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Denise De Sordi*AUTOR(A)
Denise De Sordi*2 de dezembro de 2022
“Eu até me emociono quando lembro, eu pensei que nós fôssemos morrer de fome”, me disse um homem em situação de rua com a filha de uns quatro anos no colo que acenava concordando com o pai. Pacientemente, ele respondia às minhas perguntas sobre como ele e outras pessoas na mesma situação utilizam, avaliam e pensam o trabalho das cozinhas comunitárias abertas por organizações religiosas e grupos de pessoas, e o trabalho da cozinha solidária do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST, na cidade do Rio de Janeiro.
Em meio ao período mais agudo da pandemia, ele encontrou no circuito formado por estas cozinhas um recurso de sobrevivência. Já em 2022, após meses imerso no vazio deixado pós-Auxílio Emergencial e pela transição entre o Programa Bolsa Família e o Auxílio Brasil, buscando atendimento em um “lotado” Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), ele conseguiu o benefício que não é suficiente para se alimentar todos os dias e que “mal dá para pagar o aluguel de um quarto”, o que pretendia fazer tão logo o crédito consignado fosse liberado.
Desde meados de julho, pelo menos, as pessoas que retiram quentinhas têm sido abordadas nas ruas inúmeras vezes por empregados de agências financeiras oferecendo uma simulação do crédito consignado num total de R$ 2.044,57 feita com o valor base da parcela do auxílio de R$ 400. Em meados de agosto deste ano, uma fila de pré-cadastro foi organizada por uma agência que oferece “empréstimo rápido e fácil” com a linha de crédito “Auxílio Brasil Novo Plus BR”. Em meio às incertezas sobre a continuidade do programa, ou mesmo sobre a permanência das pessoas enquanto beneficiárias, as 24 parcelas de R$ 160 reduziriam o benefício a R$ 240. A fila de atendimento para o pré-cadastro, maior que o esperado, acabou em tumulto por causa de um desencontro de informações sobre quando o crédito efetivamente seria disponibilizado às pessoas. A agência precisou encerrar as atividades às pressas naquele dia e este foi o assunto nas filas das cozinhas ao longo da semana.
Esse tem sido o circuito de experiências de muitos dos 33 milhões de trabalhadores que estão em situação de insegurança alimentar grave: passando fome. São pessoas que estão não só nas portas das padarias, mas dentro dos supermercados pedindo para aqueles que ainda têm condições, que comprem algo, nas filas para coletar restos de ossos de açougues, ou revirando caçambas de lixo. Parte importante dessa população tem encontrado em cada uma das 31 Cozinhas Solidárias que foram erguidas em treze estados, com o projeto homônimo, pelo MTST em parceria com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a única refeição completa e saudável do dia.
É na fila de uma dessas cozinhas, na Lapa, que todos vão chegando desde as primeiras horas do dia e marcando seus lugares na fila. Usam pedras, cobertores, sacolas e pertences que podem ser deixados ali para que, às 13h, quando a refeição é servida, tenham garantida uma das 250 quentinhas. Muitos moram ali por perto de onde está a cozinha, mas há famílias que atravessam a cidade com o passe social do transporte público para chegar até lá, e não é incomum que trabalhadores empregados marquem seus lugares na fila e retornem mais tarde para retirar a quentinha.
Os alimentos utilizados pela Cozinha Solidária são agroecológicos, fornecidos pelo MPA; isso significa que são sem veneno, plantados por pequenos agricultores. Batata-doce, hortaliças, tomates, ovos, feijão, abobrinha, inhame, fubá, linguiça, limão galego, farinha, banha de porco, café, banana e arroz, dentre outros que, além de produzidos sem veneno, são a tradução do trabalho das famílias de camponeses em diferentes estados do país. Não só alimentam quem precisa, mas ao serem adquiridos em larga escala, combatem a reprodução da pobreza no longo prazo pois permitem que as famílias se fixem no campo. Promovem também a preservação ambiental e de saúde da população, ao passo que a previsão de escoamento da produção abre a possibilidade para que estas mesmas famílias realizem a transição agroecológica, deixando de produzir alimentos com venenos. Em cada entrega feita nas cozinhas há o acompanhamento dos produtores para saber sobre o destino dos alimentos e sobre a qualidade da produção. Por trás de cada alimento consumido há uma geração de uma família de camponeses trabalhando na produção.
Ao lidar com a condição de insegurança alimentar distribuindo refeições gratuitas, as cozinhas promovem o caminho para a segurança alimentar, garantindo que parcela importante da população tenha acesso regular a alimentos de qualidade. Frente ao desmanche de programas como o Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciativas como esta indicam um caminho para a reconstrução das políticas públicas de segurança e soberania alimentar que precisarão ser pensadas nos próximos anos.
A discussão sobre a fome, quando reduzida ao valor do benefício dos programas de transferência condicionada de renda, tal como feito pelo Auxílio Brasil, erode a rede de proteção social, intensificando a reprodução da pobreza porque se baseia na falsa premissa do “incentivo ao esforço individual”. Ignora-se, em favor de uma agenda política e econômica, o fato de que a produção da condição de pobreza e uma de suas faces mais cruéis – a fome – estão ligadas à forma de organização da sociedade. Ou, como nos lembra Josué de Castro em seu Geografia da fome, aos “sistemas econômicos e sociais”.
Nesse mesmo sentido, se ações de combate à fome são tematizadas em frentes de ação isoladas como a distribuição de alimentos, como a experiência dos anos de 1990 – que tem sido ignorada pelo formato do Programa Alimenta Brasil (PAB) que substituiu o PAA – nos ensina, os programas e ações não se mostram sustentáveis nos médio e longo prazos. A garantia da segurança alimentar está conectada à capacidade das políticas públicas em regular, mediar e constituir o circuito dos alimentos de forma sustentável e somada às condições políticas e econômicas do país, trata-se de uma pauta que caminha junto com a urgência da fome e da democracia. Esta última, por sua vez, é valor que permite que pensemos o lugar da política e o ponto de partida para ações de combate à fome.
O combate à pobreza também não se resume à suposta liberdade econômica e à capacitação dos trabalhadores para empregos inexistentes, com o incentivo a um tipo de empreendedorismo que mascara a informalidade. Cabe sublinhar que, em um dos dias da semana, a Cozinha Solidária do MTST entrega quentinhas diretamente nos pontos de descanso dos trabalhadores de aplicativo que cumprem sua jornada de entrega de refeições e alimentos: com fome. As Cozinhas Solidárias são compostas por voluntários, jovens e idosos que têm feito muito todos os dias, colocando em xeque a naturalização da fome no país. Além das refeições, oferecem café, água e um espaço de convivência, apoio e organização política: de horizonte de cidadania.
Nem sempre as quentinhas distribuídas nas cozinhas comunitárias e solidárias são suficientes e, nas últimas, semanas o número de pessoas nas filas não para de aumentar. Em alguns dias, a fila se estende por dois ou três quarteirões. A tensão também escala e, não poucas vezes, as pessoas discutem e se empurram disputando a fila, o que provoca tumultos. É um tumulto provocado pelo medo explícito de ficar sem comida. São cenas brutais que expressam a condição indigna da fome em nosso país, líder mundial na produção de grãos e de carne bovina.
O receio de ficar sem a quentinha, que tem como base arroz, feijão, legumes e uma carne, só é acalmado quando a própria cozinheira ou a coordenação vai até a fila e conversa com as pessoas. Quando as quentinhas não são suficientes para todos, o momento posterior à entrega, de organização da cozinha pela cozinheira e pelos voluntários, é silencioso. Pesa no ar o entendimento doloroso de que, naquele dia, pessoas ficaram sem se alimentar. Ficaram sem, talvez, a única refeição completa do dia.
*Denise De Sordi é historiadora, pesquisadora da FFLCH/USP e da COC/Fiocruz.
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