17 de novembro de 2017
“A Providência Divina Não nos deu a triste sina De sofrer o que sofremos Deus o autor da criação Nos dotou com a razão Bem livres de preconceitos Mas os ingratos da terra Com opressão e com guerra Negam os nossos direitos” Patativa do Assaré
“Como vocês vão se organizar?”, questiona com olhos arregalados a personagem de Aparecida, depois de saber que alguns trabalhadores haviam ocupado as terras de palheiros; “Nós vamos montar uma cooperativa, será uma cooperação entre trabalhadores, sem mais patrões”, responde, sem pestanejar, a personagem de Cássio, um dos trabalhadores que manejam a carnaúba. Palheiros são os donos das terras onde se colhe a palha da carnaúba.
O diálogo recém apresentado é um trecho da peça teatral montada por jovens e adolescentes da comunidade Primavera, no município de Santa Cruz do Piauí, distante 306km de Teresina, capital piauiense. Aparecida e Cássio são dois dos jovens que participaram da oficina de teatro organizada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e facilitada pela Caravana Nacional de Luta Camponesa “Clodomir de Morais”.
A oficina aconteceu no mesmo fim de semana em que passou a valer as novas regras aprovadas pela famigerada Reforma Trabalhista. No sábado, 11, a capelinha Santana, localizada no fim da única rua que cruza a comunidade, lotou de adolescentes e jovens ansiosos para entrarem em cena. Das três peças criadas pelos jovens durante o fim de semana, duas abordaram a relação do trabalho com a cultura da carnaúba. Carnaúba é uma planta da família das palmeiras, característica do semiárido e principal produto de exportação do Piauí.
A data não poderia ser mais propicia para a discussão da relação entre o trabalho e a carnaúba. Dos 130 nomes na lista suja de cadastros de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho, 7 são de extrativistas da carnaúba e duas destas empresas estão em Santa Cruz. Dos 98 trabalhadores que foram vítimas da escravidão contemporânea na extração desta palha, 32 são santacruzenses.
“O MPA está em um processo de inserção neste município há cerca de um ano e meio”, aponta Franscisca Silva, integrante da Coordenação Estadual do Movimento. “O potencial de produção da carnaúba é enorme, mas infelizmente o povo ainda não tem consciência disso”. Avisa Francisca ou Chiquinha como é conhecida na região, expondo que o histórico dos moradores da região é de povos que sempre tiveram acesso limitado a terras, à água e a um trabalho digno. “Muitas vezes eles acabam agradecendo a oportunidade de emprego oferecida pelos palheiros, não sabendo que são explorados por eles, gerando receitas milionárias e recebendo uma mincharia”.
Para Maria Kazé, também integrante da Coordenação Estadual do Movimento, a condição destes trabalhadores se dá a partir da alienação no modo de assistir a vida e as relações com o trabalho. “No Mutirão da Esperança Camponesa apontamos a necessidade de construir outras formas de trabalho e socialização da riqueza da cera da palha de carnaúba, apontamos o artesanato com a palha e o beneficiamento da cera. O povo até se anima, mas sem uma ação do Estado com políticas publicas, como agroindústrias, não vai pra frente”, aponta Maria.
Original do nordeste brasileiro, a carnaúba, também conhecida como árvore da vida, tem como característica principal a resistência. Devido ao ambiente onde ela está ser de altas temperaturas, para se proteger e não perder humidade ela produz muita cera nas folhas. E esta cera é derretida em temperaturas acima dos 84 graus, é muito cobiçada e tem grande valor econômico. Hoje, ela esta presente na fabricação de baterias e chips de aparelhos eletrônicos, em cápsulas de medicamentos e em cosméticos. Da Carnaúba também são aproveitados sua madeira, para construção de casas, sua palha, para artesanatos, e seu fruto e amêndoa para farinhas.
Das ceras vegetais e animais, a da Carnaúba é a mais resistente e com brilho mais intenso. Em eletrônicos, protege o maquinário contra a umidade e recheia chips por ser isolante elétrico. Por ser uma cera sem gosto nem cheiro é usado no mercado das exportações de frutas e legumes, retendo a água destes alimentos durante o percurso. É utilizada também na fabricação de vernizes, e ultimamente, a cera tem sido empregada em tintas térmicas que facilitam a leitura de códigos de barras. Segundo a Embrapa Agroindústria Tropical, o bagaço que sobra do processo de retirada da cera pode ser usada para proteger o solo da erosão.
A planta está presente em mais três estados nordestinos, Ceará, Rio Grande do Norte e Maranhão. O Piauí é o principal produtor de carnaúba do país com uma receita que chega a R$102 milhões por ano. A pesquisa sobre Produção da Extração Vegetal e da Silvicultura (PEVS) divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) avisa que, no ano passado, o Piauí foi responsável por 50, 85% da produção nacional do pó cerífero da carnaúba, com 9.983 toneladas. A receita total obtida pela venda do pó cerífero da carnaúba chegou a R$ 102,1 milhões em 2016. O valor da tonelada foi de R$ 10,2 mil.
Edmilson do Nascimento, hoje militante do MPA, conta que em 2014 o Ministério do Trabalho bateu no carnaubal onde ele trabalhava devido a denuncias de trabalho escravo. “Multaram o palheiro, e quando passou um mês ele chamou nós pra trabalhar sem carteira assinada, nós tinha que receber três parcelas com o valor do salário mínimo cada uma, mas só recebemos a metade desse dinheiro”, conta o camponês. Mesmo assim, Edmilson continua a trabalhar durante a temporada neste setor devido a necessidade de complementação da renda.
Ele trabalha desde os 10 anos de idade na colheita da palha e recebe, atualmente, em média, R$ 60,00 por dia. Antes de 2014, ou seja, antes do flagrante do Ministério do Trabalho, Edmilson ganhava R$ 15,00 a diária, ou quanto o patrão achasse que deveria pagar. Esta é a ilustração do Agronegócio brasileiro, onde o escravo não se identifica como tal e gera ainda mais riquezas para os donos dos carnaubais.
Pressionado pela Bancada Ruralista, o Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, reduziu o conceito de trabalho escravo por meio da portaria MTB nº 1129 de 30 de outubro de 2017 que estabelece a existência de cerceamento de liberdade como condicionante para caracterização de “condições degradantes” e de “jornada exaustiva”. Além destes dois elementos, “servidão por dívida” e “trabalho forçado” também caracterizam trabalho escravo. Ou seja, ao invés de propor uma legislação que melhore as condições de vida dos trabalhadores, eles facilitam, ainda mais, a exploração da mão-de-obra barata.
Segundo a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho duas questões da nova CLT são cruciais para dificultar os flagrantes ao trabalho escravo: a terceirização e as negociações coletivas. As terceirizações distanciam o trabalhador de quem efetivamente controla a produção, já as negociações coletivas podem ampliar a jornada de trabalho, reduzindo o intervalo de descanso e com jornadas exaustivas.
Além das questões salariais, outro problema gritante é a quantidade de trabalhadores mutilados e até mortos nos carnaubais, pois é um trabalho com alto grau de periculosidade. São centenas de trabalhadores com braços cortados, olhos e cabeças furadas, picados de cobra venenosa, que não tem qualquer socorro ou acompanhamento médico, essa situação é agravada pela falta de qualquer vínculo empregatício com a empresa. A relação direta, muitas vezes, é apenas com o “gato”, uma espécie de agenciador de mão de obra. Embora essa condição coloque na carnaúba o rotulo de arvore da morte, a verdade é que são os empresários escravocratas e seus agronegócios que matam os trabalhadores no Piauí. Para o povo ela segue sendo a arvore da vida, em todo o seu esplendor.
Esta denúncia foi feita pelos próprios jovens que participavam das oficinas de teatro, quando questionados sobre os problemas presentes na Comunidade Primavera. Depois de alguns jogos para desmecanização do corpo e para desinibição nos gestos e na fala, eles foram desafiados à criação de peças teatrais que abordassem os problemas que eles assistem na realidade da comunidade e também possíveis soluções. O principal problema que surgiu foi a exploração de trabalhadores envolvidos na extração da palha e do pó da carnaúba, outra questão apontada foi a violência contra a mulher.
Durante o sábado, 11, e o domingo, 12, jovens, adolescentes e crianças participaram das atividades do MPA, que tinha como principal objetivo a organização dos jovens em brigadas. O fim de semana, além das oficinas de teatro, contou com a ciranda camponesa e uma noite cultural para encerrar as atividades. As três peças teatrais foram apresentadas na festa de encerramento para familiares e vizinhos, que prestigiaram o evento. A festa contou também com a animação do cantor Aderson Reis e ainda teve manifestações culturais típicas da região, como a capoeira, a dança de São Gonçalo e a lezeira.
“Adorei, amei, aqui não teve oficinas desse jeito aí, todo mundo participou, ninguém ficou com raiva porque todo mundo ficou com o papel que a gente queria, eu acho que tinha que ter mais”, este é o depoimento de Saiane Pereira da Silva, 10 anos, uma das participantes das oficinas. Ela entrou em cena na peça “Cooperativa da Carnaúba” usando um vestido e uma coroa confeccionada a partir da palha. Era dela a fala: “Carnaúba, carnaúba, o palheiro nos derruba!”. “A revolta da carnaúba” e “Questão de gênero” foram as outras duas peças criadas.
A Caravana Nacional de Luta Camponesa “Clodomir de Morais” desde que chegou no Piauí, no dia 12 de outubro, tem realizado um rico trabalho junto a juventude, principalmente no que se refere à emancipação de jovens camponeses por meio do teatro. Nesse mesmo fim de semana, a Comunidade de Tabuleiro, Assentamento Padre Cícero, também no município de Santa Cruz do Piauí, receberam as oficinas de teatro e atividades culturais.
Na segunda-feira, 13, a Escola Municipal Francisco Moura e a Escola Estadual Severo Maria Eulalio receberam apresentações da Caravana, além de intervenções na feira e na praça da prefeitura de Santa Cruz. “Acreditamos muito na linguagem do teatro para transmitir mensagens complexas, como a reforma trabalhista e a própria exploração da Classe Trabalhadora, é uma linguagem que inclusive aproxima nós do nosso público-alvo que é a juventude camponesa”, quem fala é Vinicius Tuchtenhagen Goldas, integrante da Caravana. “Sabemos que o teatro não resolve todos os problemas, mas ajuda a elucidar algumas questões cruciais, além de despertar uma visão mais crítica”, completa o jovem camponês.
Por Caravana Nacional de Luta Camponesa “Clodomir de Morais”
Edição: Comunicação MPA
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