AUTOR(A)
Isabela CaminiAUTOR(A)
Isabela Camini3 de novembro de 2021
Isabela Camini*
Há tempo entendi a importância da memória dos que lutam
O dia 29 de outubro de 2021 marcará a história do Instituto Educar. Escola que fincou raízes há 17 anos em uma área de 40 hectares, no Assentamento Nossa Senhora Aparecida, em Pontão, RS, antiga Fazenda Annoni, ocupada por 2.500 famílias, na noite enluarada de 29 de outubro de 1985. Neste dia de 2021 o Instituto foi visitado por centenas de pessoas, convidadas a celebrar os 36 anos da ocupação de um latifúndio de 9. 300 hectares, para inaugurar o Viveiro de mudas de árvores em homenagem a José Alberto Siqueira, o Zecão e celebrar a chegada do busto de Paulo Freire colocado na entrada da escola em homenagem ao centenário de seu nascimento.
Os dias anteriores foram de intensos trabalhos e articulações. Tudo feito para dar conta do primeiro maior encontro presencial do MST/RS, desde março de 2021, quando a pandemia alcançou o mundo, levando centenas de vidas, deixando para trás rastros de luto e de dor. Obviamente que em sua maioria levadas pela falta de políticas públicas e providências por parte do governo federal. Todo o encontro se deu de acordo com as orientações e protocolos de combate a proliferação do vírus.
Pela manhã ocorreu a reunião entre o Instituto Educar, Deputados Federais e Direção da Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim. Juntos, firmaram compromisso com a continuidade do Curso Superior de Agronomia. Juntos irão buscar soluções, derrubar os muros e enfrentar as tensões próprias de um momento histórico que retira direitos já conquistados pelo povo. O verbo recuar não combina quando se luta e se alcança Projetos Educativos, como direito e não esmola.
Ao meio dia já havia mais de 100 pessoas no local A ninguém faltou acolhida e comida de verdade. As longas mesas foram rodeadas pelas pessoas que iam chegando. Os alimentos partilhados pareciam se multiplicar como a multiplicação dos pães e peixes na parábola do Evangelho. Entre os Sem Terra é assim, comida não falta, ouvi de uma pessoa que servia fartamente o seu prato, e que em seguida dava lugar para mais um ao seu lado.
Após o almoço, o povo se espalhou pelas sombras das árvores no pátio do Instituto. Árvores coloridas e algumas carregadas de frutas. Ali buscaram alento do cansaço da viagem. O belo jardim colorido nos dizia do trabalho, do capricho e do amor que estudantes e educadores cultivam por aquele espaço educativo. As pessoas manifestavam admiração ao ver uma Escola dentro de um assentamento do MST. Ouvindo isso, comentei com elas: aqui está a semente da educação do campo no campo, semeada em 1979 em um acampamento, representada por esta escola, construída próxima da vida, vinculada às lutas, conforme anunciada desde o início da luta pela terra e pela educação.
Nessa área de 9.300 hectares, há bom exemplo dos resultados positivos da reforma agrária, onde vivem quatrocentas e vinte famílias, produzindo trigo, soja, milho, leite, frutas e hortaliças. Ainda criam inúmeras cabeças de gado e suínos. Essa produção movimenta o comércio local e leva alimento sadio para a mesa dos trabalhadores da região. O assentamento também tem seis escolas. Isto é, todos os filhos dos assentados têm oportunidade de estudar em escolas próximas da sua realidade desde a pré escola até o ensino superior.
Não há dúvidas de que aquelas 2.500 famílias que cortaram a cercas no dia 29 de outubro de 1985, estão colhendo os frutos do que semearam com suor e lágrimas, conforme o testemunho da memória exemplar de Isaías Vedovato, que vê o sonho se concretizar:
Naquela noite de 29 de outubro, a lua cheia nos iluminou. Vi os caminhões percorrendo essa estrada, na época, empoeirada. Quando eu cortei os fios de arrame para entrar na Fazenda Annoni, eu sentei no chão e chorei. Parecia ter perdido as forças. Chorei muito. Só via gente saltando de cima dos caminhões e armando os barracos. Só na madrugada do outro dia, as rádios da região começaram anunciar a ocupação. Nós, ouvíamos as notícias.
Seguindo as atividades, à tarde começaram as cantorias no pátio. A mística, o poema de Carlos Rodrigues Brandão e uma fala sobre o Legado de Paulo Freire para o MST emocionou as educadoras Salete Campigotto e Lucia Vedovato. As lágrimas foram inevitáveis quando descobrimos o busto de Paulo Freire, coberto por um pano vermelho. Estava ali seu rosto, tão presente como em 1979 quando foi estudado um capítulo, em espanhol, de sua obra Extensão ou Comunicação, por um grupo de militantes no acampamento da Encruzilhada Natalino. Há evidências de que alguns entre esses militantes, falam de que havia outra obra: Pedagogia do Oprimido. Seu busto, imponente foi colocado ali, na entrada da escola para receber as pessoas que estão aprendendo e ensinando, ao mesmo tempo que lutam. Nós que fomos batizados por ele como seus herdeiros e continuadores, quando veio encontrar pessoalmente o MST em Hulha Negra, no dia 25 de maio de 1991, não temos o direito de dar nenhum passo atrás.
Esse dia é histórico porque Salete e Lucia, primeiras educadoras de Escolas de acampamento/assentamento estavam ali, testemunhando que ninguém educa ninguém, mas ninguém se educa sozinho. Nós nos educamos mutuamente, em comunhão. Foram elas que abriram as portas do acampamento para aprender e ressignificar as palavras geradoras: terra, comida, assentamento, acampamento, morte, ocupação e coragem. Debaixo de uma lona preta nasce a Escola da Luta pela Terra, ocupada por daqueles sujeitos que escrevem a sua pedagogia, há 36 anos. É neste momento que se dá o encontro da Pedagogia do Oprimido com a Pedagogia do Movimento, sistematizada mais tarde por Roseli Salete Caldart, em tese.
A fala do Legado de Paulo Freire para o MST, cultivado no decorrer de 36 anos pelo MST nos 24 estados da Federação, molhou os olhos de muita gente. Fez relembrar os tempos de lutas permanentes, de longas reuniões para construir estratégias, sem recuos. Como dizia Roseli Nunes da Silva: “é melhor morrer lutando do que morrer de fome”. Roseli, primeira mulher a dar à luz a um filho (Carlos Tiaraju) no acampamento da Annoni, assassinada em abril de 1987, num manifesto no Trevo de Sarandi. Seus restos mortais repousam no cemitério deste mesmo assentamento. Sua lembrança alcançou os 24 estados e o mundo. Seu espírito e sua coragem demonstrada na mão erguida, continuam a nos mover para as mudanças necessárias. Roseli vive. Roseli Presente!
O próximo passo foi seguir em marcha para a barraca de lona branca mais abaixo da sede da escola, que nos abrigou do sol escaldante, e ao final da tarde, nos protegeu de uma chuva torrencial, que veio para regar o viveiro de 25 mil mudas de árvores. Uma iniciativa concreta do Movimento Nacional que planeja plantar 100 milhões de árvores em 10 anos.
Músicas, místicas e falas testemunhais de várias pessoas, nos levam a crer que o Movimento fez história nesta região porque transformou a fazenda improdutiva em produtiva, e onde havia gado e capim, têm estradas, pessoas, produção, escolas, postos de saúde, bancos, gente circulando com projetos de vida. E os filhos alcançando cursos de agronomia, Pedagogia, veterinária, medicina, direito, entre outros. Por duas horas, ouvimos memórias da ocupação feita na noite enluarada de 29 de outubro de 1985. Testemunhos do quanto o Zecão merece ter seu nome na sementeira de milhões de mudas de árvores de raízes profundas.
Antonio Marangom falou em nome da família Siqueira, pois, sua esposa e seu irmã Itamar Guilherme não estavam ali por questões de saúde. Se estivessem as emoções lhes tomariam conta. Para Itamar, ser humano acima da média, sempre disponível, amado por todos os Sem Terra, talvez lhes seria difícil conter a emoção ouvindo os testemunhos do que representa seu irmão Zecão para o Movimento, de modo especial pelas suas qualidades humanas. Não foi fácil rememorar a história de vida de um ser humano tão especial, sábio, que sabia ouvir pacientemente e com poucas palavras orientava os caminhos da luta, feitos tantas vezes nas madrugadas frias de invernos intensos. Zecão faz muita falta hoje, ouvi várias vezes.
Enquanto a chuva caia em demasia sobre o barracão, nós nos servíamos de um lanche farto de pão, queijo, salame, pepinos e sucos, produção própria do assentamento e do Instituto Educar. Uma amostra de que alimentos não faltam na mesa do Sem Terra. E que muitos destes alimentos são doados nas fartas cestas básicas que chegam às mesas das famílias nas periferias urbanos, se somando às 5 mil toneladas de alimentos doados no período mais cruel da pandemia, que espalhou um vírus letal e por consequência a fome de tantos que não podem esperar.
Assim passamos uma tarde de primavera, celebrando o legado de Paulo Freire, o legado de Zecão e a vida das famílias assentadas que lutam há 36 anos e hoje tem alimentos para partilhar com milhões de famílias que perderam seus empregos, adoeceram vendo partir seus entes queridos. Delas aprendemos a Pedagogia da Solidariedade na construção de um projeto de humanidade, de nação livre sem opressores e oprimidos.
Grande abraço a todos/as.
Primavera de 2021.
*Do Setor de Educação do MST. Doutora em Educação pela UFRGS.
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