7 de junho de 2023
Dyepeson Martins
Agência Pública
Era início dos anos 1980, governo do general João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar. Naquele momento, a pressão pela reabertura política no Brasil se intensificava ao passo que a perseguição e a violência cresciam exponencialmente em Viseu, Norte do Pará. A repressão no município, distante 320 quilômetros de Belém, capital do estado, se concentrava principalmente na antiga Gleba Cidapar — região com vilas, garimpos e uma população de aproximadamente 10 mil pessoas. Foi onde Raimundo* passou a maior parte da vida e convivia com o medo da família em meio à disputa por terras.
Ele conta que uma guerra desleal se instalou entre 1983 e 1985. De um lado, colonos e posseiros e do outro, a estrutura da Josapar — Grupo Joaquim Oliveira S.A Participações, dono de marcas conhecidas do público como arroz Tio João e feijão Meu Biju. À época, a empresa atuava na Gleba Cidapar como acionista de pelo menos sete empreendimentos, os principais eram a Propará (Companhia Agropastoril Industrial Mineral do Pará) e a Agro-Pastoril Grupiá.
“Os pistoleiros da Cidapar dentro de um avião atiraram na casa, sobre a casa do seu Silva. Primeiro atiraram sobre a casa do seu Silva e se defendeu se jogando dentro de um poço e outro amigo dele entrou dentro de um oco de pau”, narrou Raimundo, frisando que ele e a família também fugiram dos tiros. “Depois que eles atiraram sobre a casa do seu Silva de metralhadora, eles se deslocaram pra casa do meu pai, pra nossa casa, que era bem próxima ali na Barraca da Farinha. E lá eles desferiram alguns tiros sobre nós, sobre mim, sobre meu irmão, minha irmã e minha mãe”.
Raimundo refere-se ao grupo Josapar como “Cidapar” pelo fato de o nome ter se popularizado entre os moradores ao fazer referência à empresa que atuava na região até 1968, quando declarou falência e o BDI (Banco Denasa de Investimentos) assumiu os ativos do empreendimento. Em 1980, o banco aliou-se à Josapar e juntos criaram as empresas que passaram a operar na gleba.
O episódio descrito por Raimundo, ocorreu quando ele tinha pouco mais de seis anos de idade. Era uma criança que, apesar de tão nova, pescava junto com os irmãos e a mãe para ter comida na mesa. O pai, sindicalista, se dedicava exclusivamente à representação dos moradores e viajava com frequência à capital paraense denunciando os conflitos.
“Eles atiraram de pistola. O avião ‘tava’ tão baixo que dava pra ver as mãos deles atirando sobre a gente. A gente via a ‘língua de fogo’ atirando sobre nós. Dali minha mãe mostrou pra eles uma enxada e eles sobrevoaram, saíram. Papai já ‘tava’ na tribuna [da Assembleia Legislativa do Pará] pra fazer a denúncia. Foi ligado pra lá e foi relatado esse fato. E lá eles disseram que os colonos tinham uma arma diferente, mas era uma enxada que foi apontada para o helicóptero”, lembrou.
As ações da Josapar visavam a apropriação irregular de terras com a expulsão — a maioria das vezes violenta — dos proprietários, segundo material obtido com exclusividade pela Agência Pública e que faz parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, um amplo trabalho de pesquisa que envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pela Universidade Federal de São Paulo, através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.
Ainda segundo as fontes ouvidas pela Unifesp, os interesses econômicos da Josapar na região visavam mineração, exploração de madeira e produção de cerâmica. O material analisado pela reportagem ainda traz evidências de graves violações de direitos humanos por meio da aliança entre forças de segurança da ditadura militar e a Josapar, uma das maiores empresas — como ela se apresenta em seu site oficial — do setor de alimentos do Brasil e que exporta produtos para mais de 40 países.
Os documentos analisados pela Unifesp mostram forte relação entre o grupo Josapar, o Banco Denasa e o regime militar. Entre os nomes influentes no Governo Federal, estava o general Antônio Carlos Muricy, chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército, entre 1966 e 1969, e chefe do Estado-Maior do Exército, de 1969 a 1970. O militar fez parte do Conselho Administrativo do Banco Denasa justamente no período de conflitos na Gleba Cidapar.
Os pesquisadores também identificaram uma relação com Mário David Andreazza, ministro dos Transportes, de 1967 a 1974, e ministro do Interior, entre 1979 e 1985. O filho dele, Mario Gualberto Andreazza, foi mencionado num documento analisado pela Unifesp como presidente do Conselho Administrativo do Banco Denasa na década de 1980. Ações do ex-ministro, segundo os pesquisadores, levaram à concessão de pelo menos 30 alvarás de pesquisa mineral a empresas do grupo Josapar.
O nome mais citado pelas fontes anônimas que participaram do levantamento da Unifesp sobre o auge da violência na Gleba é James Vita Lopes — ex-funcionário do consórcio Josapar-Denasa encarregado de chefiar a “guarda de segurança” composta por pistoleiros que teriam invadido casas, destruído plantações, agredido e assassinado moradores. James tinha boa relação com militares, inclusive com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) — órgão de inteligência do regime militar.
Em novembro de 1983, James assinou um termo de declaração ao DOPS afirmando ser gerente do complexo residencial das empresas instaladas às margens da BR-316, área onde a Josapar se instalou. Na declaração, ele negava a violência contra os moradores, mas admitia ter transitado em diversas propriedades com um grupo de funcionários na busca por Quintino, líder da resistência armada dos posseiros.
A pressão para encontrar Quintino “vivo ou morto”, numa caçada iniciada em meados de 1983, envolveu setores da segurança pública, pistoleiros, empresários e fazendeiros. “Aí a coisa tomou um rumo meio ignorado, tomou um rumo meio incontrolável, aí era matança mesmo”, disse uma das testemunhas.
A Josapar reconhece que James era seu agente de segurança em um documento enviado, em 5 agosto de 1984, ao comandante da 8ª Brigada de Infantaria de Selva, em Pelotas (RS). A empresa citava o conflito de terra e dizia ser atacada pela “imprensa tendenciosa”. Alegava ainda que seu funcionário “jamais extrapolou suas funções na propriedade”, o que contradiz os registros e depoimentos.
“Em diferentes momentos da repressão a gente vai enxergar uma articulação de pistoleiros, de grandes fazendeiros e grandes empresários com a própria polícia, com agentes do DOPS. A partir de 1983, o conflito vai atingir uma proporção muito grande”, explica Alessandra Gasparotto, integrante da pesquisa da Unifesp e professora do Departamento do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Ameaças de mortes passaram a fazer parte da rotina dos posseiros diante da “força para-militar” comandada pelo “capitão” James — assim descrevia o deputado Paulo Fonteneles (PMDB), segundo a reportagem publicada pelo jornal O Liberal, em 6 de dezembro de 1983. O parlamentar chegou a propor uma mobilização da Assembleia Legislativa do Pará para verificar in loco as denúncias na área. Ele dizia que o grupo de segurança privada usava metralhadoras, carabinas e uniformes verdes semelhantes aos do Exército.
Entre as pessoas ameaçadas, estava Luis Lima Gaspar, delegado sindical do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Viseu — noticiava a Província do Pará, em 30 de dezembro de 1983. As ameaças partiam dos pistoleiros contratados pela Propará, que usavam helicópteros para sobrevoar as terras e coagir a população, registrou o periódico.
Um relatório produzido por lavradores, em dezembro de 1984, pede às autoridades uma solução à “aflição” vivida pelas famílias. O documento denunciava que direitos estavam sendo retirados pelo “poder do dinheiro e da corrupção” e descreve sucessivas invasões a casas, ameaças e agressões na região da Gleba durante a caçada a Quintino. “Senhoras de 8 dias de resguardo dormiram na mata junto com seus filhos, outros se amontoaram nas casas e simplesmente choravam”.
Após torturar diversos posseiros buscando o paradeiro de Quintino, o grupo armado teria chegado a um barraco onde a liderança estava escondida. Quintino teria escapado do cerco; “porém, sua companheira (Antônia) foi crivada de balas assim. (…) Até hoje os corpos estão insepultos, os urubus estão comendo”, detalhou outro depoimento coletado pela Unifesp. Ao final, um apelo: “Exigimos justiça para todos os lavradores mortos e pedimos esclarecimentos dos desaparecidos e liberdade para os presos”.
A situação também foi denunciada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em uma nota divulgada pelo Centro de Direitos Humanos/Grupo Ação Justiça e Paz. “10 mil famílias de posseiros pedem apoio”, dizia a entidade. Afirmava ainda que a área em litígio abrangia mais de 340 mil hectares e citava mortes em decorrência das ações de um “exército” de “pistoleiros contratados pela Propará-Grupiá, as duas mais fortes do Grupo Joaquim Oliveira”.
Um capitão da PM/PA chegou a produzir, em julho de 1984, um relatório sobre a violência na Gleba, reunindo relatos e denúncias dos moradores. Entre os episódios descritos pelo militar, está o de uma mulher grávida de três meses que teria sofrido um aborto após ter a casa invadida por um grupo armado durante a busca por Quintino. “Em consequência do impacto sofrido [pela invasão da casa] e ainda visualizando o estado de Bené 200 [colono conhecido na região] sendo espancado em frente a sua morada, não resistiu vindo a abortar no dia seguinte”.
As campanhas e denúncias contra as ações de violência levaram a Josapar a demitir James Vita Lopes ainda em 1984. Contudo, o grupo de segurança continuou ativo, segundo a apuração dos pesquisadores da Unifesp.
Alguns registros também sugerem apoio da Josapar no suporte material a tropas policiais que atuavam de forma ostensiva na região entre o final de 1984 e início de 1985. A legenda de uma foto, publicada em novembro de 1984 pelo jornal O Liberal, por exemplo, comentava que até alimentos a empresa fornecia aos militares.
A caçada por Quintino encerrou em janeiro de 1985, quando ele teria sido baleado pelas costas com tiros de fuzil, conforme os relatos obtidos com exclusividade pela Unifesp. Após o assassinato, um panfleto distribuído por moradores anunciava: “mais um irmão se foi”; e acrescentava: “Quintino da Silva Oliveira, chamado pelos fazendeiros de ‘bandido’ e tido como filho e defensor da terra foi barbaramente assassinado por uma tropa da Polícia Militar do Pará acompanhada de pistoleiros pagos pelos latifundiários da região”. Segundo o informe, testemunhas garantiam que o grupo não havia dado chance para Quintino se apresentar, “como ele realmente pretendia”.
A Josapar, segundo a pesquisa da Unifesp, tentava com frequência atribuir os conflitos a questões políticas e ideológicas, além de negar todos os atos e violência. O grupo produziu, em agosto de 1984, um relatório intitulado “Conflito de terras forjado para encobrir os verdadeiros objetivos”. A Josapar alegava que a disputa armada não existia e que as notícias sobre ela eram uma “cortina de fumaça” criada para encobrir outro interesse: as jazidas de ouro. A empresa afirmava existir o financiamento de “subversivos” que estariam sendo “acobertados por diferentes bandeiras”.
Houve também tentativas de associar a resistência na Gleba Cidapar com a Guerrilha do Araguaia — movimento revolucionário contra a ditadura no Brasil — e outros grupos políticos do país. “A todo momento a empresa tenta vincular os posseiros que lutavam pela terra com a subversão, com organizações de esquerda, com o comunismo. Tem outros documentos em que a Propará, que é a principal empresa do grupo, diz assim: ‘o SNI [Serviço Nacional de Informações] está sendo informado de tudo que acontece na região’. E aí mais uma vez eles reafirmam que a grande questão não é um conflito de terras, é a luta subversiva”, explicou Alessandra Gasparotto, pesquisadora da Unifesp.
O material descrito nesta reportagem faz parte de um relatório que será enviado ao Ministério Público Federal e deve servir de base para ações de reparação a vítimas da ditadura militar. “Um dos objetivos era reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas empresas”, diz Edson Teles, coordenador do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”.
A Pública entrou em contato com o Grupo Josapar via assessoria para que comentasse o conteúdo publicado, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
Embora décadas tenham se passado desde os conflitos, os traumas permanecem. Com quase 40 anos, Raimundo, mencionado no início da reportagem, disse ter se formado em direito para continuar a luta iniciada pelo pai, falecido em fevereiro de 2018. A mãe de Raimundo, por outro lado, convive com as sequelas das cenas que presenciou. “Ela é assustada, com tudo ela se assusta. Medo! A gente vivia 24h sob pressão”.
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