19 de agosto de 2016
O governo boliviano apresentou à Organização das Nações Unidas (ONU) uma proposta de Declaração de Direitos dos Camponeses em 2012. A ideia, construída durante quase uma década, partiu de movimentos camponeses de todo mundo vinculados à Via Campesina.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Diego Montón, integrante do Movimento Nacional Campesino y Indígena da Argentina, membro da secretaria operativa da Coordenação Latino-americana das Organizações do Campo Cloc e representante da América Latina no coletivo internacional da Via Campesina que discute a Declaração dos Direitos Camponeses, explica que o avanço das companhias transnacionais gerou uma série de novas violações de direitos humanos, exigindo que as organizações camponesas buscassem uma proteção internacional ao seu modo de vida e trabalho.
Segundo Montón, o debate não interessa só aos camponeses, mas à toda sociedade, já que a agricultura camponesa “garante o direito à alimentação da classe trabalhadora”. “Não pode haver democracia sem o direito à alimentação garantido”, afirma.
Confira a entrevista completa abaixo:
Brasil de Fato – Como surgiu a ideia de uma declaração de direitos humanos específica para camponeses?
Diego Montón – Em primeiro lugar, o que avaliamos é que, com toda ofensiva das corporações transnacionais, foram surgindo novas formas de violação de direitos, que, quando se discutiram os direitos humanos, não havia a percepção de que poderiam ocorrer. Por exemplo, o tema das sementes. Há 50 anos não se poderia imaginar que se poderia privar de um agricultor o direito à semente, mas estamos em um contexto no qual as empresas estão avançando com normas internacionais que permitem a apropriação da propriedade intelectual, através de patentes, das sementes e, desta forma, espoliando direitos históricos dos camponeses. Assim como esse existem muitos outros direitos que devem ser ratificados pelo sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
Estamos em uma situação na qual, além da luta cotidiana que se dá nos territórios – pela terra, pela água, pela produção -, as empresas também estão armando uma estrutura internacional de tratados e convenções comerciais que são os seus direitos, blindam as companhias.
Para a Via Campesina é estratégico desenvolver uma legislação internacional que consolide os direitos dos camponeses e que coloque obrigações e limites às corporações.
Além disso, a própria discussão em torno da Declaração ajuda no debate sobre o papel do campesinato nesta etapa da História da humanidade, como sujeitos econômicos, culturais e sociais fundamentais para se sair da crise estrutural do capitalismo em que estamos. Há essas duas dimensões.
Qual a relação da proposta com as bandeiras da Via Campesina?
A Via Campesina defende que a agricultura camponesa pode alimentar a humanidade e, se pensamos na questão do aquecimento global, esfria o planeta. Esses debates se condensam na discussão em torno da Declaração. Além disso, há uma ofensiva que estamos vivendo na América Latina, África e Ásia, uma situação de perseguição e criminalização das lideranças camponesas. Acreditamos que essa discussão no Conselho de Direitos Humanos da ONU gera melhores condições para a luta e para parar essa situação.
Quando surgiu essa ideia?
Este processo se inicia com inquietações da Via Campesina nos anos 2000. A partir daí, em uma Conferência Internacional da Via em 2003 começou a discussão nos quatro continentes sobre quais deveriam ser os elementos que deveriam constar em uma Carta de Direitos Camponeses. Em 2008, em outra Conferência Internacional, se aprovou a Carta de Direitos dos Camponeses e Camponesas que contemplava uma visão de novos direitos e direitos coletivos.
Em 2012, com Evo Morales como presidente da Bolívia, conseguimos que o governo boliviano fosse o responsável por apresentar a proposta no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Aí se inicia o processo formal com um comitê de especialistas que vai traduzir a Carta de Direitos da Via para uma linguagem mais formal. Formou-se, então, um grupo de trabalho composto por Bolívia, África do Sul e Filipinas, como primeiros promotores desse processo.
Quais outros eixos a proposta de Declaração toca?
Há um desenvolvimento do que poderia ser a reforma agrária e a soberania alimentar a partir de direitos específicos: ao uso coletivo e comunitário da terra, à biodiversidade, à água – para consumo e irrigação -, à produção e a um rendimento mínimo que permita uma vida digna, à comercialização dos produtos a preço justo. Há um capítulo sobre o direito das camponesas, que aponta para a questão da igualdade de gênero, e há também uma compilação de direitos já reconhecidos, por exemplo: à saúde, enfrentando o tema dos agrotóxicos e a responsabilidade do Estado em relação a isso, à educação adequada à cultura.
Como a garantia de direitos a camponeses e camponesas afetaria a vida das pessoas nas cidades?
Diante de alguns problemas que são fatores fundamentais da crise – como a fome, a questão do abastecimento de alimentos saudáveis a preço justo nos mercados locais -, esta Declaração pode gerar um impulso à agricultura camponesa, que garante o direito à alimentação da classe trabalhadora, que, nos parece, é a coluna vertebral de uma democracia real. Não pode haver democracia sem o direito à alimentação garantido. O outro elemento é que a agricultura industrial é a principal fonte de emissões de gases que intensificam o aquecimento global, ante a qual nós propomos a agroecologia, que quase não tem emissões, ou seja, mitiga a crise climática. São alguns dos elementos de uma proposta que beneficia o conjunto da sociedade. Organizações de pastores, pescadores, trabalhadores estão se somando ao apoio a esta Declaração.
A proposta enfrentou resistências na ONU?
Sim, principalmente os países do Norte: os Estados Unidos foram o principal país a resistir. A União Europeia, a princípio, teve uma posição contrária monolítica, que logo foi se dividindo. Foram os dois blocos que se opuseram por três elementos principais: primeiro, negam a identidade camponesa, para eles não há campesinato como uma classe global; segundo, dizem que não é necessário falar de novos direitos, direitos humanos seriam só os que se consagraram anteriormente; e, terceiro, se opõe à concepção de direitos coletivos. Nós tivemos uma batalha cultural muito grande, eles entendem direitos de forma individual.
Há expectativas de aprovação da Declaração em breve?
Temos expectativas, porque, apesar da vulnerabilidade do sistema ONU e as mudanças na correlação de forças naquele espaço, entre os países da América Latina, africanos havia um grande apoio, e um número importante de países asiáticos também. Dentro da União Europeia começaram a ocorrer dissidências. Acreditamos que se alcançarmos a pressão necessária nesta etapa, com mobilização e lutas nos países, há possibilidade do processo avançar. Um momento chave será maio de 2017, no qual o grupo de trabalho exporá as últimas consideração a respeito da Declaração e, talvez, em setembro do próximo ano a proposta vá a votação no Conselho de Direitos Humanos. Passando essa etapa, iria à Assembleia Geral da ONU, onde a questão seria decidida.
Por Rafael Tatemoto – Brasil de Fato
Edição: Simone Freire
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