29 de janeiro de 2024
Matheus Lopes Quirino
Mongabay
O Brasil está no topo dos países que mais importam e consomem agrotóxicos no mundo. Só no final de 2023, foi aprovada, com vetos, a PL 1459/2022, conhecida entre ambientalistas como “PL do Veneno”, lei que flexibiliza a utilização de pesticidas em todo o país.
São mais de 3 mil agroquímicos registrados hoje em território nacional, número que dobrou entre os anos de 2010 e 2021. Desse montante, 49% dos produtos são considerados altamente perigosos, como mostram dados publicados no recém-lançado Atlas dos Agrotóxicos, editado pelo braço brasileiro da fundação alemã Heinrich Böll.
Ao compilar dados de forma inédita sobre a ação de determinados produtos no solo, no ar e nas águas, o atlas joga luz em questões sobretudo comunitárias, como a insegurança alimentar, a pobreza e a influência de empresas do ramo em políticas públicas – além de estudos sobre o impacto dos agrotóxicos em vários campos, como o econômico, o ecológico e o social.
“Um dos objetivos do mapa é visibilizar o trabalho de pesquisadores de todo o país”, conta Marcelo Montenegro, coordenador de programas e projetos de justiça socioambiental da fundação no Brasil. Para ele, a mudança de paradigma pode acontecer quando a perspectiva regional for sobreposta à visão econômica. “O pensamento tem que ser feito a partir do ambiental, do local, ao invés do econômico. Hoje, continua-se usando agrotóxico para resolver o problema, não a causa do problema.”
Neste processo, uma máxima do filósofo inglês Thomas Hobbes parece pautar o debate: se os fins justificam os meios, agir com o intuito de produzir alimentos em larga escala é ir de encontro com o projeto da Revolução Verde, que incentivou as monoculturas pelo mundo – e popularizou o uso de pesticidas também.
No atlas, a pesquisadora Julia Dolce, co-editora da publicação, escreve sobre as falhas dessa política implementada no Brasil na década de 1960 e faz paralelos com problemas contemporâneos. Um deles está nas recentes nomenclaturas e readequações para tornar produtos mais ‘verdes’. Um rebranding, uma maquiagem para a comercialização desses insumos danosos para a agricultura.
Ao mesmo tempo, a fome, fantasma que assombrou o Brasil nos últimos anos, voltou, atingindo 15,5% da população. Um indício de que o aumento da produção de alimentos favorecida pelos pesticidas não foi capaz de combater a insegurança alimentar – como mostra o gráfico abaixo, produzido com dados da Rede Penssan e publicado no Atlas dos Agrotóxicos.
Por meio de artigos de ativistas e ambientalistas de vários biomas do Brasil, a Fundação Heinrich Böll pretende pautar o debate público para a revisão e a implementação de políticas regulatórias para o consumo dos agrotóxicos.
Hoje, por exemplo, a quantidade de resíduo do herbicida glifosato encontrado em amostras de água potável no Brasil é 5 mil vezes maior do que na União Europeia. Usado para o controle de ervas daninhas, o glifosato é danoso para espécies polinizadoras, como as abelhas – um dos maiores e mais recentes problemas da fauna brasileira.
“Herbicidas como o glifosato e 2,4-D provocam uma redução de organismos vivos do solo”, pontua a pesquisadora Francileia Paula de Castro. “Pesquisas realizadas com minhocas expostas a concentrações de glifosato por períodos incubatórios mostraram redução de peso – com perda de até 50% –, parada reprodutiva e notórias alterações morfológicas, podendo [estes organismos] inclusive desaparecer de plantações que usam este ingrediente ativo”.
Como relembra o Atlas dos Agrotóxicos, o glifosato é potencialmente cancerígeno para os humanos, assim como outros herbicidas amplamente vendidos também causam sérios danos à saúde: a atrazina, por exemplo, é um desregulador hormonal, e o paraquat pode causar intoxicações fatais.
A pesquisadora em Saúde Pública Aline do Monte Gurgel, em seu artigo sobre a presença de pesticidas na água publicado no atlas, mostra como a questão começa antes da própria vida, no ventre das mulheres: “Há também um recorte de gênero nestas intoxicações, posto que as mulheres têm sofrido em seus próprios corpos os desdobramentos delas: seja por resíduos de agrotóxicos encontrados no leite materno, seja pelos casos de abortos em função da exposição aos agrotóxicos, seja ainda por gerarem bebês com malformação fetal e/ou que apresentam puberdade precoce nos primeiros anos de vida”.
Ao longo da edição, mapas elaborados com base em pesquisas de institutos, com dados checados pela Agência Lupa, mostram vários gargalos do agronegócio, como a contaminação do milho por defensores agrícolas. Como hoje 96% da produção do alimento é transgênica, Castro trouxe os perigos da contaminação cruzada na cultura do grão – que é importado para diversos países do globo.
Nos últimos anos, a União Europeia aprovou uma série de medidas para controlar o uso de agrotóxicos em suas plantações sem deixar, no entanto, de os produzir em larga escala. A exportação de insumos para países do Sul Global é uma faca de dois gumes.
Em um levantamento recente, compilado no Atlas dos Agrotóxicos, dados que mostram como resíduos de defensivos agrícolas proibidos em países como França e Alemanha são encontrados em alimentos consumidos nas dietas locais. “As commodities brasileiras entram em solo europeu com uma espécie de consentimento”, alerta Montenegro, citando uma das medidas mais polêmicas da Convenção de Roterdã.
“Essas empresas acabam produzindo e exportando para países como o Brasil, mas o impacto volta para os países do norte. É um problema global, porque existem poucos processos internacionais em que se pode debater essa questão. É preciso de um marco global para se regular a questão dos agrotóxicos”, ressalta Montenegro.
Para complementar a questão, a pesquisadora Katrin Wenz, em seu artigo no atlas, mostra o impacto dessas substâncias no pólen e néctar de plantas tratadas com agrotóxicos, citando um estudo de 2017 revelador: “75% de todas as amostras de mel do mundo todo continham pelo menos um neonicotinoide, conhecido por ser prejudicial às abelhas”.
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