. Fica para outra ocasião.
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