27 de maio de 2021
Fernanda Castro
Lado B do Rio | Rio de Janeiro (RJ)
Em novembro de 2017 uma ação de camponeses e comunidades tradicionais do oeste da Bahia tomou conta dos grandes jornais brasileiros e expôs para todo o país a realidade de trabalhadores, camponeses, homens e mulheres de parte do cerrado brasileiro. A ação, que ficou conhecida como a “Revolta das águas”, destruiu máquinas e instalações em uma das maiores fazendas produtoras de soja no Brasil, a fazenda Igarashi, que vem acabando com água, a terra e o território da Bacia do Corrente e do Rio Grande.
Recordo que neste mesmo dia, chegava na minha cidade natal, Santa Maria da Vitória, que fica a 50km de onde tinha acontecido a mobilização e tentava acompanhar o que estava ocorrendo, não se falava em outra coisa na beira do Rio Corrente, e lembro que vendo um vídeo que circulava no facebook, em meio a gritos e muitas vozes, a fala de uma camponesa chamou bastante atenção, ela disse: “Ninguém vai morrer de sede nas margens do rio Arrojado”. Talvez o ouvinte nunca tenha escutado falar o nome desses rios, dessas cidades, ou até mesmo da região do oeste da Bahia, mas é que estou falando de um Brasil profundo, e que tem vivido um ataque violento ao seu território. Mas sei que vocês já devem ter visto por aí propaganda dizendo que o agro é pop, e é esse agro que tem destruído esse Brasil profundo.
A luta pela terra nessa parte do Brasil é longa e pouco conhecida. O oeste da Bahia é uma região de muita água, grandes rios e está dentro do segundo maior bioma do Brasil e da América do Sul, o cerrado, marcado por uma grande diversidade de fauna e flora, e por estar nele nascentes de grandes bacias hidrográficas brasileiras, é conhecido também como “berço das águas”.
É nessa região que se encontra o aquífero Urucuia, de onde brotam e alimentam nascentes de rios da margem esquerda do Rio São Francisco e que vai ao extremo norte de Minas Gerais, extremo sul do Piauí e do Maranhão, alcançando ainda o extremo leste de Goiás e de Tocantins.
Portanto, é uma região criada e alimentada pelas águas, é delas que brotam toda a cultura dessa gente geraizeira. Eu poderia elencar diversas manifestações e práticas culturais para demonstrar esse modo de viver, mas hoje eu trago as carrancas de Guarany e a literatura de Osório. Os rios dessa região já foram navegáveis por grandes embarcações que saiam de Juazeiro no norte da Bahia e iam ate o norte de minas, alimentando toda uma região feita de pequenos portos.
É na beira desses rios que nascem as carrancas, esculturas feitas de madeira que apresentam um rosto com característica humanas e ficavam nas proas dos barcos para espantar os monstros que habitavam as águas dos rios. E elas nascem das mãos de homens como Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany que com suas mãos meio negras, meio índias, totalmente brasileira surgiram esses monstros, como Drummond eternizou em seus poemas. Essas obras meio bicho, meio gente sumiram dos rios nos anos 40 quando as embarcações deixaram de ser usadas, hoje são reconhecidas como obras de arte e estão espalhadas pelo mundo com grandes colecionadores e em grandes museus.
E foi através das palavras que o alfaiate e romancista Osório Alves de Castro, alinhavou histórias sobre esse povo, território e rio nos seus três livros, que trazem um sertão de águas. Pouco se sabe sobre a literatura de Osório, que era uma militante comunista e que encantou Guimarães Rosa por conta da sua escrita, assim como, sobre o nosso Brasil profundo, mas nos seus livros ele retrata suas gentes, com uma linguagem própria ribeirinha e barranqueira. Seu primeiro livro, lançado em 1962, Porto Calendário, ganhou o prêmio Jabuti e mostrava um sertão diferente do que se via e da imagem que até hoje tantos sustentam, pois é um sertão de muita água.
Osório mostrou um território rico e essa riqueza que sempre foi o meio de sustentação de povos e comunidades, que mantém uma relação de subsistência com a terra, com uma cultura extrativista, como o extrativismo do pequi e buriti, que criam o gado solto e sem cercas e com um manejo que não agride a terra e os rios, mas que tem sido devastada.
Desde os anos 70 se inicia na região uma ocupação incentivada pelo governo militar através de imigrantes, sobretudo do sul do país. Com a ideia de expandir o mercado agrícola e introduzindo nesse território a mecanização do campo, alterando completamente o modo de viver local. Nos anos 80 se intensifica essa desastrosa ocupação e o desmatamento para plantio do eucalipto e pinho. Desse formato de produção surgiram os intensos conflitos por terra, e a região ficou marcada pela violência gerada através da grilagem. Um dos episódios mais marcantes desse período foi o assassinato de Eugênio Lyra, advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que vinha denunciando a grilagem na região. O crime ocorreu um dia antes dele depor na CPI da grilagem.
O mesmo projeto que assassinou um advogado defensor das comunidades camponeses, segue matando naquela região, devastando o cerrado, grilando terras, envenenando o solo, secando os rios e assassinando os camponeses e apoiadores da luta pela terra. Esse projeto é o agronegócio, que envolve grandes empresas e o estado e que agrava esse cenário ano após ano, como ficou evidente no ano passado no escandaloso caso de grilagem que envolveu grandes empresários do agronegócio e o alto escalão do judiciário, em uma tentativa de grilagem de mais de 366 mil hectares, uma área 5 vezes maior o município de Salvador.
Sem contar com a multiplicação de grandes lavouras de soja e a liberação de outorgas pelo estado para a captação de água, através de pivôs para a irrigação em grande escala. Só no ano passado foram liberados mais de dois bilhões de litros para a captação diária para essas grandes empresas, entre primeiro de abril e 20 de novembro, segundo apontou a reportagem da Mongabay.
Aliado a isso, o desmatamento também tem avançado nas áreas tradicionais, de chapadões e vales, que são de uso coletivo dos camponeses para o plantio e pastoreio do gado. Levantamento realizado pela a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) identificou que o Estado da Bahia autorizou o desmatamento de 34.306,712 de hectares, de março a junho do ano passado, sendo que 76,70% foi para o agronegócio.
E o terror do agronegócio encontrou um solo fértil para aumentar a pressão sobre os povos e comunidades através do governo Bolsonaro, com uma política ambiental que tem sido feito sob discurso violentos, desmantelamento das políticas ambientais e de fiscalização, flexibilização do armamento no campo e aumento da liberação do uso de agrotóxico, aliada a uma política de incentivo financeiro ao agronegócio. Não por acaso Bolsonaro desfilou em um cavalo ao lado de apoiadores ligados ao agronegócio em manifestação em Brasília, em fotos da manifestação era possível ver mensagens como “ O Agro é Bolsonaro”, sim o agro é morte.
E se há agro que mata, há povos que estão resistindo, se organizando e cuidando dos seus territórios. É claro que somente esta coluna não vai dar conta de toda a diversidade desse território e da resistência que não tem deixado ninguém morrer de sede naquela região, mas trazer um pouco desse lugar é continuar fortalecendo toda a história do brasil profundo e a luta contra a morte dos modos de viver. Além de ser um convite para aprofundarmos nosso olhar para um local que tem sido estratégico no avanço do que de pior temos vivenciado, um projeto de total destruição, e entendermos que o reflexo dessa política não está tão distante de nós.
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