7 de junho de 2023
Nayara Felizardo
The Intercept Brasil
Ao menos 22 empresários do agronegócio desembolsaram, juntos, R$ 2,1 milhões para financiar as campanhas de nove parlamentares que agora são membros da Comissão de Saúde na Câmara dos Deputados. O levantamento feito pelo Intercept considerou apenas as doações a partir de R$ 50 mil. A quantia e o número de membros favorecidos, portanto, pode ser ainda maior.
Recriada este ano a partir da separação da Comissão de Seguridade Social e Família, a Comissão de Saúde é responsável por analisar projetos de lei e outras propostas legislativas relacionadas ao tema. Os principais financiadores dos parlamentares que discutem assuntos como alimentação e nutrição, SUS e patentes lucram com venda de açúcar, batata frita, ultraprocessados e até cachaça. Não por acaso, propostas como a maior tributação desses alimentos ou a regulamentação de publicidade do setor têm encontrado resistência para serem aprovadas.
Quem mais deu dinheiro para a campanha de titulares da comissão foi o empresário Robert Carlos Lyra, que atua no ramo sucroalcooleiro em Minas Gerais. Foram R$ 400 mil, divididos igualmente entre o atual presidente da comissão, Zé Vitor, do PL, e o deputado Pinheirinho, do PP.
Em 2009, quando ainda era sócio da Usina Caeté, em Alagoas, Lyra foi denunciado pelo Ministério Público Federal, o MPF. A investigação apontou que a empresa teria cometido 16 crimes ambientais desde 2001 e foi autuada seis vezes pelo Ibama entre 2005 e 2007, mas nunca obedeceu às ordens para interromper o desmatamento e recuperar a área degradada. Ao todo, teriam sido devastados 28 hectares para plantar cana-de-açúcar em área de preservação permanente na Unidade de Conservação Federal Reserva Extrativista, no município de Jequiá da Praia, a 61 quilômetros de Maceió.
Inicialmente Lyra e os outros réus foram absolvidos, mas o MPF recorreu, de acordo com a assessoria de imprensa do órgão. Em 2021, o processo retornou à primeira instância para análise das provas. O MPF reiterou o pedido de condenação de todos eles e o processo está em andamento.
A usina Caeté faz parte do Grupo Carlos Lyra, que até 2012 incluía também as usinas de Minas Gerais. Depois de uma cisão naquele ano, as usinas de Alagoas continuaram como parte do grupo, e Lyra ficou com as do Sudeste, dando origem a uma nova empresa, a Delta Sucroenergia.
Segundo a revista Forbes, 11 anos após seu surgimento, a Delta figura entre as 100 maiores do agronegócio brasileiro. Com a produção de açúcar para exportação e para o mercado interno, além de etanol e bioenergia, a empresa tem uma receita anual de R$ 2,14 bilhões. Em 2022, a Federação das Indústrias de Minas Gerais elegeu Lyra o industrial do ano.
Além dos deputados Zé Vitor e Pinheirinho, Lyra também ajudou financeiramente a campanha de Jair Bolsonaro em 2022, com uma doação de R$ 300 mil, e de mais sete deputados mineiros que não estão na Comissão de Saúde. O empresário ocupa o 22º lugar no ranking de doadores, com mais de R$ 1,8 milhão desembolsados.
O segundo maior doador para campanhas de deputados que agora ocupam a Comissão de Saúde foi Renato Romeu Sorgatto, produtor de tomate e dono de uma fábrica de processamento que fornece polpa para o mercado de molhos, ketchup e pratos congelados. Ele desembolsou R$ 320 mil para Célio Silveira, do MDB de Goiás. A quantia representa mais da metade de todas as doações de pessoas físicas e deixa o deputado em segundo lugar entre os membros que mais receberam financiamento do agronegócio, atrás apenas do presidente da comissão, Zé Vitor, que recebeu mais de R$ 900 mil.
Em razão do seu posto, cabe ao deputado Zé Vitor indicar os relatores dos projetos de lei que tramitam na Comissão de Saúde, além de definir o que entra na pauta de votação ou fica engavetado. Por isso, é relevante saber quem são seus financiadores e que interesses eles defendem. Considerando apenas as doações a partir de R$ 50 mil, o parlamentar do PL recebeu R$ R$ 925.489,10 mil de 10 empresários, principalmente do ramo sucroalcooleiro. O valor representa 47,7% de todas as doações de pessoas físicas.
Assim como Robert Carlos Lyra, João Emílio Rocheto foi um dos maiores financiadores de campanha do deputado: doou R$ 200 mil. O empresário é fundador da Bem Brasil, uma fabricante de batatas pré-fritas congeladas que tem uma série de redes de fast food entre seus clientes.
Zé Vitor está no segundo mandato e atualmente faz parte de 10 frentes parlamentares relacionadas à saúde, mas sua trajetória sempre esteve ligada ao agronegócio. Ele também é membro da Frente Parlamentar da Agropecuária e sócio-administrador da empresa Campo Brasil, do ramo de alimentos e fertilizantes.
O deputado Zé Vitor não respondeu o e-mail que enviamos. Exceto o Grupo Cerradinho, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas cujos donos financiaram a campanha do parlamentar receberam nossos e-mails, mas não responderam até o fechamento dessa reportagem.
O dossiê “Big Food: como a indústria interfere em políticas de alimentação”, lançado em 2022 pela ONG ACT Promoção em Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, mostra quais são as estratégias do setor, incluindo as grandes corporações do agronegócio, para alterar, atrasar ou anular políticas públicas que poderiam melhorar a qualidade de vida dos consumidores, mas ameaçam o lucro das empresas.
A interferência se dá, entre outras formas, por meio de lobby direto ou indireto com os parlamentares, financiamento de políticos e partidos ou mesmo ameaça de retirada de incentivos. As doações de campanha são uma das maneiras de influenciar diretamente os deputados, para que eles votem de acordo com os interesses dos seus financiadores.
Segundo um levantamento da ONG, ao menos 11 projetos de lei que tramitam na Câmara de Deputados contrariam interesses do agronegócio – oito deles passaram, já estão ou ainda vão passar pela Comissão de Saúde. Desses, três dispõem sobre comércio e publicidade de bebidas com baixo teor nutricional e alimentos ultraprocessados ou com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e sódio. Outros três projetos tratam da rotulagem desses produtos e de bebidas industrializadas, para alertar sobre os riscos do consumo em excesso. Por fim, dois projetos propõem aumentar os impostos para bebidas não-alcoólicas, ou produtos com adição de açúcar, edulcorantes e aromatizantes.
Paula Johns, diretora executiva da ACT e membro do comitê gestor da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, afirma que o agronegócio influencia diretamente a agenda regulatória da saúde, seja por meio das entidades representativas do setor, como o Instituto Pensar Agro, ou de forma institucional, por meio da Frente Parlamentar Agropecuária.
Segundo ela, está mais difícil aprovar na Comissão de Saúde projetos de lei que antes passariam facilmente, diante de evidências científicas que justificassem a importância de determinada regulação – a exemplo dos alimentos ultraprocessados, cujo consumo está associado ao aumento de problemas de saúde como obesidade, hipertensão e diabetes.
“Acompanho o Congresso há 20 anos. Havia uma certa garantia de que a gente conseguia avançar com as propostas regulatórias na Comissão de Saúde. Os projetos normalmente paralisavam na Comissão de Assuntos Econômicos. Agora, aumentou o grupo de resistência”, afirmou Johns.
Cinco empresários do Grupo Alibem, produtor de carne bovina e suína, além de ultraprocessados, doaram para a campanha de outro membro da Comissão de Saúde, o deputado Osmar Terra, do MDB do Rio Grande do Sul. Médico de formação, ele se destacou como um negacionista durante a pandemia. Em 2020, chegou a propor um projeto de lei contra o isolamento de pessoas que já tivessem contraído o vírus da covid-19, como se não fosse possível se contaminar novamente e transmitir o vírus para outras pessoas.
Nada disso foi relevante para os empresários Eduardo Shen Pacheco da Silva, José Roberto Fraga Goulart, Lee Shing Wen, Maximiliano Chang Lee e Michele Shen Lee. Juntos, eles desembolsaram R$ 250 mil para o negacionista de uma pandemia que causaria mais de 700 mil mortes no Brasil. O valor representa 45% de todas as doações feitas ao deputado por pessoas físicas.
O Grupo Alibem foi alvo de uma operação da Polícia Federal em 2015, que investigou casos de corrupção envolvendo empresas do agronegócio gaúcho e a Superintendência Federal da Agricultura no Rio Grande do Sul. De acordo com a denúncia, a Alibem teria oferecido propina para o então superintendente Francisco Signor, para que ele a favorecesse com fiscalizações menos rígidas em seus frigoríficos. Seis anos após a operação, em 2021, o Ministério da Agricultura multou a Alibem em R$ 159,2 milhões com base na Lei Anticorrupção. O Ministério da Agricultura não respondeu se a multa foi paga.
Em julho de 2018, quando a investigação ainda estava em andamento, o deputado Osmar Terra acompanhou o empresário Roberto Fraga Goulart em uma reunião com o então secretário executivo do Ministério da Agricultura e Pecuária no governo de Michel Temer, Eumar Roberto Novacki. O órgão também não respondeu qual foi a pauta do encontro, assim como Terra e Goulart. As perguntas foram enviadas por e-mail.
Outro empresário que se interessou em financiar a campanha de um negacionista foi Gilson Lari Trennepohl, dono da Stara Máquinas Agrícolas. Logo após o primeiro turno da eleição de 2022, a empresa enviou uma carta aos fornecedores, comunicando que reduziria sua base orçamentária em 30%, caso Lula ganhasse. Ele doou R$ 50 mil para a campanha de Osmar Terra e a mesma quantia para o deputado Pedro Westphalen, do PP, que é o terceiro vice-presidente da Comissão de Saúde. Já Bolsonaro recebeu R$ 350 mil.
Assim como Terra, os empresários do agronegócio que financiaram sua campanha não responderam o contato que fizemos por e-mail.
Apenas o deputado Ruy Carneiro respondeu nosso contato e disse que integra a Comissão de Saúde há muito tempo. Ele acrescentou também que nunca integrou a bancada do agronegócio e até apresentou um projeto que contraria os interesses do setor – o PL do Bem-estar Animal, que disciplina o abate de animais pela indústria agropecuária. “Com relação às doações, todas foram realizadas seguindo rigorosamente o que determina a lei e de forma transparente”, rebateu.
Com exceção da Cachaça Pitu e do Grupo Vale do Verdão, que não conseguimos contato para enviar os questionamentos, todas as empresas receberam nossos e-mails, mas não responderam nossos questionamentos.
Johns defende a necessidade de a sociedade civil formar uma frente ampla que envolva as questões de saúde, de justiça social e ambiental para enfrentar o lobby do agronegócio. “Se a gente não descobrir uma maneira de impedir a escalada dessa influência, vamos ficar patinando. Hoje, não conseguimos avançar com nenhum tema, ou avançamos a passo de cágado”.
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