AUTOR(A)
Frei Jacir de Freitas Faria, OFMAUTOR(A)
Frei Jacir de Freitas Faria, OFM22 de fevereiro de 2023
Com a Quarta-Feira de Cinzas tem início o período quaresmal, após o Carnaval, a festa da carne. Não é nenhuma novidade para nós essa sequência de ritos litúrgicos. A Igreja Católica do Brasil, a cada ano, retoma as práticas judaicas e cristãs da oração, da esmola e do jejum (Mt 6,1-6.16-18) e as relaciona com uma temática social. O tema desse ano de 2023 é “Fraternidade e a Fome”. Que relação existe entre oração, esmola e jejum com a fome? Fome de Deus ou fome de pão? Comunismo ou Evangelho? Justiça ou caridade?
Mt 6,1-6.16-18 começa com a advertência de Jesus sobre a prática da religião como justiça. Algumas Bíblias traduzem: “Guardai-vos de praticar a vossa justiça”; outras, “vossa religião” (Mt 6,1). Na perspectiva judaica, religião e justiça são substantivos sinônimos. Religião, do latim religare, consiste em unir o ser humano ao Sagrado. No judaísmo e no cristianismo, Deus não tolera as injustiças em suas variadas formas, sobretudo a social. A religião como justiça torna-se visível na prática do jejum, da esmola e da oração.
O jejum religioso judaico tem relação com a misericórdia e a justiça. O profeta Joel conclamou: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes; Voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (Jl 2,12-13). Os judeus são chamados à conversão.
O jejum praticado por quem tem o que comer devolve a dignidade para quem o pratica, recordando a ligação com Deus. O judeu Jesus de Nazaré critica seus conterrâneos que se vangloriavam nas praças por causa do jejum que praticavam. Eles se achavam os verdadeiros piedosos, religiosos. Por que Jesus agiu assim? Porque ele ensinava que o praticar o jejum não é para receber honras e glórias, mas é, simplesmente, uma atitude de sacrifício para partilhar.
A compreensão de esmola como prática religiosa de justiça fica claro no seu significado. O judeu não diz “dar” esmola, mas “fazer” esmola, o que corresponde ao fazer justiça, praticando a religião. Em hebraico, esmola se diz Tzedakah e justiça Tzedek. Esmola deriva de justiça. Fazer esmola significa cumprir a lei, a Torá, isto é, fazer justiça. Quando um judeu pobre gritava pelas ruas Tsedakah, todos entendiam: “Faça justiça! Cumpra a Torá!” E esse grito incomodava qualquer judeu piedoso. O judaísmo conclama os seus adeptos a fazer esmola. E fazer esmola (Tzedakah) é agir com justiça no que diz respeito ao modo como cada judeu ganha, gasta e compartilha suas riquezas. Não se trata de dar esmola como de gesto de caridade, como interpretou Santo Agostinho (354-430 E.C.), mas de reconhecimento de que o outro tem direito à dignidade.
A partir dessa compreensão de oração, esmola e jejum, vejamos como ela relaciona-se com a fome de pão, de dignidade e de Deus. Comecemos pela fome de pão. A temática da fome no mundo e no Brasil é muito atual e não tem hora para sair de cena. Aliás, é a terceira vez que esse tema é proposto pela Igreja para a nossa reflexão (1975, 1985 e 2023). Trinta e três milhões de brasileiros passam fome no Brasil, sobretudo no Nordeste entre mulheres, crianças e pessoas pretas. Cento e vinte milhões de brasileiros vivem de insegurança alimentar, sem saber se terá o que comer no dia seguinte. É possível zerar a fome? Sim e não. Fome é condição indispensável, criada por Deus, para a sobrevivência humana e animal. Com o alimento nos tornamos saudáveis e a vida prevalece em nosso corpo.
O faminto que pede comida não quer esmola, mas dignidade. Certa vez, nos meus idos anos de padre jovem, em Ipatinga (MG), ouvi de uma mulher prostituída a resposta à pergunta de uma jornalista sobre o que era pior para elas numa zona de prostituição, que ‘o pior é a fome’. Nunca me esqueci dessas palavras. O Papa Francisco, falando aos juízes argentinos, em 2021, afirmou que “não há democracia, se existe fome”. Democracia é sinal de mesa farta para todos, igualdade social.
Quando assistimos nos meios de comunicação a tragédia da devastação das terras indígenas do povo yanomami, causada pela primazia do lucro e do mercado, a fome e a morte desses brasileiros genuínos impactaram o mundo. Desnutrição mata, mercúrio mata, garimpo destrói a natureza. Onde há garimpo, há fome, miséria e riqueza de poucos! Por causa disso, o povo yanomami está morrendo de desnutrição. Essa tragédia, deliberadamente planejada, orquestrada nos últimos anos, deveria causar vergonha em nós brasileiros, nascidos num país que é gigante pela própria natureza.
O Brasil tem tudo para ser o país que, num futuro próximo, poderá produzir muito mais alimentos para saciar a fome no mundo. O eixo econômico mundial está mudando de foco, de bens de consumo para a produção de alimentos e defesa da natureza. Temos terra, água e natureza fértil. Basta vontade política de nossos governos e da sociedade para que possamos vencer a fome em nosso país. Apesar de o Brasil ser um dos grandes produtores de proteínas, de grãos, do mundo, o nosso povo passa fome porque o interesse dos donos do alimento não é matar a fome, mas gerar dividendo para eles.
O segundo tipo de fome, o de dignidade, corresponde à fome de emprego, de cultura, de arte, de educação, de salário justo, de saúde, de respeito pelas diferenças, de qualidade de vida, de direitos humanas, de justiça, de habitação, de fraternidade, de solidariedade, de amor, de democracia etc. Quem de nós nunca sentiu essa fome? Só não vale a fome de consumismo, pois ela impede a partilha. Não precisamos muito para viver com dignidade.
O terceiro tipo de fome, a de Deus é mais complicada. De qual Deus temos fome? Será que a nossa fome de Deus é suficiente para acabar com fome de pão? Na verdade, uma das maiores fomes do ser humano é o desejo de possuir e de ser possuído pelo Sagrado, por Deus. O ser humano sente que falta algo nele. Ele deseja Deus para compensar as suas perdas e frustrações. Ritos litúrgicos, erotismo e afeto permeiam a insaciável fome de Deus. Muitos se alimentam de um Deus castigador e violento. A saciedade incontida dessas pessoas por estruturas de sociedade que não incluem os empobrecidos resulta no seguimento de ídolos de carne e osso, transformados em mitos que manipulam Deus em favor das massas que o acompanham de forma cega, excitante e violenta. O resultado dessa relação incestuosa gera a fome de pão em nosso meio. A manipulação do Sagrado é coisa séria. E como ela está voltando. Basta revisitar as últimas cenas da novela brasileira chamada eleição. A fome de Deus não tem sentido senão tivermos fome de dignidade, de justiça social. “Dai-lhes vós mesmos de comer”, disse Jesus aos discípulos (Mc 6,37).
Por fim, a relação entre oração, esmola, jejum e a fome de pão, de dignidade e de Deus é clara. O jejum é capacidade de se indignar diante do sofrimento dos famintos. A emola é o saber repartir com os que passam fome em todos os sentidos. A oração é uma forma de espiritualidade, um modo de viver a fé em Deus libertador de todas as dores que não nos deixam viver na justiça, na igualdade e na harmonia.
Receber cinzas sobre as cabeças significa tomar consciência dessa realidade e mudar de vida. Uns dirão que isso é comunismo. Não! É Evangelho vivo. O dia em que o evangelho deixar de nos incomodar, de nos levar à compaixão, ele perderá o seu sabor para a nossa vida. Dar comida aos empobrecidos e defender a vida, a floresta destruída dos yanomami é Evangelho que renasce das cinzas. Religião e justiça estão no mesmo barco! Não basta rezar e nada fazer para acabar com a injustiça social. Para muitos de nós, reafirmar isso é sinal de comunismo. Enganam-se! É evangelho vivo que clama por justiça! Que Deus nos ilumine, pois o pior é a fome!
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
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