24 de outubro de 2025
“Não se pode falar de soberania nacional se não houver soberania alimentar.”
Anderson Amaro, coordenador nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), destaca os programas de política alimentar implementados após o retorno de Lula à presidência, mas alerta para a cooptação da direita e do agronegócio. “A produção de soja está aumentando, mas já estamos com três anos de queda na produção de arroz, feijão e farinha de mandioca”, observa.

Fonte: TIERRAVIVA AGência de Notícias Por Lucía Guadagno e Nahuel Lag Foto: Luciana Fernández
O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) é uma das maiores organizações camponesas do Brasil. Faz parte da base que apoiou a candidatura do presidente Luis Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022 e, dentro dessa coalizão política, luta para que o governo federal destine mais recursos à agricultura familiar. Anderson Amaro, seu coordenador nacional, detalha os principais programas alimentares retomados desde 2023, que, juntamente com outras políticas, permitiram que o país saísse do Mapa da Fome da ONU este ano (ao qual havia retornado em 2021, durante o governo Jair Bolsonaro). Para o MPA, embora o retorno dos programas seja louvável, o orçamento alocado é insuficiente. Eles também reivindicam terras e crédito para a produção camponesa.
Amaro afirma que o MPA não busca apenas melhorar as condições de vida dos agricultores, mas também aumentar a oferta de alimentos saudáveis e acessíveis para a população trabalhadora. Nesse sentido, ele se referiu à Missão Josué de Castro, uma coalizão de organizações rurais e urbanas que busca pressionar o governo a implementar políticas que promovam a soberania alimentar.
Em relação aos programas alimentares restaurados, um dos principais é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por meio do qual o governo federal compra produtos da agricultura familiar e os distribui para escolas, asilos, presídios, cozinhas comunitárias e instituições de assistência social. Segundo dados oficiais, nos últimos dois anos, aproximadamente US$ 500 milhões foram destinados à compra de 288 toneladas de alimentos para quase 112.000 famílias de agricultores.

—Como o PAA foi organizado para que todas essas compras públicas fossem destinadas aos produtores rurais? E como o senhor avalia o programa?
— As compras são regulamentadas por lei. Os participantes do programa devem estar cadastrados no Cadastro da Agricultura Familiar. Ele funciona bem em todos os estados do país. Mas, até agora, o governo comprou muito pouco em comparação à demanda. Se houvesse mais financiamento, mais produtores estariam vendendo. De qualquer forma, este programa abriu uma excelente oportunidade para a agricultura familiar, que carecia de apoio governamental significativo.
—Que outros programas foram implementados com o novo governo?
—Outra política importante é o “Arroz do Povo”, que foi lançado em 2024 após as enchentes que vivenciamos no Rio Grande do Sul , onde quase 90% do arroz consumido no país é cultivado. Com essa crise, tornou-se necessário diversificar e descentralizar a produção. Há cerca de dez anos, tínhamos estados como o Maranhão, onde quase 30% da produção nacional era cultivada, mas por falta de incentivos, caiu para apenas 5%. Este programa é para as regiões Norte e Nordeste, porque já há produção no Sul. Ele fornecerá assistência técnica e subsídios para desenvolver uma produção maior. Esse arroz será vendido pelo PAA, mas também abastecerá a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para que ela tenha estoque em tempos de crise.
—O programa de arroz é destinado a agricultores e pequenos produtores?
— Exclusivamente. Os produtores foram identificados e agora está sendo fornecido suporte técnico para melhorar a produção, incluindo máquinas. Outro programa que foi reativado é o Programa de Desenvolvimento Rural, muito importante para famílias de baixa renda. Essas famílias recebem um subsídio único de cerca de US$ 800, que, embora pequeno, gera um processo revolucionário no campo. As famílias em situação de pobreza que recebem esse dinheiro, juntamente com o suporte técnico, investem em um projeto produtivo, e a economia familiar começa a ser impulsionada.

—Existem políticas de acesso à terra para o setor?
— Temos algumas fragilidades no acesso à terra, principalmente devido à falta de financiamento. O governo lançou o programa “Terra do Povo” para destinar terras fiscais à reforma agrária. Isso inclui terras adquiridas ou em processo de aquisição pelo estado, sujeitas à adjudicação de dívidas com a União, imóveis de bancos e empresas públicas, áreas de atividade ilegal, terras públicas federais, entre outros. Isso está sendo feito, mas em um ritmo muito lento.
—E em relação à agroecologia e à produção orgânica?
O que cresceu foi o incentivo à agricultura orgânica, que rejeitamos. Porque é um processo muito semelhante ao que o agronegócio fez com commodities, além disso, os alimentos produzidos são caros. Então, quem ganha um salário mínimo não tem condições de comprar esses alimentos. Por exemplo, um quilo de açúcar comum custa quase um dólar, enquanto um quilo de açúcar orgânico custa quase dois dólares. Nós, por outro lado, estamos trabalhando duro na agenda da agroecologia: como respeitar a natureza e produzir de forma saudável. E para isso, a MPA está liderando processos de produção de bioinsumos em alguns estados do país. Buscamos mudar os insumos de produção de uma perspectiva agroecológica, não do mercado orgânico. O agronegócio já percebeu que a sociedade está rejeitando alimentos que contêm agrotóxicos e está desenvolvendo produtos substitutos. Se não colocarmos essa perspectiva nas mãos das pessoas, dos agricultores, o agronegócio vai usurpar isso mais uma vez, porque eles querem dominar a técnica para si. E a nossa intenção é popularizá-lo, para que a população rural tenha acesso aos produtos e ao conhecimento, para que ela possa produzir seus próprios bioinsumos, inclusive.
—Você conseguiu superar o argumento de que a produção agroecológica não consegue igualar os rendimentos da produção com agroquímicos?
— Sim, com certeza. Isso é fake news. Tem até um filme, “O Veneno Está na Mesa de Todos “, que traz exemplos de como a produção agroecológica não só é mais eficiente, como também produz mais. Há pesquisas no Brasil que mostram que o agronegócio parou de aumentar a produtividade há muito tempo. A produção aumenta a cada ano, mas a produtividade não. Chegou a um platô. Mas o que aumenta a cada ano é a área cultivada, e é por isso que a produção aumenta. Por exemplo, muitas áreas onde antes eram produzidos outros tipos de culturas agora estão produzindo soja. Então, a produção de soja está aumentando. Tivemos quase três anos consecutivos de queda na produção da cesta básica: arroz, feijão e farinha de mandioca. A área plantada com mandioca caiu quase 25% nos últimos três anos. Algo semelhante aconteceu com o feijão e o arroz. E essas áreas são substituídas por quê: soja ou milho? Mas não milho nativo, que gostamos, mas milho para exportação como proteína animal. E outro perigo recente é a produção de etanol a partir do milho, que antes era feito a partir da cana-de-açúcar. É um crime enorme.

Foto: MPA Communications
O lobby do agronegócio, uma barreira à agroecologia e à soberania alimentar
Uma questão central para o MPA é a concessão de crédito para a agricultura familiar. Amaro acredita que o Programa de Financiamento da Agricultura Familiar (Pronaf), operado por bancos estatais há 30 anos, foi “sequestrado pelo agronegócio”.
—Por que você afirma que o Pronaf não beneficia pequenos produtores?
—Porque quando pequenos agricultores procuram um empréstimo, a única coisa que os bancos oferecem é um pacote pré-embalado para a produção de soja. Os bancos não gostam de conceder empréstimos para a produção de arroz ou mandioca. Apesar da existência de linhas de crédito para agroecologia e agrofloresta, o acesso a esses empréstimos é baixo. E não é porque as pessoas não estejam interessadas, mas porque os operadores bancários não incentivam, porque isso significa mais trabalho. Imagine que você é um funcionário do banco: o que você prefere fazer, um empréstimo pré-embalado de 100.000 reais ou dez empréstimos de 10.000 reais para criar galinhas? Os bancos querem atingir suas metas de empréstimo o mais rápido possível. Então, eles financiam quatro ou cinco safras, e o agronegócio é fortalecido. Esse esquema não permite que os agricultores desenvolvam uma produção mais diversificada.
—E qual é a alternativa?
— Da MPA, queremos que o governo crie uma nova política de crédito. Queremos que ela seja desbancarizada e não aplique os princípios do Acordo de Basileia, que exigem garantias do tomador. Esse crédito, aliás, deve ter uma parcela subsidiada. Para produzir alimentos, defendemos o subsídio. Porque fomentar a produção ajuda a reduzir a inflação. Alertamos sobre isso no início do governo Lula: com a volta dos programas sociais, as famílias voltaram a ter dinheiro e a primeira coisa que fizeram foi comprar comida porque estavam passando fome. Mas a produção básica não aumentou, então os preços subiram, também alimentados pela guerra, pela crise ambiental e por outros fatores externos. Então, temos uma tarefa a cumprir: precisamos aumentar a produção e ter estoques públicos para que, em tempos de crise, possamos agir de forma decisiva. É por isso que todos os países centrais consideram a segurança alimentar um fator fundamental na soberania nacional. Não se pode falar em soberania nacional se não houver soberania alimentar.

—E o governo entende que destinar terras para produzir commodities em detrimento da produção de arroz ou mandioca é uma questão de soberania alimentar?
Parte do governo não. Isso é um grande problema. Principalmente os mais próximos do presidente. Porque eles não acreditam nisso. Para eles, é melhor dizer ao presidente que a inflação é por causa do mercado, do câmbio, que vai melhorar em dois ou três meses. Estamos trabalhando com os movimentos que participam da Missão Josué de Castro para pressionar e mostrar ao governo que ele precisa fazer alguma coisa, criar um instrumento, talvez um fundo da agricultura camponesa, para facilitar o acesso ao crédito. Um instrumento coletivo que sirva de incentivo à produção de alimentos no campo brasileiro.
—Nesses limites ao fomento à agricultura familiar, qual a influência da aliança governamental que Lula construiu para chegar à presidência e da pressão da bancada ruralista no Congresso?
—Dizemos que no Brasil ganhamos a presidência, mas não o governo. Parte do governo Lula é de direita; ele o formou assim para poder governar. E o Congresso é o pior que já tivemos até agora. A maior parte é de direita e parte é fascista. O Congresso, nós mudamos muitas coisas, inclusive parte do orçamento nacional. Por meio de emendas parlamentares, eles reivindicaram um terço (das despesas discricionárias) do orçamento para si. É uma disfunção da estrutura governamental e da estrutura democrática. O governo fica sem condições de realizar um processo coordenado, de promover políticas públicas para toda a população. Se o Executivo tem que desenvolver um programa grande, que exige vários milhões de reais, ele fica preso porque parte do orçamento tem que ser acordado com o Parlamento. Um dos maiores problemas para avançar as políticas que gostaríamos de ter, incluindo a reforma agrária, é que não há dinheiro suficiente para isso. O Parlamento não quer. Para as eleições de 2026, como o próprio Lula diz, o desafio é conseguir maioria pelo menos no Senado.
—Além do fundo para a agricultura camponesa, que outros assuntos estão na agenda da Missão Josué de Castro?
—A Missão é uma plataforma de soberania alimentar. Demos o nome em homenagem ao Josué de Castro, que estudou a geografia da fome no Brasil. Ele era médico e geógrafo, então entendeu muito bem que o problema da fome não é falta de comida, mas um problema político, uma decisão política. A plataforma reúne organizações do campo e da cidade porque produtores e consumidores precisam trabalhar juntos nessa estratégia. Porque os ricos agora podem comprar seus alimentos, mesmo os saudáveis. Mas os trabalhadores não podem. Então, como podemos fornecer aos trabalhadores urbanos alimentos saudáveis a preços acessíveis? A estratégia é diversificar e aumentar a produção agroecológica com base nas realidades de cada bioma brasileiro. Cada região tem culturas e culturas alimentares diferentes, e isso deve ser respeitado. Buscamos um processo com políticas públicas. Já estamos fazendo coisas, mas queremos expandi-las e articulá-las melhor. É um grande desafio, mas estamos confiantes de que pode ser feito; já tivemos algumas experiências e é possível. Mas requer orçamento. É por isso que dizemos, por exemplo, que os recursos do Pronaf, que atualmente são destinados a commodities, devem ser destinados a uma nova política que promova uma revolução no campesinato brasileiro. Vamos lutar para que isso aconteça.

* Esta entrevista faz parte da cobertura colaborativa da Agência Tierra Viva e Huerquen Comunicación do Seminário “ O Futuro da Nossa Alimentação ”, realizado em Buenos Aires nos dias 13 e 14 de junho de 2025 e organizado pelo Escritório do Cone Sul da Fundação Rosa Luxemburgo (FRL) em conjunto com o Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS), o Movimento Nacional Camponês e Indígena – Somos Terra (MNCI-ST) e o Grupo ETC.
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