21 de janeiro de 2022
André Picolotto, Clarissa Levy, Manoela Bonaldo
Agência Pública
A casa em que vive a agricultora Mara*, de 57 anos, é um rancho de madeira, chão batido, tem um cômodo só e foi construída por suas próprias mãos. Fica no alto de uma colina, no terreno de sua família, em Camaquã, o terceiro município do Rio Grande do Sul que mais produziu tabaco em 2020. “Eu tenho vergonha, sabe?”, lamenta Mara. “A casa é simples, mas é preciso que vocês vejam como as coisas são”, diz a agricultora, que sobrevive com cerca de R$650 por mês. Mara planta tabaco há 20 anos e se aposentou com um salário- mínimo, mas ainda precisa reservar parte do dinheiro que recebe todo mês para pagar dívidas com fumageiras. “Essa é a riqueza que o fumo me trouxe”, diz.
Quando ela começou com o cultivo, a atividade era propagandeada como vantajosa, tanto pelo valor de mercado das folhas de tabaco quanto pela comodidade oferecida pelo sistema integrado de produção. Para começar o plantio, a empresa vendia as sementes, os agrotóxicos, os equipamentos de proteção. Além disso, no fim da safra ainda garantia a compra do tabaco e vinha buscá-lo na propriedade. Essa comodidade é um dos grandes atrativos do cultivo de fumo no país até hoje.
“A verdade é que eu já entrei fazendo dívida”, conta Mara. “Os instrutores, responsáveis por levar as folhas de tabaco da lavoura até a empresa, prometiam um preço quando vinham aqui, mas na fumageira o tabaco era classificado com uma qualidade inferior”, explica. Como todos os custos da produção eram descontados do valor da venda do tabaco, no final da safra o dinheiro que sobrava não era muito. “Eu fui acumulando muita dívida, foi uma bola de neve, e hoje pago um preço alto pela minha idade e saúde”, diz a agricultora, que tem pressão alta, desenvolveu problemas respiratórios após uma intoxicação por agrotóxico e toma remédio para ansiedade.
Mara se encontra numa situação que a engenheira agrônoma Cleimary Zotti chama de “linha de exclusão”. Quem está nessa linha são aqueles que, por questões socioeconômicas ou de saúde, não conseguem ter alto rendimento na produção de tabaco e deixam de ser atrativos para a indústria fumageira, que acaba por não renovar os contratos de compra. Cleimary é especializada em desenvolvimento rural, acompanha a cadeia produtiva de tabaco, trabalha com diversificação do cultivo e observa, ao menos há dez anos, a exclusão de famílias aumentar.
A Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), instituição que levanta dados sobre o setor do tabaco, também vê diminuir o número de famílias na atividade. Nos últimos cinco anos, 12.622 famílias deixaram de renovar contratos de venda de tabaco no Sul do país. Desse total, 8.812 saíram da fumicultura em 2020, primeiro ano da pandemia, número maior do que nos quatro anos anteriores somados. A maior redução foi observada no Paraná, estado onde 4.368 famílias deixaram de cultivar fumo na última safra.
Hoje, a Afubra estima que haja 137.618 famílias cultivando tabaco nos três estados do Sul do Brasil. “Como a produção precisa se adaptar à demanda pela queda do consumo de cigarro, a diminuição é inevitável, consequentemente será ano após ano, até parar a queda no consumo”, afirma o presidente da Afubra, Benício Werner, à Agência Pública.
Mara foi questionada sobre o que poderia ajudá-la a sair da situação em que se encontra. “Talvez uma ajuda governamental”, responde. “Para ter um amparo e poder dar um passo à frente na hora de sair desse cultivo do tabaco, diz.
O que de fato acontece com essas famílias excluídas ou que abandonam a cadeia produtiva de tabaco permanece incerto. À Pública, tanto quem trabalha nas instituições executoras de assistência técnica rural quanto a própria Afubra afirmam observar muitos agricultores recomeçando a vida do zero. São pessoas que, após anos cultivando fumo e dependentes da indústria do tabaco, com ensino fundamental ou médio incompleto, e praticamente sem apoio, precisam trocar de cultivo e passam a trabalhar em fábricas ou se mudam para centros urbanos.
“Fizemos um trabalho muito bonito com essas famílias, mas agora não há possibilidade de continuidade”, lamenta Cleimary, que trabalhou no Paraná em um projeto de diversificação executado pelo Centro de Estudos e Assessoria ao Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (Ceasol). “Eu sinceramente acredito que nosso trabalho de diversificação está se encerrando aqui”, diz.
O programa de diversificação desenvolvido no Brasil nos últimos 15 anos, apoiado no método livelihoods, ou diversificação dos meios de vida [tradução livre], tornou-se um modelo internacional após sua adoção durante a Conferência das Partes (COP6), realizada na Rússia em 2014. Essa abordagem levou em conta as condições de vida dos agricultores, observando, para além do resultado econômico derivado do cultivo agrícola, aspectos de saúde, alimentação, escolaridade, infraestrutura, recursos naturais, entre outros. A ideia é que, para de fato alcançar autonomia, as famílias precisam mais do que apoio financeiro; é necessário estimular suas próprias capacidades, de acordo com as particularidades de cada família e região.
A cientista social Tanise Freitas pesquisou a diversificação dos meios de vida e fumicultura no Rio Grande do Sul. Ela também foi uma das integrantes da equipe que elaborou o guia metodológico apresentado na Conferência das Partes, o qual se tornou referência mundial. Segundo Freitas, o desenvolvimento de um núcleo familiar aumenta quanto mais harmônicas forem suas diferentes dimensões da vida (capital financeiro, humano, social, natural, físico). “Então não basta ter muito dinheiro, por exemplo, se você gasta muito com problemas de saúde”, explica.
A instabilidade de renda gerada pelo monocultivo do tabaco levou a agricultora Taís Rodrigues, que cultiva tabaco com o marido em Camaquã, no Rio Grande do Sul, a diversificar sua produção. Isso porque o dinheiro que a família ganha com o tabaco é pago todo de uma vez, após a venda das folhas (o valor é classificado pela empresa) e precisa durar o ano inteiro. “A gente fica sempre na dúvida, né?”, afirma. “Temos a renda final da safra, mas ela vai depender do valor que a indústria vai pagar.”
A família começou a diversificar a produção para subsistência, e a mudança tem dado bons resultados. “Tudo está muito difícil nos últimos anos, mas pelo menos nosso alimento não precisamos comprar tudo na cidade”, conta. “A gente tem horta, criamos galinhas, temos leite de vaca e carne de gado, e é comida gostosa, não essas coisas cheias de hormônios.”
Taís conta também que sua relação com a terra se modificou. “Virou um refúgio, sabe?”, diz. “Hoje temos fartura na mesa, e eu não me vejo em outra vida, na cidade, ou só plantando tabaco”, afirma. “Eu tenho muito prazer em cuidar dos bichos, e sinto mais prazer na vida, sinto que posso fazer mais, por mim e pela minha família.”
Depois dessa primeira etapa, a família passou a cultivar milho e já pretende começar a vender a nova produção, que também serve de alimento para os animais que vivem na propriedade.
O engenheiro florestal Marcelo Bernál, representante do Instituto Padre Josimo, instituição responsável pelo projeto de diversificação do qual Taís participou, diz que a estratégia é evitar pacotes tecnológicos prontos. “A indústria vem, fornece insumo, sementes, adubo, venenos, compra a produção, e isso facilita a vida, mas também gera muita dependência”, diz. “Estimulamos experimentos e construímos com as famílias as soluções possíveis para seus problemas”, explica.
O Instituto Padre Josimo foi uma das entidades que tiveram atrasos no pagamento e corte de 44,56% na verba contratada para a execução do projeto. Fora o prejuízo nas atividades, Bernál conta que o diálogo com a Anater e a SAF ficou mais difícil, tanto sobre as repactuações quanto sobre os rumos do programa. “Eu vejo isso com muita frustração”, afirma. “É fundamental, na construção de uma política pública, que ela seja feita com a sociedade civil, e que quem tenha experiência seja chamado.”
“Me parece que os tomadores de decisão, os agentes públicos, permanecem com uma visão bastante quadrada sobre as políticas de desenvolvimento rural”, afirma. “Mas não tem como haver desenvolvimento rural sem diversificação produtiva; monocultura, em lugar nenhum dos países tropicais, promove desenvolvimento”, continua. “A gente espera que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo consiga abrir os olhos e ver que a agricultura clássica, num país que nem o Brasil, ela tende a constante conflito ambiental”, conclui.
“Queremos a consolidação de atividades que tenham começo, meio e fim e que gerem renda para o produtor e que não seja simplesmente um discurso”, afirmou Fernando Schwanke à Pública, dias antes de ter apresentado os primeiros resultados do Arranjo Institucional de Suporte à Formação de Cadeias Produtivas de Plantas Bioativas na Região do Vale do Rio Pardo (Valeef). Até então, as entidades que executavam o programa tinham um perfil não alinhado com o atual governo federal.
Para pensar esse novo programa, não teria havido conversa entre a SAF e as instituições contratadas para realizar atividades de diversificação ou entidades da sociedade civil organizada. Nem mesmo houve conversa com a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (Conicq), criada para assessorar o governo nas decisões referentes ao compromisso firmado entre o Brasil e a Organização Mundial da Saúde (OMS) no que diz respeito ao controle do tabagismo, entre elas o PNDACT. Em março deste ano, Schwanke encaminhou um ofício à Conicq afirmando não ver necessidade na existência da comissão, como mostrou reportagem de O Joio e O Trigo.
Os dados do Valeef foram divulgados em junho deste ano. Além do Mapa, a iniciativa teve apoio da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), além de instituições ligadas à cadeia produtiva do tabaco, como a Afubra e do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco).
Segundo o Mapa, o Valeef integra o projeto “Parcerias para Inovações nas Cadeias de Plantas Medicinais, Aromáticas, Bioativas e seus Derivados como Estratégia de Diversificação do Cultivo do Tabaco”. No lugar do antigo programa de diversificação, Schwanke informou que existem duas estratégias: a primeira é o Valeef, que tem como objetivo oferecer uma alternativa de renda com o mesmo potencial de mercado que o tabaco, e a segunda é o apoio a projetos da Emater nos estados do Sul do país.
Quando questionado pela Pública sobre sua visão sobre a cadeia produtiva e as expectativas em relação aos produtores nos próximos anos, Schwanke diz enxergar no sistema integrado de produção de tabaco uma fonte de renda segura e que essa é, segundo ele, uma das cadeias produtivas mais diversificadas do Brasil. Apoiado nos dados divulgados pela Afubra, Schwanke afirma que 54% da renda das famílias que plantam tabaco tem origem na diversificação, e portanto apenas 46% corresponde à venda das folhas de fumo.
“Isso não aconteceu de um ano para o outro, desde a COP, ou desde os programas do governo”, diz. “Na minha opinião, a menor parte dessa diversificação vem das políticas públicas, e a maior parte vem realmente de uma ação privada”, conclui o secretário da Agricultura Familiar, referindo-se a programas de diversificação como o Milho, Feijão e Pastagens, criado pelo SindiTabaco, um sindicato patronal.
A apresentação do Valeef foi uma das últimas ações de Schwanke na SAF. Ele permaneceu no cargo até julho de 2021 e depois partiu para a Costa Rica para compor a diretoria de Projetos do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). Quem passou a comandar a pasta foi César Halum, médico veterinário vinculado ao Republicanos.
s dados apresentados pelo ex-secretário da Agricultura Familiar à Pública, nos quais ele se baseou para reformular o programa de diversificação, são os mesmos divulgados pelo SindiTabaco e levantados pela Afubra, que obtêm informações através do cadastro de um seguro oferecido a agricultores e os apresenta em seu site. Questionada sobre como chegou ao resultado de que a maior parte da renda dos fumicultores é oriunda de diversificação, a Afubra respondeu à Pública apenas que “a metodologia é adequada por ter sido orientada pelo setor de pesquisa da Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul)”.
O SindiTabaco, quando questionado sobre o perfil dos agricultores que vendem fumo para a indústria, apresentou dados referentes à pesquisa “Produtor de Tabaco da Região Sul do Brasil: Perfil Socioeconômico”, realizada em 2016 pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Administração – UFRGS. A pesquisa, encomendada pelo próprio SindiTabaco, cuja equipe foi formada por especialistas em marketing, apresentou algumas conclusões, ao analisar dados de 1.145 produtores de tabaco: “considerando-se todas as fontes de renda, os produtores de tabaco da região sul do Brasil atingem uma renda mensal total (bruta) média de R$ 6.608,70”, “aproximadamente 90% dos produtores se dizem satisfeitos em trabalhar na atividade agrícola”, e “64,2% deles acredita que a renda da família permite que eles levem a vida com facilidade”.
A Pública consultou especialistas que acompanham a cadeia produtiva do tabaco, que demonstraram ter uma visão diferente em relação à que é difundida pela Afubra e pelo SindiTabaco.
O coordenador do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser), Amadeu Bonato, é um deles, e desde 2005 acompanha a cadeia produtiva de fumo. Em 2018, o pesquisador publicou um levantamento do perfil dos agricultores beneficiários da Chamada de ATER 06/2013. A ideia era entender como a qualidade de vida dos beneficiários era no início do programa, e como ela foi alterada, passados três anos de atividades de diversificação. Ele entrevistou as famílias observando cinco indicadores: capital humano, natural, físico, econômico-financeiro e social.
Ao analisar 3.130 famílias, Amadeu verificou que a renda bruta anual variava entre R$ 50 mil e R$ 58 mil, porém a renda líquida, descontados os custos de produção, era de R$ 30 mil a R$ 34 mil. Além disso, ao verificar a renda per capita, levando em conta todo o núcleo familiar, mão de obra não remunerada usada na produção de tabaco, 62,7% das famílias tinham renda inferior a um salário-mínimo, sendo que para 25,3% a renda era inferior a meio salário-mínimo por mês. O pesquisador verificou ainda uma tendência das fumageiras à exclusão das famílias mais empobrecidas e distantes de núcleos urbanos, e interesse por famílias mais jovens. “A diversidade das famílias é muito grande, então você tem que analisá-las setorialmente”, explica Bonato.
A cientista social Tanise Freitas tem visão semelhante. “O Estado não enxerga essas pessoas em vulnerabilidade porque os dados, em geral, colocam todo mundo num mesmo grupo”, continua. “Se for só pelo aspecto econômico, as famílias seriam praticamente iguais, e sem uma abordagem multidimensional vamos achar que está todo mundo bem.”
Tanise acredita que o modelo de livre adesão do programa de diversificação é um ponto a ser alterado. Até então, a maneira de alcançar as famílias era a divulgação em municípios, como propagandas em rádio ou reuniões em comunidades. “Eu conheci fumicultores que não sabiam da existência do Bolsa Família, analfabetos, sem carteira de identidade, numa condição de precariedade horrível, quase abandonadas”, conta. “São pessoas isoladas, sem acesso à informação e conhecimento, que não sabem ler e escrever, mas assinam contratos de venda de tabaco, e que precisam de um olhar social, precisam ser integradas um pouco mais em sociedade.”.
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