29 de agosto de 2024
by GRAIN | 15 Aug 2024 Seeds
Até o final da década de 1990, a Monsanto atuou sobretudo como uma empresa focada na produção e venda de pesticidas químicos. Embora sejam devastadores para a biodiversidade e a saúde humana, esses produtos matam insetos de forma rápida e indiscriminada e são ideais para pulverização de rotina sobre grandes extensões de monocultivos . A empresa não tinha nenhum interesse em pesticidas não químicos, como aqueles produzidos com o micróbio Bacillus thuringiensis (Bt), encontrado no solo. Os chamados biopesticidas têm ação mais lenta e são adequados para a produção em menor escala, com o monitoramento atento das culturas pelos agricultores e agricultoras, sendo pulverizados apenas quando necessário. Embora menos prejudiciais, os biopesticidas geram muito menos dinheiro para as empresas, pois geralmente estão fora do alcance da indústria das patentes.
O interesse da Monsanto no Bt aumentou com o advento da engenharia genética. A empresa percebeu que poderia inserir genes do Bt nos vegetais, permitindo a produção ininterrupta da toxina em toda a planta. Isso poderia transformar o biopesticida em algo mais parecido com um pesticida químico, adequado ao monocultivo industrial. Além disso, a Monsanto poderia patentear esse Bt produzido por engenharia genética e integrá-lo em sua estratégia mais ampla de domínio da indústria das sementes.
Produtores orgânicos, que há gerações já utilizavam o Bt de forma cuidadosa para não incentivar a resistência em insetos, sabiam que, se a Monsanto avançasse com seus planos, o desenvolvimento de resistência em insetos seria inevitável. Duas décadas depois, com múltiplas espécies de insetos resistentes às culturas com Bt, sabemos que essa avaliação estava correta.[1]
Ironicamente, a Monsanto, comprada pela Bayer em 2018, é agora uma das diversas empresas de pesticidas que adotam uma abordagem agressiva com o objetivo de dominar o mercado global de biopesticidas. Enquanto há algumas décadas apenas um punhado de empresas se envolviam com o setor , hoje estima-se que cerca de 1.200 empresas atuem com os bioinsumos. A maioria são startups e empresas de médio porte, mas todas as principais corporações agroquímicas estão envolvidas, como Bayer, BASF, Corteva, FMC, The Mosaic Group, Syngenta, UPL e Yara.[2] Elas estão avançando no setor com sua típica agressividade, por meio de aquisições, acordos de licenciamento e fusões (ver Tabela 1).
Aumento do interesse corporativo
Em todo o mundo, agricultores e agricultoras sempre criaram e utilizaram misturas de diferentes produtos naturais para proteger o plantio contra insetos ou para ajudar na fertilidade do solo. A prática é tão antiga quanto a própria agricultura, e as fórmulas desses “bioinsumos” eram passadas de geração em geração. Hoje, a maioria dos agricultores, sobretudo no Sul global, ainda utiliza bioinsumos produzidos em suas próprias lavouras.[3]
Foi somente nos últimos anos que as grandes empresas agroquímicas começaram a se interessar pelos bioinsumos, ou, como é chamado por elas, “insumos biológicos”. À medida que o interesse das corporações agroquímicas no setor cresceu, o mesmo aconteceu com o mercado global. Em 2021, as vendas de bioinsumos comerciais totalizaram cerca de US$ 10 bilhões, o que representa cerca de 4% do mercado global de insumos agrícolas. A expectativa entre analistas é de que, até 2028, essas vendas dupliquem ou até tripliquem.[4]
Boa parte do mercado global de bioinsumos já está nas mãos das principais empresas de pesticidas. Em 2022, a Bayer registrou vendas de bioinsumos no valor de US$ 214 milhões e espera atingir o patamar de US$ 1,6 bilhão até 2035.[5] A Corteva afirma ter comercializado US$ 420 milhões em 2023 e o Grupo Syngenta declara um volume de vendas na casa dos US$ 400 milhões.[6]
Essas empresas e suas concorrentes estão focadas sobretudo nos biopesticidas, responsáveis pela maior parte das vendas, e estima-se que correspondam a metade do mercado global de bioinsumos. O restante do mercado é composto por biofertilizantes, que fornecem nutrientes às plantas, e bioestimulantes, que aumentam a capacidade da planta de absorver nutrientes.[7] As empresas também estão concentradas em apenas alguns micróbios. Os produtos à base de Bt representam 90% do mercado global de biopesticidas, enquanto 60% dos biofungicidas contêm Trichoderma spp.[8] No caso dos biofertilizantes, a maior atenção é dedicada às cianobactérias, algas verde-azuladas com capacidade de fixar nitrogênio e produzir vitaminas e enzimas que promovem o crescimento.[9]
O maior mercado regional de bioinsumos é o dos EUA/Canadá, seguido de Ásia-Pacífico, Europa e América Latina. O Brasil é um dos mercados que mais crescem e um dos principais focos das empresas agroquímicas. Até junho de 2024, 1.273 bioinsumos agrícolas foram registrados para comercialização no país, metade deles para biopesticidas e metade para biofertilizantes. A grande maioria é voltada para uso nas principais monoculturas do Brasil: soja, milho e trigo.[10] Entre esses insumos, 82% foram produzidos por empresas estrangeiras, sendo que a Bayer sozinha responde por 12% da produção.[11] De acordo com o Ministério da Agricultura do Brasil, atualmente os biofertilizantes são aplicados em quase 40 milhões de hectares, enquanto os biopesticidas são utilizados em 10 milhões de hectares.[12]
O que são bioinsumos?
Os principais bioinsumos são os biopesticidas, os biofertilizantes e os bioestimulantes. Há um consenso geral de que todos são derivados de duas fontes principais: substâncias bioquímicas e organismos vivos (micróbios e macro-organismos). Os mais comuns oferecidos no mercado são os bioinsumos microbianos (que utilizam bactérias, fungos e vírus).[13] As subespécies e cepas de Bacillus thuringiensis (Bt) são as mais adotadas e já são comercializadas há décadas.[14] Outro micróbio, a Rhizobacteria, vem sendo utilizado em biofertilizantes desde o século 19.[15] No entanto, não existe uma definição padrão para o que é um bioinsumo. No Brasil, a legislação apresenta uma definição vaga como um produto, um processo ou uma tecnologia de origem vegetal, animal ou microbiana para uso na produção, no armazenamento e no processamento de produtos agrícolas, sistemas de produção aquáticos ou florestas plantadas.[16]
Uma agenda tóxica
O que está por trás desse novo interesse das gigantes dos agrotóxicos nos bioinsumos? No caso dos biopesticidas, um fator relevante é que são insumos mais baratos e mais rápidos de colocar no mercado em comparação aos pesticidas químicos. Nos EUA, o custo do desenvolvimento de um novo biopesticida fica entre US$ 3 e US$ 7 milhões, com possibilidade de começar a comercializá-lo em quatro anos, enquanto um pesticida químico leva três vezes mais tempo para ser desenvolvido e pode custar mais de US$ 280 milhões. Outro motivo para esse interesse é o aumento dos casos de proibição de pesticidas tóxicos e ações judiciais (como a que envolveu o Roundup), além dos custos ao longo da cadeia de suprimentos, que podem ser mais baixos para os biopesticidas do que para os agrotóxicos produzidos com combustíveis fósseis. Além disso, a resistência biológica a pesticidas químicos está aumentando, consequência de seu uso intenso em monoculturas.[17]
As grandes empresas agroquímicas também estão interessadas em integrar os bioinsumos em suas plataformas digitais, que estão cada vez mais conectadas aos programas de “agricultura regenerativa” e “agricultura de carbono” oferecidos a agricultores e empresas de alimentos ao longo da cadeia. A Bayer, por exemplo, comercializa biopesticidas e bioestimulantes, mas também está avançando para o campo dos fertilizantes, investindo em bactérias fixadoras de nitrogênio produzidas por engenharia genética. Os bioinsumos estão integrados em sua estratégia de agricultura regenerativa, agricultura de carbono, edição genética e plataformas digitais. O pacote “fazenda do futuro” =,que planeja comercializar, inclui um sistema em que o agricultor que deveria promover a agricultura regenerativa utiliza milho, oleaginosas e soja com edição genética da Bayer. Então, por meio de sua plataforma digital, o agricultor recebe recomendações “personalizadas” do Microsoft Azure com base no histórico de dados capturados. O agricultor deve utilizar o plantio direto como um biocombustível de baixo carbono para vender créditos de carbono por meio do programa de carbono das corporações.[18] A empresa indiana de fertilizantes UPL tem planos semelhantes, por meio de sua plataforma digital “Nurture.farm”.[19]
Mas não devemos confundir o interesse que as corporações agroquímicas demonstram atualmente nos bioinsumos com nenhum afastamento dessas empresas de seus agrotóxicos. Enquanto agricultores e agricultoras utilizam bioinsumos tradicionalmente como uma estratégia complementar para o manejo de pragas e doenças, adotando-os com moderação para evitar o desenvolvimento de resistência e a destruição da biodiversidade, as empresas agroquímicas querem que os agricultores usem seus biopesticidas da mesma maneira que utilizam os pesticidas químicos: com aplicações de rotina de doses pesadas como o principal meio de matar todo e qualquer inseto. De fato, para empresas como a Bayer, os bioinsumos são complementares ao seu pacote de agrotóxicos.[20] Em 2016, a empresa desenvolveu uma “caixa de ferramentas” que inclui pesticidas químicos e biopesticidas em uma plataforma digital projetada para avaliar como os produtos devem ser combinados. Parte do pacote oferecido aos agricultores participantes do programa inclui os sistemas de irrigação por gotejamento, criados pela empresa israelense Netafim. Sua comercialização aconteceu pela primeira vez no México, onde foi assinada uma parceria com a PepsiCo, com posterior expansão para a região do Mediterrâneo, a Austrália, a África do Sul, o Brasil e o Chile e, mais recentemente, para China e Vietnã.[21]
A FMC Corp, uma das maiores empresas de agrotóxicos dos EUA, diz que venderá bioinsumos “em conjunto” com agroquímicos, e até desenvolveu um biopesticida Bt (Ethos Elite LFR) que inclui um fungicida e inseticida sintético.[22]
A mesma lógica se aplica aos biofertilizantes. Por exemplo, em 2023, a Yara lançou um bioestimulante “para complementar” sua carteira de fertilizantes, e a Novonesis recomenda a “aplicação conjunta” de biofertilizantes e fertilizantes químicos.[23]
E há outro fator importante que impulsiona as empresas agroquímicas para o mercado de bioinsumos. Os avanços na edição genética, na biologia sintética e na ciência de dados facilitam a identificação, pelas empresas, de micróbios de interesse, além do desenvolvimento de bioinsumos a partir deles e, talvez o mais importante, a garantia do controle monopólico por meio de patentes (ver Quadro 2: Jogos de monopólio).[24] As empresas estão apostando que conseguirão levar esses produtos geneticamente modificados para o mercado sem obstáculos regulatórios.
Jogos de monopólio
Entre 2000 e 2023, mais de 44 mil pedidos de registro de patentes de bioinsumos foram documentados em todo o mundo. Os biofertilizantes parecem representar dois terços desses pedidos, mas é preciso relativizar esse número, pois há sobreposição com biopesticidas em um grande número de casos. A China lidera esse caminho por ampla margem, respondendo por 80% de todos os pedidos. Mas 97% das solicitações na China foram apresentadas exclusivamente no nível nacional e, na sua maioria, feitas por universidades chinesas.[25]
O número de solicitações de registro de patentes depositados em mais de um país é um bom indicador dos principais mercados para os players corporativos. Os principais países onde há pedido de registro de patentes para bioinsumos são EUA, União Europeia, China, Austrália, Canadá, Brasil, Japão, Índia, México, Coreia do Sul, Espanha, Argentina, África do Sul, Rússia e Alemanha. A Bayer lidera com folga o número de pedidos enviados para mais de um país. A empresa é seguida por um pequeno número de gigantes do agronegócio e um conjunto de empresas de agrotecnologia menos conhecidas: BASF, Novonesis (antiga Novozymes), Pivot Bio, Newleaf Symbiotic, Marrone Bio, Valent Biosciences, Locus Agriculture IP Company, Danstar ferment, Syngenta, FMC, Idemitsu Kosan, Spogen Biotech e Sumitomo Chemical.[26]
A corrida corporativa para o mercado de bioinsumos pode desencadear uma nova onda de privatizações de formas de vida, muitas das quais utilizadas por comunidades camponesas. As patentes de processos e sequenciamentos genéticos de microrganismos criarão um mercado de bioinsumos liderado por empresas, concedendo direitos de monopólio aos detentores das patentes. Isso significa que quem desejar utilizar bioinsumos contendo determinados produtos ou processos patenteados precisará obter autorização ou pagar pelo uso. A consequência disso pode incluir multas pesadas e até penas de prisão para os agricultores.[27]
Brincando de aprendiz de feiticeiro com micróbios
O envolvimento de grandes empresas agroquímicas na modificação genética de micróbios para obtenção de bioinsumos já acontece há pelo menos uma década. A gigante japonesa Sumitomo Chemical adquiriu a Valent BioSciences, desenvolvedora de biopesticidas Bt geneticamente modificados (GM), em 2013.[28] A Bayer, por sua vez, tem uma joint venture com a Ginkgo Bioworks, chamada Joyn Bio, que está desenvolvendo um micróbio GM produtor de nitrogênio para as culturas de milho, arroz e trigo.[29]
“Nós conseguimos olhar para o genoma do micróbio da soja, ler o código do DNA, encontrar a parte que diz ‘Opa, olha aqui a maneira como você produz o fertilizante’, ir para o computador, redesenhá-lo, mandar imprimir e instalar esse código nos micróbios que vivem na raiz do milho. Esse é o projeto em que estamos trabalhando com a Bayer”, explica Jason Kelly, CEO da Ginkgo Bioworks.[30]
A Bayer também está dando apoio ao Eduardo Blumwald’s Laboratory da Universidade da Califórnia, em Davis, para o desenvolvimento de bioestimulantes geneticamente modificados para plantas de arroz utilizando a técnica de edição genética CRISPR.[31]
Outro exemplo está na startup estadunidense Agbiome, que desenvolve bioinsumos à base de micróbios geneticamente modificados. Entre seus primeiros investidores estava a Monsanto Growth Ventures.[32] Mais recentemente, a Agbiome assinou parcerias com a Mosaic, a BASF e a Genective (uma joint venture entre a Limagrain e a KWS), e a Ginkgo Bioworks acaba de anunciar sua intenção de adquirir a empresa.[33]
Algumas dessas parcerias entre empresas agroquímicas já levaram bioinsumos geneticamente modificados para o mercado; no entanto, por falta de transparência tanto das empresas quanto dos agentes reguladores, não é fácil identificar quais estão sendo comercializados e quais estão em processo de aprovação.[34]
O MST oferece seu próprio treinamento em bioinsumos.
Mais recentemente, a Amigos da Terra identificou dois desses produtos comercializados nos EUA. Um deles é um biofertilizante à base de bactérias geneticamente modificadas chamado Proven, produzido pela Pivot Bio, empresa dos EUA apoiada pela Monsanto Growth Ventures. O Proven foi o primeiro micróbio produzido por engenharia genética (EG) a ser amplamente comercializado, em 2019. Em tese, as autoridades dos EUA devem fiscalizar os novos produtos de biotecnologia para garantir a segurança do meio ambiente e da saúde humana e animal.[35] Mas decidiu-se não regular o Proven, sob o argumento de que a forma selvagem da bactéria não era um patógeno e não foi manipulada com DNA de outra espécie. O outro produto é um tratamento de sementes Bt geneticamente modificado produzido pela BASF, chamado Poncho/VOTiVO. Embora seja vendido em uma mistura com um inseticida neonicotinoide extremamente problemático e tóxico para insetos benéficos, a BASF conseguiu registrá-lo como bioestimulante, evitando assim a fiscalização mais rigorosa que existe para os biopesticidas.[36]
Como apontado pela Amigos da Terra, a introdução em massa desses micróbios geneticamente modificados sem uma fiscalização regulatória significativa traz grande preocupação. Esses micróbios GM são organismos vivos que podem se reproduzir e interagir com outras espécies (por exemplo, espalhando-se para outros micróbios por meio da transferência horizontal gênica) de maneiras imprevisíveis. E a escala desse risco é ainda maior do que nas culturas geneticamente modificadas. Enquanto três trilhões de plantas de milho geneticamente modificadas são cultivadas por ano nos EUA, uma aplicação de bactérias GM pode liberar o mesmo número de organismos GM em apenas dois hectares. A incapacidade de conter os micróbios geneticamente modificados também desperta preocupações ambientais importantes, além de representar riscos para os agricultores, que podem acabar sendo processados pelas empresas se os micróbios GM patenteados invadirem suas plantações, como aconteceu com as culturas geneticamente modificadas.[37] A isso somam-se os riscos de desenvolvimento de resistência aos biopesticidas convencionais e os riscos à saúde e ao meio ambiente representados pelos ingredientes não ativos utilizados nas formulações dos bioinsumos – riscos amplificados quando utilizados em grandes volumes e em grandes extensões de terra.[38]
Surfando nas diferenças regulatórias
Para além dos bioinsumos, no nível jurídico-legal, os lobbies corporativos estão fazendo de tudo para evitar que os produtos resultantes de engenharia genética sejam classificados como transgênicos. Mas essa distinção é absurda, porque a manipulação genética apresenta os mesmos riscos em ambos os casos.[39] É por isso que a legislação internacional exige que todo produto desenvolvido por processos de modificação do genoma utilizando biotecnologia moderna, mesmo que o produto final não contenha um gene de outra espécie, deve ser submetido a avaliação de risco à saúde e ao meio ambiente e, se comercializado, deve indicar essas informações no rótulo e ser monitorado.[40]
Não é de surpreender que o mercado de bioinsumos esteja se expandindo em um ritmo mais acelerado em países como Estados Unidos, Brasil e Japão, onde bioinsumos geneticamente modificados não considerados transgênicos podem ser comercializados sem avaliação de impacto potencial ao meio ambiente e à saúde, e pior, sem qualquer meio de identificá-los.[41]
“É incrível o número de produtos que eles [as autoridades brasileiras] conseguiram registrar em um curto período de tempo [graças às] políticas que foram implementadas para permitir que isso acontecesse”, afirmou Terry Stone, da Corteva Agriscience, em declaração recente referindo-se aos bioinsumos.[42]
O mercado brasileiro dobrou desde 2020, quando foi criado o Programa Nacional de Bioinsumos.[43] Os bioinsumos, incluindo aqueles produzidos por meio de modificação genética, podem passar pelo processo regulatório e, em alguns casos, ser registrados em menos de 10 meses.[44] Não só não há obstáculos para o uso de microrganismos geneticamente modificados na produção de bioinsumos, como um número crescente de produtos GM que entram no país não estão sendo definidos como transgênicos pelas autoridades porque são produzidos com técnicas de edição genética que não envolvem a inserção de material genético de outras espécies.[45] Nos últimos anos, nove dos 65 produtos geneticamente modificados classificados pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) como não transgênicos foram para bioinsumos.[46]
A classificação toxicológica da maioria dos biopesticidas registrados no país indica pouca probabilidade de provocar danos e baixo risco ao meio ambiente. Muitos foram aprovados para uso na agricultura orgânica, que proíbe estritamente o uso de organismos geneticamente modificados, incluindo aqueles produzidos por meio de edição genética. Embora a legislação brasileira exija a produção de um relatório técnico-científico antes do registro de um novo bioinsumo, essa análise considera apenas a viabilidade e a eficiência agrícola, e não sua biossegurança. Portanto, segundo a regulamentação atual, é impossível saber se algum bioinsumo é resultado de engenharia genética, e também não é possível conhecer a base científica dessa classificação no que se refere aos riscos à saúde e ao meio ambiente.
Nos EUA, a Agência de Proteção Ambiental controla os biopesticidas com base no mesmo marco regulatório dos pesticidas químicos, mas por meio de um processo de registro mais rápido e barato que pode levar menos de um ano. Também não há normas regulamentadoras que considerem as propriedades específicas dos micróbios geneticamente modificados, e os mesmos padrões são adotados para pesticidas químicos e micróbios (com EG ou não GM). Em 2021, com a introdução da regra “Sustentável, ecológica, consistente, uniforme, responsável, eficiente” (SECURE), que versa sobre a regulamentação de biotecnologia vegetal, uma série de isenções foi aplicada para a regulamentação de micróbios GM, dando às empresas o direito de decidir, por conta própria, se seu produto deve ser isento da regulamentação para organismos geneticamente modificados e de comercializar micróbios sem fiscalização. Uma vez que os micróbios GM são liberados no meio ambiente, não há sistema para monitorar seu impacto.[47]
Até recentemente, a regulamentação era mais rigorosa na UE. Os bioestimulantes estão incluídos na regulamentação dos fertilizantes, o que limita a concentração de contaminantes como mercúrio, níquel, cobre e zinco. Além disso, o desenvolvimento de bioestimulantes está limitado a quatro tipos de micro-organismos, que não podem ser submetidos a nenhum tratamento além da desidratação e da liofilização.[48] Já os biopesticidas ainda devem atender aos critérios de autorização da legislação que rege os pesticidas tradicionais, embora um procedimento de autorização simplificado para produtos microbianos tenha sido aprovado em 2022.[49] No entanto, no futuro próximo, os bioinsumos podem ser afetados pelo lobby dos OGMs das grandes empresas químicas e de sementes (ver Quadro 3: Desregulamentação europeia de novos OGMs).
Também há mudanças em curso na China, onde os biopesticidas ainda devem passar por avaliações de risco ambiental e de saúde para serem registrados, incluindo estudos de campo e avaliações de limites máximos de resíduos nos alimentos. Mas as universidades e empresas chinesas, incluindo a Syngenta, são líderes mundiais no registro de patentes para bioinsumos agrícolas, e atualmente, o governo chinês está incentivando o desenvolvimento e uso de biopesticidas pelas empresas, oferecendo registro “acelerado”, menor exigência de apresentação de dados e tempo reduzido de testes. No geral, a China está afrouxando sua regulamentação sobre culturas geneticamente modificadas; em 2017, foi aprovado o primeiro biopesticida à base de um micróbio GM (o Bt G033A), ainda que não para a agricultura orgânica. Desde 2022, plantas e produtos geneticamente modificados não considerados transgênicos podem ser registrados para produção e comercialização sem avaliação, da mesma forma que os produtos convencionais.
Em todo o mundo, o debate sobre a regulamentação dos bioinsumos é complexo e deve se basear nas lições aprendidas no combate aos organismos geneticamente modificados. Existe um risco real de que a regulamentação do uso, do registro, do transporte e da comercialização dos bioinsumos possa levar à criminalização de práticas agrícolas tradicionais. Uma regulamentação rigorosa pode encarecer os processos e fortalecer o controle do monopólio corporativo. Por outro lado, uma regulamentação frouxa pode resultar em testes inadequados e aumento dos riscos de contaminação ou modificação genética. De qualquer forma, é fundamental preservar o livre uso dos bioinsumos produzidos pelas comunidades camponesas, agricultoras e indígenas.
Atualmente, há uma iniciativa legislativa progressista em tramitação na Bolívia, promovida pela Probioma, associação engajada na mobilização social contra a expansão das culturas geneticamente modificadas e em defesa de práticas agroecológicas. A Probioma produz biofertilizantes e biopesticidas há trinta anos, evitando uma abordagem corporativa ao não registrar nenhuma patente. A proposta de lei sobre os bioinsumos visa promover a pesquisa e o desenvolvimento de bioinsumos para fortalecer a produção agroecológica e garantir a soberania e a segurança alimentar. No entanto, a lei inclui elementos que precisam ser muito bem avaliados em função do potencial de risco de biopirataria e restrições ao livre uso de produtos pelos agricultores e agricultoras. O PL propõe a criação de um sistema nacional de certificação de bioinsumos, com cadastro diferenciado para aqueles produzidos pela agricultura camponesa e indígena. Para esse setor, o registro seria voluntário e gratuito, exceto quando os produtos forem destinados à comercialização. Os defensores da lei ressaltam que ela se baseia na rejeição dos OGMs e busca impedir a autorização do uso de engenharia genética na produção de bioinsumos.[51]
Desregulamentação europeia de novos OGMs
No ano passado, a Comissão Europeia propôs a efetiva desregulamentação de “novas técnicas genômicas” (NTG), o que excluiria esses organismos geneticamente editados ou modificados da legislação existente sobre OGMs. Atualmente, é necessária autorização para os OGMs, a fim degarantir a avaliação dos riscos à saúde humana e ao meio ambiente, além da adesão às exigências relacionadas às informações que devem constar no rótulo e à rastreabilidade. Apesar da oposição de ONGs, cientistas e algumas organizações de agricultores e agricultoras, o Parlamento Europeu votou a favor da desregulamentação dos OGMs produzidos com NTGs.[52] Embora o parlamento tenha apoiado a rotulagem e detecção – algo visto como uma pequena vitória para a sociedade civil –, essas medidas dependem de declarações da indústria. A divulgação dos métodos de detecção e identificação desses produtos não é obrigatória.[53] Na produção orgânica, a proibição de novas técnicas genômicas continua em vigor. O debate continua, pois o Conselho de Ministros da Agricultura não conseguiu chegar a um acordo sobre esse plano de desregulamentação, muito em função de preocupações expressas por organizações de agricultores com relação ao registro de patentes de NTGs.[54]
Mais uma vez, a agroecologia é a resposta
A agricultura industrial impulsiona a crise climática e inúmeras outras crises globais.[55] Esses problemas não serão resolvidos apenas com a redução do uso de pesticidas e fertilizantes químicos. São problemas que decorrem do modelo e da escala da agricultura industrial, que está imbricada em um sistema alimentar global predatório e injusto controlado por algumas poucas grandes empresas.
Se essas mesmas empresas se apropriarem dos bioinsumos, elas simplesmente criarão um novo nicho de negócios que não eliminará os agrotóxicos, mas, pelo contrário, estenderá seu uso de forma complementar. Ainda pior, os bioinsumos corporativos fazem parte das falsas soluções para a crise climática, embrulhados nas novos pacotes “verdes” de agricultura regenerativa e digitalização da agricultura.[56]
O que é necessário é uma guinada para a agroecologia, baseada no conhecimento tradicional das comunidades agricultoras, na inovação coletiva e na soberania alimentar. Devemos rejeitar as soluções tecnológicas corporativas caras e patenteadas que apenas perpetuam a agricultura industrial e suas consequências devastadoras.
Fonte:
https://grain.org/e/7178
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