29 de setembro de 2016
Na esquina das ruas Dona Olinda com Carlos Pinto, os fiéis aguardam o início da procissão em frente ao Açougue do Aguinaldo. A parede que restou da construção proporciona um pouco de sombra e alivia o calor provocado pelo sol abrasador. Na contra esquina, a mesa de totó permanece no mesmo local desde que a lama de rejeitos de minério varreu tudo ali, em 5 de novembro do ano passado. Segue enviesada na porta da construção de dois andares onde era o Bar do Barbosa.
“Foi isso que restou para nós; poeira”, esbraveja Silmara Quintão, após uma ventania levantar muito pó e incomodar aqueles que foram até Bento Rodrigues – o distrito que foi soterrado pelo rompimento da barragem – participar da celebração. A banda desce a rua Carlos Pinto e chega até a esquina tocando uma canção alegre. Em frente ao Bar do Barbosa estão as ruínas da casa da filha de Ana Luisa da Silva Messias. Ela sobe um pequeno morro de barro, olha para os destroços da varanda da casa e lamenta: “Dá uma sensação muito ruim. Custei a criar coragem de vir aqui”.
A festa religiosa em Ação de Graças a Nossa Senhora das Mercês, no último final de setembro, teve um tom melancólico, de despedida, pois na quarta-feira anterior (dia 20) o governo de Minas Gerais publicou um decreto autorizando a Samarco a construir o Dique S4, que alagará parte das ruínas do distrito.
Mas também foi um sinal de resistência, de que os atingidos querem preservar a história e manter as tradições. “Vamos lutar até o final. Até a última gota de sangue. Não vamos deixar isso aqui acabar nunca”, garante Cristiano José Sales, funcionário de uma empresa de ônibus, capitão do União São Bento, o time de Bento Rodrigues, e um dos organizadores da festa religiosa.
A Samarco, mineradora responsável pela barragem do Fundão – que rompeu e provocou o maior desastre sócio-ambiental da história brasileira, deixando 19 mortos e dezenas de feridos – acredita que o dique possa impedir que a lama de rejeitos volte a atingir o Rio Doce com a chegada das chuvas. A construção vai alagar boa parte do que restou do distrito. O Ministério Público Estadual ainda tenta impedir, mas as obras já começaram, com abertura de estradas e represamento do córrego Santarém, que se une ao ribeirão Gualaxo do Norte.
“É o mesmo que invadir a história da gente”, resume Ana Luísa, de 64 anos, que criou os seis filhos em Bento Rodrigues. Da casa dela não sobraram nem as ruínas. “Tem que agradecer a Deus. Dois minutos depois que saí de lá a lama levou tudo”, recorda. Ana lamenta não poder oferecer uma água e nem um café para o repórter. “Antes tinha fartura. Não comprava fruta, verdura nem ovos. Eu estava com cinco dúzias de ovos guardados”, lembra.
Ana desce o morro de barro – feito por máquinas que abriram as ruas – e se junta à pequena procissão. Uma nuvem tampa o sol e traz alívio durante o trajeto. O cortejo religioso segue pela rua Carlos Pinto, passa ao lado dos destroços da Escola Municipal de Bento Rodrigues. Nas parede sujas de barro, várias pichações, entre elas: “Jesus ama o povo de Bento Rodrigues”.
A procissão vira à direita e sobe pela rua São Bento em direção à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, uma construção do século 18, que foi poupada pela lama, pois fica na parte mais alta do distrito.
“Não ficava um cisco”
No início do primeiro quarteirão, ficava a casa de Raimundo Alves. Há décadas ele oferecia um jantar e também um imenso bolo com o escudo do Atlético-MG para comemorar seu aniversário, que coincide com a data da festa de Nossa Senhora das Mercês. No segundo dia da festa, no domingo, a procissão parou em frente ao que era sua casa, e, acompanhada da banda, cantou parabéns para ele, que, emocionado, chorou.
“As ruas aqui eram muito limpinhas. Tinha o pessoal que varria, mas cada um fazia questão de varrer em frente de casa. Ainda mais em dia de procissão. Não ficava um cisco”, detalha Maria das Graças Quintão. Ela, apesar de cruzeirense, não negava o pedaço de bolo oferecido por Raimundo.
Maria participou do grupo de moradores que preparou a festa. Para que a procissão acontecesse, as tratativas foram iniciadas semanas antes, com a ajuda do Ministério Público, que pressionou a Samarco para disponibilizar ônibus, água, gerador de energia, contratação da banda de música e segurança. Além de liberar a entrada das pessoas, pois o acesso ao que restou de Bento Rodrigues é restrito e vigiado por seguranças da mineradora.
A reportagem percorreu as ruas de Bento – que é como os moradores se referem ao local – acompanhada de Maria, que contava a história e as particularidades de cada casa. Quando chegou na esquina onde ficava o bar da Sandra, irmã dela, Maria mostrou a banheira de hidromassagem, que a irmã havia comprado na semana do rompimento da barragem e ainda não tinha sido instalada.
No terreno contíguo explicou a divisão da própria casa, da qual não restam nem as paredes. “Tinha oito dias que o pessoal das Casas Bahia montou os móveis novos que comprei”, detalha. Na cozinha um pedaço da pia resistiu e embaixo dela o cesto de lixo ainda está lá.
História
Uma empresa holandesa de arqueologia trabalha nas áreas devastadas, principalmente nas igrejas, tentando recuperar algo das construções seculares devastadas pela lama. Maria já conhece os arqueólogos e pede empenho para resgatar o banco de pedra, que ficava em baixo de uma mangueira em frente à sua casa.
Os arqueólogos conseguiram retirar o barro da igreja e o assoalho de madeira está visível. As bases de imensas pedras das paredes não foram levadas pela lama, porém, um dos lados tombou. A capela de São Bento foi uma das primeiras construções de Minas Gerais, em 1718. Os moradores relatam que um raio em uma das torres destruiu a capela, que foi reconstruída em 1853.
Filomeno da Silva nasceu em Bento Rodrigues, em 1933. Aos 82 anos, é um dos moradores mais velhos. Ele era o procurador da capela e responsável pela manutenção. Começou a se dedicar ao trabalho aos 13 anos, acompanhando a mãe, sua antecessora na função. “Sempre tinha uma coisinha para arrumar. Dar um jeito no assoalho, fazer uma capelinha, arrumar o gramado”, lista.
A lama não foi capaz de desfazer todos os cuidados de Filomeno. Estacas de ferro estão pregadas no chão do lado de fora da igreja. “Seu Filomeno que colocou aqui para ninguém estacionar no gramado”, mostra Maria. Na pedra que era a base da igreja há uma placa com ressaltos pontiagudos de ferro. “Isso foi para os cavalos não esfregarem as costas na igreja”, explica.
Filomeno começou a trabalhar na Mina de Alegria, da Vale (uma das empresas donas da Samarco, junto com a BHB Billinton), aos 17 anos. Ficou até os 60, quando se aposentou com chefe de serviço. “Esse dique que eles querem fazer aqui é algo totalmente errado. Não está bem planejado”, avalia. Se dependesse apenas dele garante que não voltaria a Bento. “Venho porque meus filhos insistem. Quando eu chego aqui alembro tudo que tinha”, explica. “É muito triste”, completa.
A procissão sobe a Rua São Bento. Quando se aproxima da Igreja de Nossa Senhora das Mercês os sinos começam a tocar. Vários foguetes coloridos estouram no céu. O vento balança as bandeirinhas azuis e brancas que enfeitam o adro gramado da igreja. São 15h08 e chega um alerta no rádio de um dos seguranças: “Alerta de chuva moderado na área da barragem de Germano e em Bento Rodrigues”.
Liberdade
A vigilância constante para conseguirem acessar o terreno onde moravam incomoda demais os atingidos. Eles querem voltar a Bento quando bem entenderem, sem ter que pedir permissão ou acionar a promotoria para intermediar um contato com a Samarco, que cercou, colocou seguranças e controla o acesso ao local.
Enquanto preparavam a igreja para festa, os moradores lembraram do que fizeram no dia 30 de julho. Sem aviso prévio para a Samarco e nem para a Diocese, decidiram fazer a festa da São Bento no distrito. “Chegamos todos de uma vez já anoitecendo. Era umas 60 pessoas e tinha só um segurança. Ele ficou olhando e não pôde fazer nada”, lembra Maria.
Saíram da entrada da Igreja de Nossa Senhora das Mercês em procissão com velas e lanternas até os destroços da Capela de São Bento, que está cercada por tapumes. Do lado de fora fincaram uma bandeira de São Bento no chão. No panteão a seguinte frase: “A força do povo está na fé”
“Aquele dia foi bom demais. Nós extravasamos. Olhava para o lado e estava todo mundo chorando”, descreve Maria. O padre Armando Godinho chegou a ser notificado pela diocese. “Coitado. Ele não sabia de nada”, revela Maria.
A procissão entra na igreja e o padre Armando inicia a celebração. Maria faz uma das leituras. O padre inicia a pregação dizendo que mais pessoas poderiam participar da festa, mas que é preciso respeitar o sentimento de cada um, pois muitos não conseguem retornar a Bento. Depois, ele muda o tom e faz um apelo.
“Não podemos desistir e parar de lutar”, afirma. Padre Armando prega a importância da união entre os atingidos e critica a construção do dique S4 anunciada na semana anterior. “Temos que brigar pelos direitos conquistados pelos nossos pais, nossos avós. Como vamos contar essa história se isso tudo aqui estiver debaixo d’água?”, conclama.
Às 16h a missa está quase no fim. As pessoas dão as mãos e rezam o Pai Nosso. Do lado de fora um grupo de crianças está sentada no murinho de pedra fazendo algazarra. A missa acaba e começa a trovejar. As pessoas descem o morro que dá acesso à igreja. A chuva começa com força. O que era poeira começa a virar lama.
Por Daniel Camargos – Brasil de Fato
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