AUTOR(A)
Mateus QuevedoAUTOR(A)
Mateus Quevedo1 de fevereiro de 2023
Eu não sou um super entendedor de cultura pop. Mas, há uma certa preocupação, da minha parte, em ‘estar por dentro’ do Zeitgeist. Qual o espírito do tempo, do nosso tempo, da nossa época? Me parece que a cultura pop tem uma contribuição importante para que esse espírito seja compreendido. Toda e qualquer aferição sobre nosso tempo precisa abarcar a experiência do que foi e tem sido a pandemia da Sars-cov-2. E um dos produtos desta cultura pop que tem a experiência pandêmica embutida é a série The Last Of Us, da poderosíssima HBO. The Last Of Us é uma adaptação do game super premiado e homônimo, que já tem disponível 3 episódios para o grande público.
A série The Last Of Us acompanha a jornada humana na região de Boston, nos EUA, em um futuro distópico. Com o aumento da temperatura do planeta, o fungo cordyceps passa a invadir o corpo dos seres humanos. O fungo passa, então, a controlar os sistemas motor e nervoso dos humanos, tornando-os zumbis. O cordyceps é um fungo que existe mesmo, mas, não afeta humanos. Ele pode ser encontrado em florestas tropicais, como na Amazônia. É especialista em invadir o corpo de alguns insetos.
No mundo apocalíptico de The Last Of Us uma questão chama a atenção: o acesso aos alimentos. A contaminação com Cordyceps, na trama, se deu por item muito básico na alimentação dos norte-americanos, o trigo. “E o trigo é, o que a gente chama, de comodity, um produto básico, que na produção e na distribuição circula o mundo todo. A farinha que veio de Jakarta, junto de farinhas de outras procedências, contamina toda vizinhança. Contaminou toda cidade, contaminou o mundo.” É assim que Isabela Buscov, crítica de cinema e séries, relata o ocorrido. Ela tem feito comentários sobre os episódios em seu canal do Youtube.
Assim como o cordyceps, o modelo agroalimentar em que a série se inspira é o da vida real. É o modelo agroalimentar hegemônico no mundo, o modelo agroalimentar do capitalismo. Com ressalvas, claro. Não tem produção de trigo em grande escala na Indonésia, país em que Jakarta é a capital. Bom, pelo menos não havia essa preocupação por lá antes da pandemia e da guerra entre a OTAN e a Rússia acontecer na Ucrânia. A Rússia e a Ucrânia são os maiores exportadores de trigo no mundo. Na série, o trigo contaminado espalha o cordyceps pelo mundo todo. Quem não consumiu o produto, não se contaminou, mas ficou refém do fim do mundo.
O sistema agroalimentar capitalista pode causar novas pandemias. E quem define bem esse sistema é o médico epidemiologista Jaime Breilh. Ele é escritor do livro ‘Epidemologia e saúde dos povos’. Segundo ele, esse modelo “é pensado a partir da ganância e busca formas de transformar tudo em commodities, desde o ser humano e a força de trabalho, ao genoma, a terra, a água”. Quem sabe o espírito destes tempos, esteja na procura por saídas a esse modo de produção de alimentos. E, conjuntamente, a forma como eles são distribuídos. Isto passa, nitidamente, por tirar das corporações o poder de decisão.
Quer um exemplo? Falando do trigo mesmo? Que tal o trigo transgênico HB4, que teve aprovação para uso comercial no Brasil em 2021. É o primeiro transgênico de trigo no mundo. A empresa responsável pela venda desta tecnologia chama Bioceres. A pesquisa para o desenvolvimento do grão contou com alto investimento público na Argentina. O que se omite desta grande parceria público-privado é o que garante lucros milionários às corporações. O HB4 é altamente dependente de agrotóxicos a base de glufosinato de amônio. Potencialmente cancerígeno, o glufosinato de amônio é 15 vezes mais tóxico que o glifosato.
O fato é que tanto na Argentina como no Brasil e na maioria dos países do norte global o agronegócio é uma política de estado. O discurso é de que isso tudo irá acabar com a fome, ou no caso do HB4, também sobrevivera à seca. No Brasil, não é permitido cultivar o HB4. Sua liberação é somente pra uso comercial, mas, já há notícia de campos de testes na região do Cerrado. O agronegócio não foi capaz de alimentar o povo brasileiro durante a pandemia. São 116 milhões de brasileiros com insegurança alimentar no país que mais produz soja. Os agricultores familiares camponeses tão pouco têm suas reivindicações atendidas. A aposta é no lucro e nos interesses das corporações.
Temos um zilhão de fatos que provam que este modelo pode causar ainda outras pandemias. Destruição de ecossistemas inteiros. Produção de commodities em larga escala com utilização de agroquímicos. Perigo de interação entre espécies domésticas com espécies selvagens. Doenças. Violência. Padronização da alimentação. Ultraprocessados. Desigualdade social. Alta dependência de combustíveis fósseis.
O sistema agroalimentar capitalista limita, inclusive, o imaginário das pessoas. Este é o ponto que quero chegar. Não se consegue enxergar outros modelos de sistemas agroalimentares. A agroecologia, por exemplo, poderia ser muito melhor aproveitada pela cultura pop.
“Precisamos construir políticas de fomento à produção ecológica, ao emprego rural de qualidade, recompensar aqueles que cuidam do meio ambiente, não usam agroquímicos, que não destroem ecossistemas, que protegem a água. Essas são políticas antipandêmicas”, novamente me utilizo das palavras de Jaime Breilh.
Sério, realmente não quero mais passar pelo processo de isolamento social. Foi traumatizante. Principalmente, se for causado por uma nova pandemia. Fora o risco de morte eminente de algum ente querido. Ainda mais se, alguém como Bolsonaro novamente estiver no poder. Importante lembrar que Bolsonaro foi derrotado nas urnas, o bolsonarismo não. Este fenômeno, inclusive, está presente no agronegócio brasileiro. Segue vivo e financiando atos golpistas.
E acredite, a questão da presença de um estado fascista na gestão de tragédias aparece em The Last Of Us. E, mais uma vez, utilizo um trecho de como Boscov apresenta este fato, no terceiro episódio. “Na evacuação, na falta de lugar pra levar as pessoas que estavam sendo retiradas das casas delas, simplesmente, matava-se todo mundo, inclusive mulheres e crianças”, narra Isabela. Neste terceiro episódio, a história foca a narrativa em um sobrevivencialista. Alguém que se prepara com armas e providencias para o fim do mundo. A narrativa, neste caso, mostra um outro ponto de vista. Até mesmo um sobrevivencialista precisa de afeto. Afinal, a vida só é boa mesmo, quando compartilhada.
As cenas de momentos de confraternização à mesa são lindas. A importância de produtos frescos, do bife mal passado, das galinhas. Uma cena linda chama atenção. Uma horta repleta de morangos maduros ao pôr-do-sol. Um beijo entre o sobrevivencialista e seu companheiro. É como se esses momentos valessem ao niilismo que a série está mergulhada. De alguém que achou sementes por aí, que cultivou na terra. É como se esses momentos valessem ao niilismo que a série está mergulhada.
“Fazer uma refeição não é somente essencial para a nossa sobrevivência. É também um jeito de demonstrar humanidade e afeto numa sociedade tão violenta”. Essa frase foi retirada de um tweet sobre a série. Quem o escreveu foi o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto, o MTST. O Movimento se valeu de cenas à mesa em The Last Of Us, para sugerir ajuda ao projeto das Cozinhas Solidárias.
O debate sobre o alimento deve e pode ser um elo central para a mudança do modelo agroalimentar. E isto passa pela sua utilização, também, na cultura pop. Precisamos de séries, livros, jogos, aplicativos que aprofundem este debate. São formas criativas e cativantes para encontrar saídas para o fim do mundo. Inclusive, se valer dos fungos. Eles merecem ser melhor apresentados às pessoas. E sabe quem poderia nos apresentar a potencialidades dos fungos para a cultura pop? As mulheres Yanomamis.
Quando estava pesquisando sobre o porquê a fome chegou na Terra Indígena Yanomami, algo me chamou a atenção. As mulheres Yanomami manejam culturas de diferentes tipos de fungos há séculos. Os fungos servem tanto para a alimentação quanto para a produção de artesanatos. Encontrei dois livros organizados sobre os cogumelos cultivados pelas mulheres Yanomami. Eles estão disponíveis para download, no site do Instituto Socio Ambiental, o ISA. O livro que trata sobre o uso dos fungos para a alimentação chama ‘Ana amopö: Cogumelos Yanomami’. Ele ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro na categoria gastronomia, em 2017. É um convite para que não sejamos os últimos de nós.
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