21 de outubro de 2021
GABRIELA AMORIM e ALFREDO PORTUGAL – Carta Capital*
Outubro é marcado pelas lutas por soberania alimentar e é também o mês em que se luta pela democratização dos meios de comunicação.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, mais de 20 milhões de brasileiro atravessam uma situação de fome. Os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PenSSAN, ratificam as notícias diárias sobre filas para compra de ossos e imagens estarrecedoras de pessoas catando restos de alimento em lixos de grandes redes de supermercado.
Em outubro, mês que marca o Dia Mundial do Alimento, é comum vermos a mobilização dos movimentos sociais do campo em defesa da soberania alimentar. Este conceito foi construído no âmbito destes movimentos, em contraponto ao de segurança alimentar, utilizado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Os movimentos populares do campo, reunidos internacionalmente na Via Campesina, defendem que, para além de garantir a distribuição justa de comida, é preciso que os povos sejam soberanos na decisão de políticas e estratégia sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos. Neste momento de crise mundial, os movimentos reafirmam que é urgente saciar a fome, sim, mas também respeitar a cultura e diversidade camponesas.
Assim, o campesinato deve ser visto como categoria indispensável na construção da soberania alimentar. Ainda que ocupem menos de 24% das terras brasileiras, as produtoras e produtores familiares camponeses são responsáveis por 70% dos alimentos que chegam às mesas do país segundo levantamento do IBGE. E dentro deste universo, há que se destacar ainda o fundamental papel das mulheres na produção dos alimentos. Segundo dados da FAO, elas são responsáveis pelo plantio de mais da metade da nossa comida, desempenhando ainda papel importante na conservação da biodiversidade. Por outro lado, as mulheres detêm apenas 30% da titularidade das terras e recebem somente 5% da assistência técnica.
Neste ponto, você já deve estar se perguntando o que soberania alimentar tem a ver com comunicação. Para entender esse enlace, precisamos falar, primeiro, da desinformação a serviço do agronegócio e das grandes indústrias de alimentos do mundo. Certamente, você se lembra da campanha publicitária “Agro é pop”: apenas um pequeno exemplo da comunicação a serviço da desinformação. Esta — e outras campanhas e produções pretensamente jornalísticas — pretendem construir a imagem do agronegócio com grande salvador da nação brasileira: que alimenta o povo, que exporta para alimentar outras nações, que traz dividendos para o Brasil.
Todas imagens de pés de barro, que não se sustentam a uma análise rápida. Já falamos aqui que é a agricultura familiar camponesa quem alimenta o Brasil. Na verdade, o agronegócio exporta muitos grãos produzidos com agrotóxicos e com altíssimo custo ambiental (vide queimadas na Amazônia e Pantanal) para servir de ração animal em outros países. E tudo isso resulta em pouquíssimo imposto que fica no país. Para se ter uma ideia, em 2019, todo a exportação do agro rendeu ao Brasil pouco mais de 16 mil, e não milhões segundo dados do livro Direitos Humanos no Brasil 2020. Enquanto isso, movimentos campesinos organizados na Via Campesina distribuíram toneladas de alimento para pessoas em situação de fome em vários estados do país. No último , dia 16, foram 10 toneladas somente em Pernambuco.
Soma-se ao agronegócio no mesmo lado da balança a indústria transnacional do alimento, com campanhas de desinformação muito bem arquitetadas. O exemplo mais forte — e talvez o mais terrível — é o da indústria do leite e compostos lácteos para substituição do leite materno. Claro que os compostos são muito úteis nos casos em que há uma verdadeira impossibilidade de amamentar. Falamos aqui, na verdade, da ideia criada, ao longo de décadas de campanhas publicitárias, de que os compostos e leites industrializados são mais benéficos e seguros do que o leite materno e, portanto, devem substitui-lo. As duas maiores indústrias desses compostos são patrocinadoras do Congresso Brasileiro de Pediatria, uma ação, no mínimo, suspeita, que pode resultar na formação de opiniões distorcidas sobre a real necessidade desses produtos para a saúde de bebês e crianças.
A desinformação sempre foi arma de dominação do agronegócio e da indústria de alimentos
Numa pesquisa realizada pelo O Joio e O Trigo — plataforma jornalística de investigação sobre alimentação, saúde e poder — em outubro de 2020, mais da metade das mulheres-mães entrevistadas relataram terem sido desestimuladas pelos/as pediatras a amamentarem. E quase 75% recebeu recomendação de uso das tais fórmulas lácteas. Em uma busca rápida nas bases de dados mais respeitadas de produção científica do Brasil e do mundo, não vemos muitos trabalhos que associem a necessidade de uso de fórmulas com uma disfunção fisiológica que assola as mulheres-mães do país, no entanto, há inúmeras pesquisas que apontam a influência danosa da indústria de alimentos para conformação desse fenômeno. E nem colocamos aqui nesta conta o investimento pesado que estas indústrias fazem em marketing nos mais diversos meios de comunicação — aliás, nem conseguimos encontrar dados confiáveis e claros sobre isso.
Assim, vemos a comunicação a serviço da desinformação, ou a comunicação a serviço do agronegócio e da indústria de alimentos. Ou, a comunicação como negócio que garante, por um lado, o discurso dessas empresas que se organizam dentro de um sistema econômico em que o lucro está acima das questões sociais — dentre as quais, a fome e a insegurança alimentar da população. E, por outro lado, criminalizam aqueles que apresentam discurso contrário, como é o caso dos movimentos sociais, sindicatos e outros. Ou seja, a comunicação como uma excelente ferramenta de formação de opinião com condições de garantir o modo de produção do capital.
A monocultura da mídia
Uma pesquisa lançada no final de 2019, pelo Intervozes e Repórter Sem Fronteiras, para o Media Ownership Monitor – MOM, intitulada “Quem controla a mídia na América Latina?“, mostra entre outras coisas, como estão distribuídos os meios de comunicação no Brasil e em outros países da América Latina. O estudo, além de apontar para a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos, porém, grandes grupos, mostra a relação entre esses grupos de comunicação e o agronegócio.
A Folha de São Paulo, por exemplo, um dos maiores jornais do país, que tem como acionistas nomes como Otaviano Alves de Lima, originou-se na antiga Folha da Manhã, em 1931, e desde então teve uma linha editorial voltada a defender os interesses dos proprietários de terras, principalmente cafeicultures. O dono do Grupo Mix FM, João Carlos Di Genio, possui fazendas de produção de gado, além de ser dono de um dos maiores grupos de educação privada no país, grupo Objetivo. O Alfa, um dos principais conglomerados financeiros do país, tem entre seus negócios a empresa de extração de óleo de palma, a Agropalma; uma empresa de fabricação de couro, a SouBach; e uma de exploração de água mineral, a Aguas Prata; além de ser proprietária da rede Transamérica de Rádio, quinta rede nacional de maior audiência.
O caso que nos chama mais atenção é o do grupo Globo, que aparece no estudo como aquele que concentra a maior parte dos veículos de maior audiência no país — ao todo nove deles — e que possui estreita relação com o agronegócio. Na lista de suas (grandes) propriedades estão: Fazenda Bananal Agropecuária, as fazendas Guará Agropecuária e a Mangaba Cultivo de Coco. Não à toa, a Globo Comunicações e Participações S/A faz parte da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).
Embora, a princípio, soberania alimentar e comunicação pareçam dois universos muito distantes e quase paralelos, basta um olhar mais acurado para entender como os dois estão intimamente relacionados. Para a população em geral, esta narrativa hegemônica de que o agronegócio e a indústria internacional de alimentos vai nos “salvar da fome” coloca em risco o próprio conceito de soberania alimentar. Afinal, se já temos o agro e a indústria para matar a fome do povo, por que precisamos lutar por soberania alimentar?
Neste sentido, enxergamos que, por estratégia, a luta por soberania alimentar deve ser também a luta por meios de comunicação democráticos e em defesa da comunicação popular. Entender que a desinformação sempre foi uma arma de dominação do agronegócio e da indústria de alimentos e que esta desinformação tem perpassado os meios de comunicação de maior capilaridade no país. Estes, por sua vez, estão concentrados na mão de poucos empresários no Brasil, que determinam o conteúdo e a programação seja do rádio e TV seja na Internet. E é por isso mesmo que a luta pela reforma agrária popular e pela soberania alimentar dos povos deve caminhar de mãos dadas com a comunicação popular, como ferramenta de luta na desse novo mundo que há de vir.
ALFREDO PORTUGAL – É militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); integrante do Intervozes; colaborador do Brasil de Fato Bahia; e mestrando em Educação do Campo na UFRB.
GABRIELA AMORIM – É da direção do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) na Bahia e jornalista na Rádio Brasil de Fato Bahia.
publicado originalmente no site da Carta Capital.
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