17 de abril de 2017
O regime democrático tem sido uma exceção no Brasil. Dos seus mais de 500 anos de existência, quase 90% dele encontram-se acumulados pelo país com gigantescas e variadas experiências de autoritarismo e Estado de exceção.
A mão de ferro que lidera o conjunto das forças do atraso não suporta conviver com a democracia, tanto assim que permitiu a chegada da modernidade somente tardiamente e desacompanhada das reformas clássicas do capitalismo contemporâneo. Sem o reformismo agrário, tributário e social civilizatório, o Brasil se constituiu deformado pela predominância antidemocrática, cujas oportunidades de mudança oxigenadora da sociedade transcorrem geralmente em simultâneo aos momentos cruciais do próprio capitalismo mundial.
Este parece ser o caso atualmente experimentado pelos brasileiros, quando os Estados Unidos protagonizam a crise de dimensão global iniciada em 2008 e que, quase dez anos depois, segue ainda sem solução. Diante de enorme turbulência mundial, o Brasil obteve graus de liberdade coincidente com a ascensão interna de uma nova maioria política continuamente testada nas quatro últimas eleições presidenciais.
Mas isso desandou fragorosamente em 2016 que, guardada a devida proporção, parece trazer consigo percalços comparáveis aos momentos libertadores nacionais interrompidos por ataques como os registrados na implantação da Lei Saraiva em 1881 e na Contrarrevolução de 1932. Para tanto, pode-se destacar que entre 1873 e 1896, por exemplo, a longa Depressão mundial atingiu fortemente a Inglaterra, com significativa falência de empresas e bancos e avanço da partilha do mundo produtor de recursos naturais e produtos primários pelas potências industriais da época.
Coincidentemente naquele período, o Brasil conviveu com a ascensão das ideias republicanas de libertação dos escravos, constituição do ensino público e ampliação do direito ao voto. Por força disso, o manifesto do partido Republicano surgiu em 1870 conjuntamente com o jornal A República e a fundação do Partido Republicano (1873) em pleno regime monárquico no país.
A Lei Saraiva de 1881 interpôs o movimento de libertação nacional ao proibir o voto de todo o analfabeto e do alfabetizado com rendimento inferior a mil réis. Com isso, a participação dos eleitores foi reduzida de 10% da população para 1,5%, o que apontou para o refluxo do movimento de mobilização da sociedade. Mesmo como o retrocesso democrático, o Brasil não deixou de realizar a abolição da escravatura, a transição da monarquia para a República e a nova Constituição de 1891 acompanhada do salto no crescimento econômico durante o ciclo do café.
Neste mesmo sentido, a perturbação mundial gerada pela grande Depressão capitalista de 1929 coincidiu com a emergência da Revolução de Trinta no Brasil. Naqueles anos, a crise econômica da década de 1930 foi sucedida pela segunda Guerra Mundial cujo desenlace se deu com a emergência dos Estados Unidos enquanto potencia que substituiu a Inglaterra após derrotar a Alemanha.
No Brasil, a mobilização interna produzida pela Revolução de Trinta foi contestada pela guerra paulista de 1932, cujo objetivo era o desfazimento do governo de Getúlio Vargas e o seu projeto urbano e industrial de substituição da antiga sociedade agrária. Apesar de o movimento insurrecional ter bloqueado reformas agrária e social e postergado a implementação da CLT (consolidação das Leis do Trabalho) para somente trabalhadores urbanos nos anos de 1940, o país reuniu forças para a construção de uma nova sociedade urbana e industrial. Meio século depois, a economia brasileira encontrava-se entre as 10 mais ricas do mundo.
Iniciado há 13 anos, o projeto democrático e de crescimento econômico com justiça social encontra-se interrompido desde 2016. Isso pode ser algo definitivo ou somente uma página a ser virada na História, dependendo da capacidade de convergência e liderança por parte da infinidade de segmentos que cada vez mais se opõem à continuidade do governo dos golpistas erguido em 2016.
Como no passado repleto de percalços impostos seguidamente pela mão de ferro das forças do atraso, o ano de 2016 foi inegavelmente dos golpistas. Mas em 2017 pode ser a vez do soerguimento da nação, pois a esperança não vem apenas dos que aguardam dias melhores, mas, sobretudo, daqueles que esperançam com a força da mobilização e luta fazer de fato a vida valer a pena ser vivida.
Por Marcio Pochmann
[1]Professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.
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