15 de maio de 2018
Anastácia, escrava sofrida, misto de luta e bravura, resistência e doçura. Sua história é contada em versões orais e escritas, registros sobre uma linda mulher que não cedeu aos apelos sexuais do seu senhor, sendo amordaçada e estuprada. A luta de Anastácia tornou-se um exemplo e até hoje sua força inspira a resistência de muitos e muitas devotas.
A história de Anastácia, como de muitas negras e negros escravizados trazidos ao Brasil, inicia com a chegada ao Rio de Janeiro no navio negreiro Madalena, vindo do continente Africano em 09 de abril de 1740. A embarcação trazia 112 negros Bantus, originários do Congo, para serem vendidos como escravos. Entre eles estava a mãe de Anastácia. Delminda foi vendida por mil réis assim que o navio aportou, e como era infelizmente comum a mulheres negras, foi violentada, engravidando de Anastácia. O algoz foi um homem branco, nascendo assim, Anastácia com os olhos azuis. Mulher de beleza exuberante, é sempre representada como uma figura forte, guerreira, ficando conhecida por reagir e lutar contra a opressão do sistema de escravagista.
Era cobiçada por sua beleza, despertando a ira dos seus senhores por seu comportamento rebelde e também das mulheres dos senhores que não a toleravam. Para silenciá-la e castigá-la foi condenada ao uso de uma máscara de ferro por toda a vida, a Máscara de Flandres. Tal objeto era fabricado com folha de flandres, usada no período da escravidão no Brasil para impedir que os escravos ingerissem alimentos, bebidas ou terra. Eram trancadas com um cadeado atrás da cabeça, possuindo orifícios para os olhos e nariz, mas impedindo totalmente o acesso à boca. Suportou espancamentos que só terminaram com sua morte. Sua resistência diante da dor e das violências sofridas acabaram por incentivar outros escravizados a resistência e ainda hoje alimenta o culto como “santa popular” por muitos devotos.
Anastácia foi uma mulher negra escravizada como muitas outras mulheres. Consideradas mão de obra, podiam ser vendidas, doadas, emprestadas, alugadas, hipotecadas, confiscadas… enfim, susceptíveis de todos os tipos de violência. Realizavam todo tipo de trabalho, desde tarefas pesadas a trabalhos domésticos. Além de viver sob praticas violentas como o trabalho forçado, o açoite e o estupro, também eram obrigadas a serviços sexuais, sendo assim instrumentalizadas, animalizadas, consideradas longe da esfera humana de sentimentos.
Não foi diferente após a abolição da escravatura. A dita liberdade veio sem políticas de inserção dos negros e negras na sociedade brasileira. Pós-abolição a opressão toma forma a partir da construção da imagem social do negro e da negra como sendo cruel, vagabundo e marginal, evidenciada a partir da proibição e criminalização da capoeira e a imagem da mulher negra como sedutora e promiscua. Essa imagem construída no início do período republicano embasou um conjunto de discursos e práticas que legitimaram e sustentaram as diferenças sociais, praticas racistas e exclusão as quais são submetidas as populações negras até os dias atuais.
Na atualidade a mulher negra é afetada por todas as chagas sociais brasileiras: encarceramento, violência doméstica, violência urbana, racismo institucional, desigualdades no mercado de trabalho. O feminicídio, assassinato de mulheres por sua condição de gênero, no Brasil, atinge principalmente as mulheres negras. Entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período. Os dados são do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais.
As mulheres negras também são mais vitimadas pela violência doméstica: 58,68%, de acordo com informações do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, dados de 2015. Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%), de acordo com dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz. Entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou em 567,4%, colocando o Brasil no ranking dos países com mais encarceramentos no mundo, ficando no 5º lugar, onde 67% destas mulheres são negras e 50% são jovens. Com esses dados podemos falar em democracia racial? Podemos questionar a validade de sistemas reparatórios como o sistema de cotas? Somos um país forjado na desigualdade social, onde a base da pirâmide foi e ainda é constituída por negros e negras, não mais açoitados pelo chicote, mas pelo preconceito, racismo, e desrespeitos das mais variadas formas.
Anastácia representa a vida das mulheres negras brasileiras desde a chegada nos navios negreiros aos dias atuais. Direitos foram conquistados, mas as dores e chagas ainda são enormes, mordazes! Buscamos em sua história força para resistir, quebrar as amarras e fazer ressoar nosso grito de liberdade, construída a cada dia na luta de homens e mulheres, lutadores na busca de equidade. Somos filhos e filhas de Anastácia e tantas de tantas outras mulheres negras que construíram este país com suor, sangue e lágrimas.
Referências:
Nascimento, Thais. Anastácia: resistência negra santificada. Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Acesso em 10.05.2018. Https://www.ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/3526/anastacia-resistencia-negra-santificada
Pesquisadora discute encarceramento em massa com base em pensadoras negras. Acessado em 11.05.2018. Https://www.geledes.org.br/pesquisadora-discute-encarceramento-em-massa-com-base-em-pensadoras-negras/
Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil. Acessado em 11.05.2018. Https://www.cartacapital.com.br/sociedade/seis-estatisticas-que-mostram-o-abismo-racial-no-brasil
Por Michele Corrêa – Graduanda em Filosofia na UFPel, Militante da Pastoral da Juventude (PJ) e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
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