8 de novembro de 2023
Marcos Corbari
MPA Brasil | Seberi (RS)
O território às margens dos rios Uruguai e Turvo, foi cenário de muitas passagens históricas que dialogam com as palavras Rebeldia e Resistência. Ali onde a correnteza do rio divide a fronteira entre Brasil e Argentina, passou a Coluna Prestes (conta-se, inclusive, que o nome do município de Esperança do Sul deve-se à espera pela passagem de Luiz Carlos Prestes, conhecido como “Cavaleiro da Esperança”). O labirinto de estradas de chão batido, tão utilizadas pelos chibeiros que transportavam mercadorias de um lado ao outro do rio também foi cenário ideal para a formação e movimentação de um dos chamados “Grupos dos Onze”, que reunia partidários de Leonel Brizola nos esforços do movimento da Legalidade, que serviu de resistência à primeira tentativa de golpe praticada no Brasil. Há quem relate que até mesmo Che Guevara, em suas andanças antes de ser assassinado na Bolívia, teria utilizado os trajetos nas proximidades das barrancas dos rios para deslocar-se.
No último domingo (06/11) um fato histórico ocorrido na região ganhou um memorial: na Barra do Turvo foi instalado um “Sítio de Memória”, estrutura que demarca o local aproximado onde na década de 1970 foi estabelecida uma base tática do movimento Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que sob o comando de Carlos Lamarca buscou o enfrentamento da Ditadura Militar e a busca pela retomada da democracia. Contando com militantes da região e outros vindos de fora, foi implantada ali uma empresa pesqueira de fachada, a qual deveria ter servido de acolhida para Lamarca quando as forças repressivas estavam fechando o cerco para sua captura. A escolha do comandante porém, invés de o trazer ao sul, o levou ao sertão da Bahia, onde foi capturado e assassinado. Da antiga estrutura organizada no município de Esperança do Sul, não restou vestígio físico, apenas histórias que vem sendo contadas de geração a geração entre o povo ribeirinho, ao mesmo tempo em que desperta cada vez mais atenção de estudiosos, pesquisadores e historiadores que se aprofundam no tema.
O ato, que contou com a participação de militantes daquele período e familiares dos que já são falecidos, foi apoiado pela prefeitura municipal de Esperança do Sul, vereadores, secretários municipais e representantes de diversos segmentos comunitários, bem como pela Rede Brasil Memória Verdade e Justiça, que enviou como representante, vindo de Foz do Iguaçu, o jornalista Aluízio Palmar, conhecido como “arqueólogo da memória” por dedicar a vida a pesquisar e tornar públicos documentos e fatos ocorridos no período da ditadura.
Camponeses e ribeirinhos que vivem no costado também foram até o local, conferir a materialidade das lembranças compartilhadas de um tempo onde falar sobre o assunto poderia acarretar prisão e tortura. De São Paulo a emissora TVT se fez presente através do seu correspondente, Guilherme Oliveira, jornalista e escritor, filho do saudoso Diógenes Oliveira, que combateu ao lado de Lamarca. Do lado argentino do Rio veio Roberto De Fortini, italiano que ainda hoje cuida daquela que talvez seja a última base da VPR, nas proximidades do município de Aristóbulo del Valle, convertendo-se talvez no último clandestino do grupo.
Guilherme Oliveira afirmou que “agora estudantes, pesquisadores interessados pelo tema, turistas e familiares de presos políticos terão um lugar para refletir sobre a importância da memória, verdade e justiça para além do slogan”. Clarissa Mertz, pesquisadora do tema e também filha de perseguido político, fez memória também as mulheres da VPR e as companheiras dos militantes perseguidos, presos, torturados e exilados. Já o prefeito municipal Moisés Alfredo Ledur (MDB) apontou que para além das diferenças de orientação ideológica que possam existir, é importante que sejam mantidas as condições necessárias para o debate e o exercício pleno da democracia, bem como o respeito à história e o acesso por parte das novas gerações aos fatos ocorridos no território. “Esse momento não é para nós, que vivemos a ditadura, esse momento é para as futuras gerações que tem que saber que no Brasil muitos lutaram e deram sua vida pela Democracia”, afirmou Juliano Roso, dirigente do PcdoB, que veio de Passo ]fundo para prestigiar a atividade.
Roberto De Fortini relembrou dos dias em que junto com os demais companheiros e companheiras colocaram-se à disposição para lutar pela democracia e pela vida. “Os três países que se encontram aqui nas proximidades pleiteavam a Liberdade”, afirmou. Se dirigindo às autoridades municipais presentes fez questão de afirmar uma verdade óbvia, mas que nos últimos tempos não tem sido tão evidenciada o quanto deveria: “Para existir atividade política é preciso existir democracia, sem democracia não existe política”. Antes de ajudar a descerrar a placa que relembra seus companheiros, o “Gringo”, como é conhecido pelos amigos, fez um compromisso: “Vou deixar minhas memórias e as histórias desse tempo em um livro e vou trazê-lo para vocês”.
Aluísio Palmar, que tem dedicado sua vida às ações de preservação da memória política, afirmou que “é preciso que todas as gerações tomem conhecimento da luta de restauração da democracia no Brasil, para que saibam o que aconteceu nos 21 anos de ditadura”. Enalteceu a memória dos que tiveram o desprendimento de se colocar na luta, na linha de frente, mesmo em condições desiguais. “Aqui neste local um grupo de brasileiros decidiu resistir, montando uma base de resistência, uma das muitas que foram montadas em todo o Brasil, aqui neste local, brasileiros valentes não se renderam, lutaram contra a tirania”. Apontou ainda que “só é possível avançar em direção ao bem estar social em uma democracia, só é possível avançar em direção a uma sociedade mais justa e igualitária em uma democracia”.
A cerimônia foi simples, porém repleta de simbolismo. Ao som de palavras de ordem que evocavam “Ditadura nunca mais!” a placa que presta homenagem aos militantes da VPR Adão Dias Machado, Antonio Alberi Maffi, Belmor Carlos Palma, Bruno Piola, Jaime da Silva Ramos, Luiz Carlos de Oliveira, Reneu Geraldino Mertz, Roberto de Fortini e Sérgio Guimarães Siqueira foi descerrada. “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, afirmaram ainda, em voz conjunta os presentes na atividade.
O jornalista Guilherme Oliveira da TVT entrevistou um dos organizadores do ato, o dirigente do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Paulo Facione, que residem com sua família em Esperança do Sul. Confira trechos dessa conversa:
Qual era a leitura até então do povo ribeirinho sobre onde é hoje o Sítio de Memória?
Faccioni – A leitura que eles faziam é que era uma furna, cavocada pelos comunistas. Não sabiam muito do que se tratava. Ocorreu em uma época em que não se falava, era ditadura. Hoje, com a democracia e a iniciativa do Sítio de Memória, as pessoas estão falando sobre isso. Comentam que algum parente trabalhou na empresa pesqueira que na verdade era uma fachada para abrigar guerrilheiros perseguidos, entre eles, o comandante Carlos Lamarca.
Como enxergas esse Noroeste Insurgente?
Faccioni – O Noroeste gaúcho tem uma vasta tradição de luta. Por essa região passou a Coluna Prestes com forte adesão da população local, ocorreu o primeiro movimento armado contra a ditadura civil-militar no Brasil e foi fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Essa fundação ocorreu graças a Teologia da Libertação e com ela uma visão progressista da igreja e seus agentes.
Como imaginas esse Sítio no futuro?
Faccioni – No governo passado, durante quatro anos, ouvíamos todo dia pronunciamentos sobre a volta da ditadura sem as pessoas saberem de fato o que ela foi, achando aquilo normal. Então, esse monumento aprofunda o debate sobre o que foram os horrores da ditadura, o estrago que a ditadura fez nesse país. Muitas pessoas vão conhecer o Sítio de Memória, pois na Barra do Turvo circula muita gente em virtude do turismo da região do Salto do Yucumã. Que as gerações mais novas reflitam, porque isso foi tão reprimido, tão trancado que agora queremos que esse espaço possa ser de perguntas e respostas.
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