23 de março de 2022
Mateus Quevedo
MPA Brasil | Salvador (BA)
Nos próximos dias, Bruna de Oliveira, ou Bruna Crioula como utiliza nas redes sociais, irá realizar, junto com outros parceiros, o curso livre Alimentação Saudável Numa Afroperspetiva, “uma jornada ancestral para descolonizar o conceito de alimentação saudável e criar um espaço de formação antirracista no campo da alimentação e nutrição”, segundo a nutricionista. Bruna é sócio-fundadora do projeto Crioula, uma plataforma de curadoria e produção de conteúdos sobre alimentação. Crioula não poderia ser uma escolha melhor, lembra as sementes guardadas pelas comunidades tradicionais, livres de venenos, de transgenia e do domínio das grandes corporações, símbolo de autonomia e resistência, e também é a denominação para descendentes de africanos, a gênese do Brasil.
E sobre isto que conversamos com Bruna, acompanhe na íntegra:
MPA: Bruna, sabemos que o sistema agroalimentar vigente hoje faz as pessoas se distanciarem da alimentação saudável, seja por meio de ultraprocessados, seja pela falta de tempo. Você acha que podemos reverter esse distanciamento de que maneira?
Bruna: Penso que reverter não seja a melhor forma de descrever as ações necessárias para aproximar as pessoas de uma alimentação saudável. Isso porque, não é possível reinserir elementos importantes que eram constituintes dos contextos alimentares no passado. A modernidade transformou não somente nossas relações com os alimentos e as etapas da cadeia de produção de alimentos, mas todas as formas de sociabilidade nas sociedades. A urbanização, o advento da mecanização da agricultura e a massiva industrialização dos alimentos são fenômenos estruturais nos sistemas alimentares modernos. Não é possível reverter os efeitos desses fluxos, é preciso propor estratégias de enfrentamentos aos efeitos deletérios de tais fenômenos.
Nesse sentido, vejo necessário que reconheçamos as potências que faziam parte de uma noção de alimentação saudável no passado, buscando atualizar essas estratégias para que sua aplicabilidade seja condizente com as novas necessidades da vida moderna. Eu acredito que podemos estabelecer relações saudáveis nas cadeias de produção e distribuição de alimentos. Eu acredito ser possível construir sistemas alimentares decoloniais, ecológicos e inclusivos. Para isso precisamos estabelecer conexões intersetoriais que abranjam todos os atores e processos inseridos nos sistemas alimentares atuais tendo como base o respeito às culturas locais e ao meio ambiente.
MPA: Você trabalha muito a questão da alimentação em uma afroperspectiva. Quais elementos você acha importante destacar sobre isso? De que forma podemos aproximar as pessoas desse debate?
Bruna: O principal aspecto que desejo destacar no mundo com o meu trabalho é que a cultura, os saberes, as ciências e tecnologias culinárias, agrícolas e alimentares africanas, não meras contribuições, são elementos estruturais na construção da cozinha brasileira, assim como nos sistemas alimentares existentes desde o momento em que o primeiro corpo africano sequestrado desembarcou neste continente pindorâmico. Eu não estou sozinha nessa, existem muitas mulheres pretas cozinheiras, pesquisadoras autônomas ou universitárias e professoras comprometidas em apresentar essas narrativas ancestrais dentro e fora do ambiente acadêmico. Especialmente, considerando argumentos racistas e retrógrados de pesquisadores brancos em afirmar que, por exemplo, a feijoada não é uma criação africana. O que seria dos colonizadores sem os conhecimentos e mão de obra africanos na construção desse país? Quem produziria, colheria, cozinharia, serviria? Quem estava à frente das feiras e mercados alimentares? Quem até hoje trabalha pra que uma grande parcela da população branca não saiba fritar um ovo?
É alarmante ver como a presença africana na culinária brasileira é, constantemente, circunscrita ao estado da Bahia ou recebe estigmas de “comida pesada” ou “comida não saudável”. O Brasil é preto, da pele da maioria dos brasileiros e brasileiras que moram neste território todo o resultado do trabalho escravo e, modernamente, subalternizado de pessoas pardas e pretas. Nossos pratos são afropindorâmicos. Nossa cultura é afropindorâmica. Eu não espero que brancos contem essa história, até porque desde Câmara Cascudo essa história é contada de maneira distorcida. É por isso que eu me aquilombo com outras cientistas e ativistas negras para disputar essa sociogênese. É por esses e muitos outros motivos que estou na equipe realizadora do Curso Livre Alimentação Saudável Numa Afroperspetiva: uma jornada ancestral para descolonizar o conceito de alimentação saudável e criar um espaço de formação antirracista no campo da alimentação e nutrição. Quem tiver interesse nesse debate, fica o convite para conhecer o curso e decidir fazer parte da primeira turma que inicia em abril deste ano.
MPA: A comunicação tem um papel importante para anunciar a agroecologia como também para denunciar o agronegócio. Como você entende essa ferramenta? Que dica dá aos jovens camponeses, quilombolas, indígenas para utilizarem ela?
Bruna: O universo digital é uma extensão do mundo analógico, ocupar esse espaço é uma necessidade nos tempos atuais, mas ele não deve sobrepor as ações locais e a incidência política offline. Nesse sentido, mais do que criar novos perfis nas redes sociais, percebo que é potente somar esforços a iniciativas digitais que já estejam consolidadas nas redes sociais. Ou, que sejam realizadas articulações e trabalho em rede para que as demandas do digital não virem a prioridade das lutas. É muito difícil ter constância, frequência e conteúdos de qualidade para terem um bom engajamento quando não somos minimamente familiarizados com as dinâmicas da internet. É claro, se você gosta da área da comunicação, tem facilidade em utilizar as ferramentas necessárias para criação de conteúdo, vá em frente com essas atividades. É muito importante construir uma equipe que possa dividir as tarefas de registros, sistematização e divulgação nas redes.
Entre em contato com ONGs, associações, cooperativas, influenciadores digitais para fazer suas pautas alcançarem públicos mais abrangentes que talvez, seu trabalho no início não consegue atingir. Eu me coloco à disposição para auxiliar a juventude campesina nesse caminho. Tanto o meu perfil individual quanto as redes da minha empresa Crioula | Curadoria Alimentar estão abertos para acolher os talentos desse segmento que já faz muito e precisa apenas de um megafone para amplificar suas vozes. Segue lá a gente em @brunacrioula e @crioulacuradoria e entra em contato conosco.
MPA: Como surgiu o interesse para trabalhar estes temas?
MPA: Me definir como nutricionista ecológica, comunicadora popular e pesquisadora alimentar é uma síntese do trabalho que desenvolvo hoje, um reflexo de uma construção e constantes renovações desde de muitos anos. Desde a infância e adolescência sou mobilizada pelas questões ambientais. De trabalhos escolares à representação de turma, sempre estive à frente de mobilizações em defesa do meio ambiente e por condições de qualidade para o movimento estudantil. Durante o ensino médio, um trabalho que fiz sobre a fome no mundo me atravessou e me fez seguir a graduação em nutrição. Eu já era um ser social, mas minha subjetividade política se desenvolveu durante a universidade em defesa do Sistema Único de Saúde – SUS e da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional por meio da popularização da biodiversidade alimentar brasileira. Feminismo negro, ecossocialismo são abordagens que me aproximei e fui aprofundando meus estudos até viver experiências profundas e marcantes junto à famílias quilombolas no quilombo Kalunga a partir de 2017. Um divisor de água na forma como eu me via e entendia meu trabalho. De maneira circular e num crescimento em espiral sigo aprendendo e deixando no mundo uma marca biodiversa, solidária e amorosa.
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