20 de dezembro de 2022
Sarah Alves Moura
Folha de S. Paulo
Os agricultores familiares e pequenos produtores rurais estão entre os líderes nos índices de fome no Brasil. Dados do último levantamento da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), divulgado em junho, mostram que a insegurança alimentar grave, quando há falta de alimentos e fome, atinge 21,8% dos domicílios do grupo -a média nacional é de 15,5%.
“Sempre nos alimentamos do que produzimos e colhemos. A gente já sofria com a insegurança alimentar, e a pandemia veio para agravar”, diz Maria Abade, 45, liderança do quilombo e coordenadora da Frente Quilombola do MPA-BA (Movimento dos Pequenos Agricultores da Bahia).
Com a crise sanitária, a produção deixou de ser escoada e a renda sumiu. A fome também cresceu nas comunidades vizinhas, que concentram mais 150 famílias de agricultores. Doações e feiras solidárias ajudaram o grupo no pico da epidemia, mas as dificuldades permanecem até hoje. Maria afirma que todos os dias recebe pedidos de quem não tem o que comer. “Não conseguimos ter qualidade de vida sem a garantia de todas as refeições”, diz.
O Nordeste, onde o quilombo fica, é a segunda região com maior índice de insegurança alimentar grave entre os agricultores familiares e pequenos produtores rurais (22,6%), atrás da Norte (40,2%).
Agricultores familiares têm mão de obra predominantemente composta pelos integrantes da casa e propriedades de até quatro módulos fiscais –unidade de medida agrária diferente em cada município, que varia entre 5 e 110 hectares. Extrativistas, silvicultores, aquicultores, povos indígenas e quilombolas rurais também integram o grupo por lei.
Em 2017, 77% dos estabelecimentos agrários no Brasil eram de agricultura familiar, segundo o Censo Agropecuário. Já pequenos produtores rurais podem contratar funcionários e devem ter renda anual de até R$ 500 mil.
Entre os agricultores que passam fome no Brasil, só 16,7% retomaram a produção nos níveis anteriores à pandemia e 6,4% recuperaram os preços de venda. Esse cenário é descrito como um círculo vicioso pelo pesquisador Mauro Del Grossi: com o poder aquisitivo da sociedade prejudicado e a alta nos preços dos alimentos, a escolha do consumidor migra para produtos mais baratos, o que desestimula a agricultura familiar.
“Aqueles que poderiam produzir alimentos saudáveis não conseguem e também passam fome. Devido à crise econômica, a saída da população é comprar produtos de menor custo e preparo rápido, mas de baixo valor nutricional”, afirma Del Grossi, professor da UnB (Universidade de Brasília).
As escolhas nos domicílios rurais seguem o mesmo padrão. A galinha caipira é vendida para comprar a de granja, mais barata. Cresce a utilização de ultraprocessados -produtos que passam por muitas transformações e usam conservantes, corantes e saborizantes para ganhar atratividade e durar mais tempo na prateleira.
Essas substituições já configuram insegurança alimentar leve. Depois dela, existe a insegurança alimentar moderada, quando a quantidade de alimentos é insuficiente para todos, e a insegurança grave, de privação severa que chega à fome.
“Os pequenos agricultores não têm alimentos de melhor qualidade ou porque não têm renda ou porque não têm condição de produzir para si. Então, optam pelos não saudáveis, que podem levar à desnutrição ou ao excesso de peso”, afirma a nutricionista Luiza Veloso Dutra, professora da UFV (Universidade Federal de Viçosa), em Minas Gerais.
Maria Abade diz que a conscientização sobre as escolhas alimentares no quilombo é uma prioridade, mas o debate não é simples quando há risco de fome. “Comida de verdade tem valor nutricional muito mais alto, mas você tem que escolher. Se você tem R$ 50 e precisa alimentar dez pessoas, vai comprar um produto que pode agredir a natureza, seu corpo, adoecer a sua família, mas encher a barriga.”
O agricultor Diacísio Ribeiro da Rocha, 76, do município de Anagé, no sudoeste da Bahia, criou os quatro filhos com o dinheiro da produção orgânica: feijão-de-corda, milho, melancia, maxixe e abóbora.
Na juventude, a opção era trabalhar em fazendas que pagavam diárias mínimas quando a seca chegava. “Não dava para comprar um terço do que precisava em casa, você vivia de ajuda ou passava fome. Eu trabalhava três dias para comprar 1 quilo de carne. Muitos iam para São Paulo tentar a vida”, diz. Ele mesmo foi ao estado três vezes para trabalhar como auxiliar de pedreiro.
A situação melhorou com políticas públicas de estímulo ao trabalhador do campo. Casos do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) -atual Alimenta Brasil- e, na região, o Programa Cisternas, ambos instituídos em 2003.
Os ganhos de agricultores na região de Diacísio ficam entre R$ 15 mil e R$ 20 mil anuais, diz ele. Ele se aposentou há 15 anos, mas continuou plantando para complementar a renda. “A gente teve uma aliviada na vida até uns seis anos atrás, mas o arrocho veio forte.
Muitos programas estão parados. Os preços subiram, nosso trabalho não rende, não supre o valor do que precisamos”, diz.
Carne virou luxo nas refeições dele e da esposa, Dinalvita, 74. Com a alta no valor do botijão de gás, a saída foi cozinhar no fogão a lenha. E, a cada mês, compram fiado para equilibrar as contas e garantir as refeições.
“Eu tenho a aposentadoria e minha mulher também, com um salário mínimo, mas a gente não compra mais o que comprava quando aposentou. Todo mês tem que ficar endividado e pagar quando recebe, comprar fiado, tentar produzir o que não dá para comprar”, conta.
Para a maioria dos agricultores, no entanto, a produção para consumo próprio fica de lado. As jornadas de trabalho não comportam os cuidados com a horta que alimenta a família e a roça rentável.
“Quando falamos de acesso aos alimentos, temos que falar de acesso monetarizado. Mesmo na área rural, as pessoas precisam de dinheiro para comprar comida. A produção para autoconsumo existe, mas é inexpressiva em termos estatísticos”, afirma a historiadora Adriana Salay, que pesquisa a fome no doutorado na USP.
Esta reportagem foi produzida como parte do 7º Programa de Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que teve apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Albert Einstein.
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