15 de agosto de 2022
Diego Junqueira, Gisele Lobato e Marina Rossi
Repórter Brasil
Enquanto o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeria aproveitar a pandemia para ir “passando a boiada”, pelo menos 351 deputados federais estavam tocando o berrante. Ferramenta exclusiva publicada pela Repórter Brasil revela que 68% da Câmara, ou 2 a cada 3 deputados, são cúmplices do desmonte socioambiental promovido pela gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Esses parlamentares apresentaram projetos de lei e votaram mudanças legislativas que prejudicam a fiscalização ambiental, favorecem atividades econômicas predatórias, precarizam a legislação trabalhista, dificultam o acesso a benefícios sociais e travam a reforma agrária, dentre outros retrocessos apontados por organizações socioambientais.
As conclusões fazem parte do Ruralômetro 2022, uma plataforma de dados e consulta sobre a atuação da Câmara dos Deputados, desenvolvida pela Repórter Brasil e que mede a “febre ruralista” dos parlamentares. A ferramenta, que está em sua segunda edição, indica se um deputado federal atua de forma positiva ou negativa para o meio ambiente, trabalhadores do campo, indígenas e outros povos tradicionais.
Para avaliar os deputados, foram analisadas 28 votações nominais e 485 projetos de lei apresentados na atual legislatura, iniciada em fevereiro de 2019. As propostas e os votos foram classificados como “favoráveis” ou “desfavoráveis” por 22 organizações especializadas em temas sociais, ambientais e trabalhistas. Cada deputado recebeu uma pontuação entre 36⁰ C a 42⁰ C – equivalente à temperatura corporal. Quanto pior o desempenho do parlamentar, mais alta é sua temperatura. Classificações acima de 37,4° C indicam “febre ruralista” – ou atuação desfavorável (consulte a ferramenta).
Os resultados da análise indicam o avanço da “nova direita” no Legislativo e mostram também o poder em Brasília da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como bancada ruralista, que tem influência hoje sobre dois terços da Câmara num momento em que o Congresso assume as rédeas da agenda política nacional, em sintonia com o Executivo. Na avaliação de especialistas, esse cenário favorece a aprovação de leis antiambientais e contrárias aos direitos sociais e trabalhistas.
“Com a onda bolsonarista de 2018, foi eleito um Congresso muito mais à direita que os anteriores. E ainda temos um governo anti-indígena e antiambiental, que construiu uma base de apoio no Legislativo com o centrão e dá reforço institucional a essa agenda radical e regressiva”, avalia o cientista político Cláudio Couto, professor de gestão pública da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Analistas dizem que a inclinação ruralista da Câmara já era uma realidade. A ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo conta que sempre foi possível aprovar leis protetivas, mesmo diante dessa maioria ruralista. Para isso, no entanto, pesava o apoio de parte do Executivo. “Mas isso se perdeu, porque o Ministério do Meio Ambiente é hoje o primeiro a apoiar no Congresso a derrubada da proteção ambiental”, diz ela, que trabalhou por 29 anos na Câmara como consultora legislativa de meio ambiente.
“Foi uma tempestade perfeita em desfavor do meio ambiente, a pior legislatura desde a redemocratização”, avalia Raul Valle, diretor de Justiça Socioambiental da WWF Brasil.
Entre os retrocessos aprovados pela Câmara desde 2019, Kenzo Jucá, assessor legislativo do ISA (Instituto Socioambiental), aponta três projetos do chamado “pacote da destruição”. Trata-se do PL 6.299/2002, ou “PL do Veneno” (que libera o uso de agrotóxicos, incluindo os comprovadamente cancerígenos, sem necessidade de aprovação da Anvisa), do PL 2633/2020, conhecido como “PL da Grilagem” (que afrouxa a fiscalização fundiária e facilita a grilagem de terras públicas), e do PL 3729/2004, ou Lei Geral do Licenciamento Ambiental (que elimina o licenciamento em alguns casos, cria o autolicenciamento em outros e enfraquece o papel das agências ambientais). As três medidas, que fazem parte da base de dados do Ruralômetro, estão em análise no Senado.
Única parlamentar indígena no Congresso em mais de 30 anos, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR, 36,6° C) avalia que, com o reforço da base ruralista, os ambientalistas têm sido obrigados a atuar na defensiva, sem muito espaço para avançar com propostas. “A gente tem feito o possível para não desmontar totalmente os poucos direitos dos povos indígenas.”
Em meio à tempestade perfeita, quem mais se destacou com propostas e votos considerados antiambientais e anti-indígenas foram deputados homens, eleitos por estados da Amazônia Legal e da região Sul, além de representantes da “nova direita”. Dos 20 piores pontuados no Ruralômetro 2022, 14 estão em primeiro mandato e 13 deles são do PL, partido do presidente Jair Bolsonaro. São parlamentares novatos eleitos na esteira do fenômeno Bolsonaro em 2018, que superaram os tradicionais defensores do agronegócio no desmonte socioambiental.
É o caso de Nelson Barbudo (PL-MT, 42° C), “campeão” do ranking entre os parlamentares pior avaliados. Todos os seus oito projetos de lei incluídos no levantamento foram considerados danosos ao meio ambiente.
Um exemplo é a proposta que impede a apreensão e destruição de equipamentos flagrados em infrações ambientais, o que fragiliza a fiscalização, na avaliação do Greenpeace. Em outro projeto de lei, Barbudo atuou em causa própria ao propor a redução do limite máximo de multas ambientais de R$ 50 milhões para R$ 5.000 – medida que potencialmente o beneficia, já que ele deve R$ 25 mil ao Ibama desde 2005.
Procurado, Barbudo não comentou o fato de ter sido o pior avaliado. Contudo, disse à Repórter Brasil que se define como um “preservacionista liberal”.
Em julho, Barbudo disse na Comissão de Meio Ambiente da Câmara que o Mato Grosso era um “modelo de preservação ambiental”. “O Brasil de uma maneira geral tem dado aula para que o mundo aprenda a agricultura sustentável”. Porém, dados do Inpe indicam que o Mato Grosso registrou 5.682 km² de desmatamento nos três primeiros anos da gestão Bolsonaro, alta de 32% em relação aos três anos anteriores (4.294 km²).
O segundo pior deputado avaliado pelo Ruralômetro é uma exceção em meio dos recém-chegados a Brasília: Lucio Mosquini (MDB-RO, 41,3° C) está na Câmara desde 2015 e é considerado um ruralista tradicional – ele declarou à Justiça eleitoral ter a posse de duas propriedades avaliadas em R$ 2,6 milhões.
Nesta legislatura, Mosquini foi autor do Projeto de Lei 195/2021, que altera o Código Florestal para ampliar a área legal de reserva natural que pode ser desmatada, sem necessidade de autorização, de 20 para 40 metros cúbicos anuais. O argumento dele é que agricultores familiares precisam da madeira para uso na propriedade, mas a avaliação dos ambientalistas é que a medida pode incentivar o desmatamento, “esquentando” cargas exploradas ilegalmente.
Já o terceiro pior avaliado foi o delegado Éder Mauro (PL-PA, 40,9 °C), que se define como “líder da bancada da bala na região Norte”. Apesar de sua atuação estar mais relacionada com a defesa das armas, Mauro vem se destacando como porta-voz de garimpeiros.
O parlamentar é autor de ao menos dois projetos que fragilizam a fiscalização ambiental e favorecem o garimpo: o PL 5246/2019, que permite a órgãos municipais fazerem o licenciamento ambiental de obras de mineração (em vez do órgão federal), e o PL 5822/2019, que autoriza a exploração mineral de pequeno porte em reservas extrativistas.
Mauro e Mosquini foram procurados pela Repórter Brasil, mas não atenderam aos pedidos de entrevista.
Para Raul Valle, a ascensão dos “ruralistas-bolsonaristas” está “baixando a régua para os ruralistas tradicionais”, que agora parecem até moderados. “Os ruralistas tradicionais nunca acreditaram que poderiam ser tão veementemente contrários a uma pauta querida pela população como é a ambiental, então sempre buscaram ser mais moderados. Mas agora, propostas que antes sequer eram imagináveis, porque contrariam o bom-senso e a opinião pública, ganharam força.”
O diretor de Justiça Socioambiental da WWF Brasil avalia que a tendência é que uma parte considerável da bancada ruralista tradicional acabe por radicalizar o discurso, para disputar eleitores com os representantes da nova direita.
Em sua primeira legislatura, estreando com oito deputados, o Novo foi a legenda pior avaliada no Ruralômetro (39,3° C, em média). “Eu tinha esperança de que o Novo pudesse se tornar aliado da questão ambiental, trazendo novas perspectivas, como faz a direita europeia. Mas a bancada deles se alinhou com o governo e com a visão de que as regras ambientais atrapalham os negócios, mostrando que ainda falta muito para o liberalismo brasileiro incorporar a pauta ambiental”, analisa Valle. Procurado, o Novo não respondeu até a publicação desta reportagem.
Embora seja uma epidemia na direita brasileira, a “febre ruralista” atinge também deputados de legendas de esquerda, como Flávio Nogueira (PT-PI, 37,9° C). Em 2021, quando era filiado ao PDT, o parlamentar votou a favor do “PL da Grilagem”. Procurado, o deputado não comentou.
“É surpreendente notar que, da direita à esquerda, há parlamentares que atingiram esses segmentos. Mas, à medida que os partidos chegam no extremo da direita, fica maior a temperatura dos deputados, como o PP, o Republicanos e o PL, que é hoje o partido da extrema-direita no Brasil”, diz a cientista política Maria do Socorro Braga, professora da Ufscar.
A atuação do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL, 38,2° C), é crucial para entender o avanço das pautas antiambientais, segundo os especialistas. Os projetos do “pacote da destruição” foram votados principalmente em sua gestão, iniciada em fevereiro de 2021. Aliado de Bolsonaro, Lira tem buscado articular a aprovação de projetos de interesse do Executivo.
“O governo em boa medida abdicou de sua capacidade de liderar o processo legislativo em favor das lideranças do Congresso. Nesse sentido, Lira tem sido o grande artífice do encaminhamento dessa agenda regressiva”, analisa Couto, da FGV.
Seu antecessor, Rodrigo Maia (PSDB-RJ, 37,3°C), por outro lado, mostrou-se mais aberto ao diálogo com a oposição e impediu alguns retrocessos ambientais, avalia Raul Valle, da WWF. Na esfera trabalhista, porém, a era Maia foi marcada pela perda de direitos sociais, com a aprovação da Reforma da Previdência, do “Contrato Verde Amarelo” e da “MP da Liberdade Econômica”, dentre outros, também incluídos na avaliação do Ruralômetro.
Além de ditar o ritmo da agenda política, este Congresso consolidou seu poder com o “orçamento secreto”, que permitiu a parlamentares aliados de Bolsonaro e de Lira terem preferência no envio de recursos federais para obras em suas bases eleitorais.
Com mais poder nas mãos do centrão, independentemente de quem ganhar a eleição presidencial, os ruralistas devem continuar crescendo na Câmara, ainda que não na mesma velocidade de 2018, avaliam os especialistas.
“O orçamento secreto vai favorecer a disputa eleitoral desses parlamentares [mais próximos ao governo atual]. Não dá para mensurar quanto, mas eles têm uma situação vantajosa”, diz Couto, da FGV, que vê hoje no Brasil um “governo congressual”, liderado pelo Legislativo.
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