AUTOR(A)
Letícia ChiminiAUTOR(A)
Letícia Chimini28 de janeiro de 2021
Por Letícia Chimini*
A questão social no Brasil1 está posta através do conjunto de desigualdades, explorações e expropriações que se desenvolvem a partir do modo de produção capitalista, em que se prioriza a mercadoria. Para o capitalismo, absolutamente tudo pode ser transformado em mercadoria. É difícil visualizarmos a questão social como algo pronto e que se concretize em apenas uma situação: “olha, essa é a questão social”! Porém, as expressões da questão social são consequências de um sistema capitalista neoliberal2 que atua largamente nos territórios urbano e rural, e que, no rural forçaram ao êxodo que levou milhares de pessoas para as periferias urbanas. Numa primeira análise, o êxodo é uma das consequências que mais impactaram e impactam a sociedade brasileira, ocorrido, principalmente, a partir de 1950. A partir daí, o capital, através de suas empresas transnacionais, avançou com mais força sobre o rural.3
Nesse ínterim, de espaços e projetos de sociedade em constantes disputas, são gerados processos de resistência que necessitam serem estudados, elaborados, reelaborados, apreendidos e também superados, para que possamos compreender os processos emancipatórios, principalmente nos tempos atuais, de acirramento dos aspectos neoliberais do capitalismo e que no Brasil ganha requintes de caráter conservador.
No Brasil esse caráter conservador ganha forças para que julguem os mais pobres. Os pobres desse país são julgados por estarem desempregados, porque recebem auxílio doença, por adoecerem ou se acidentarem, por terem filhos, por não terem filhos, principalmente as mulheres. São julgados por receberem bolsa família e são culpabilizadas por todas as violências que venham sofrer. Cada real utilizado para políticas públicas, para os mais pobres desse país, é julgado. Esse discurso ajuda a chancelar o desmonte dos direitos sociais e fundamentais que são concretizados por meio das políticas públicas. Outrossim, nada se fala quanto ao montante pago aos banqueiros, ao capital internacional, que fomenta um mercado financeiro que ganha mais, quanto mais retira dos cofres públicos. Dinheiro público que deveria retornar a classe trabalhadora, geradora de toda a mais valia.
Assim sendo, a questão social também reflete, na sociedade capitalista, a degradação do próprio trabalho através de sua superexploração ou desemprego, que ocorre com aval do Estado e que vem intervindo, no âmbito da política, para atender aos interesses econômicos hegemônicos da burguesia.
Na correlação de forças, na luta de classes – classe trabalhadora e classe burguesa – a implementação de políticas públicas e sociais possibilita promover mudanças estruturais e contribuem para a superação das desigualdades sociais, visto que é perpassado pelo poder político, que tem o papel articulador de qualquer projeto emancipatório4. As políticas públicas de distribuição de renda, aliadas aos processos de desalienação, contribuem para reflexões que forjam a consciência de classe.
Políticas de distribuição de renda, ajudam a colocar comida na mesa e crianças e jovens na escola pois não precisam parar os estudos para trabalhar. Atentando para os estudos, as políticas públicas de fomento à educação e formação como PRONERA, PROUNI, IDEB, Bolsas de Pesquisa na Pós-Graduação pela CAPES, e outros foram políticas que alteraram gerações de desigualdades, analfabetismo e alfabetização funcional. A abertura e descentralização de universidades públicas e institutos federais oportunizou cursos de ensino superior e pós-graduação no interior e periferias do Brasil e, juntamente com a política de cotas para o povo negro e indígena, historicamente expropriado de seus direitos, pôde, finalmente, ver a filha e o filho da classe trabalhadora acessar o ensino superior e gerar a mudança que separa gerações da miséria.
As políticas públicas que deram acesso ao direito à moradia digna, possibilitaram às famílias não terem mais que optar entre comprar comida ou pagar aluguel, quando a cada mês assombrava a possibilidade do despejo. A moradia digna, com acesso ao saneamento básico e a certeza de que a casa não corre risco de desabar, que os filhos vão estudar perto de casa e o transporte público é próximo e acessível, facilitando chegar em casa em menos tempo e ter mais tempo com os seus.
Na correlação de forças na luta de classes, o campesinato brasileiro está imbricado nos processos desse sistema e que, ao estar incluído no sistema, também causa exclusão, ao que denominamos de inclusão perversa. Por isso, lutamos por políticas públicas e sociais de fomento da agricultura familiar e camponesa, que auxiliem as famílias agriculturas a se desvencilharem das amarras dos sistemas integrados de produção que garantem a compra mas não o valor de pagamento da produção, por políticas públicas que fomentem a agroecologia, que promova a diversidade na produção, a preservação do meio ambiente e nascentes, a preservação e ampliação das sementes crioulas, o fomento e criação de feiras que estreitam a relação dos/as trabalhadores/as urbanos/as e o campesinato.
Lutamos por políticas públicas e sociais que subsidiem a produção de alimentos limpos e saudáveis que possibilite remunerar de forma digna quem produz e que alcance preços acessíveis à própria classe. Bem como, por políticas públicas que atendam às necessidades das famílias que moram e trabalham, criam seus filhos e filhas, realizam seu modo de viver, de produção e reprodução da vida, no território rural5. Com a saída de milhões de pessoas do campo, se ratificou a escassez de políticas públicas e sociais nesse território, que passou a ser priorizado como um espaço apenas de produção.
As políticas públicas dão conta da vida concreta das pessoas e a sua ausência grita as injustiças, onde as pessoas precisam buscar no mercado todas as necessidades da vida. O que o Estado realiza, fomenta e desenvolve é público e isso quer dizer do povo. O que o mercado oferece só pode ser acessado, se comprado. A ausência e o desmanche das políticas que atendem o povo, leva consigo os direitos historicamente conquistados e é complementado com as formas que a desigualdade assume, que pode ser pela opressão física e/ou psíquica e que, na divisão social das classes, se naturaliza um conjunto de práticas que “ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação una e indivisa”6.
Atuar nas expressões da questão social nos remete a táticas que superem o reformismo e que rompa com o capitalismo imperialista, que nos trouxe ao atual contexto brasileiro. Uma nação soberana garante vida digna aos que tudo produzem, garante soberania alimentar, energética, genética. Garante saúde, educação, cultura, moradia, trabalho, terra, garante direitos humanos. Uma nação soberana luta contra as injustiças que estruturam as desigualdades e que geram o desemprego, as violências contra crianças, idosos. Lutam contra o racismo que sentencia à morte jovens negros, luta contra o machismo que violenta e mata mulheres. Nesse sentido, relacionamos a questão social com a questão agrária, por onde perpassa o acirramento das desigualdades, mas também os processos de resistência, através dos movimentos sociais populares.
Uma nação soberana se preocupa com o futuro da humanidade, visto que não há limites para o capital, que se mantem porque se reproduz de forma ampliada e, reconhece a necessidade de processos coletivos de organização e mobilização que tenha no horizonte a emancipação humana, com a capacidade de fazer e reconhecer a própria história7, na totalidade da classe trabalhadora, sem interferências do capital, ou de quaisquer amarras de dominação.
Notas:
1 Apreendemos “a Questão Social como um conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”. (IAMAMOTO, 2005, p. 27).
2 “O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é tanto mais “resiliente” quanto excede em muito a esfera mercantil e financeira em que reina o capital. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30).
3 O território rural é um espaço de disputa, do agronegócio, em que tudo vira mercadoria e das famílias que vivem no e do campo e que precisam desenvolver estratégias de resistência, em decorrência dos modos de produção que são aplicados ao seu meio pelo capital. (CHIMINI, 2015).
4 “O poder político – em última instância – constitui o núcleo articulador de qualquer projeto emancipatório que pretenda transformar as bases da dominação e da opressão […] entendemos por política a capacidade de decidir e incidir na definição e nas soluções dos processos e problemas que têm a ver com o curso da vida em comum.” (OSÓRIO 2014, p. 93).
5 Há “[…] permanentemente preocupação com o acesso à terra pelos agricultores (via aquisição ou programas de reforma agrária) e a regularização de áreas habitadas por grupos tradicionais, que além de proporcionar um direito econômico e social fundamental, garante às famílias parâmetros e referências sociais que contribuem para estruturar os espaços de vivência, garantindo a manifestação dos seus costumes e tradições como uma forma de preservar sua identidade. Junte-se a isso também o atendimento das necessidades básicas para o acesso à educação, saúde, seguridade social, etc., pois, do contrário, corre-se o risco de se perpetuarem formas exploratórias de trabalho, alienação e exclusão social que ainda persistem. (SOUZA; SILVA; SILVA, 2012, p. 83).
6 Chauí (2000, p. 89).
7 “A emancipação humana, fim da pré-história da humanidade, exige a superação das mediações que se interpõem entre o humano e seu mundo. Para que a humanidade, reconhecendo a história como sua própria obra, possa decidir para outro caminho, diferente do beco sem saída para o qual a sociedade capitalista mundial levou a espécie. Nos termos de Marx, assumir de forma consciente e planejada o controle do destino humano”. (IASI, 2011, p. 59).
CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Abramo, 2000.
CHIMINI, Letícia. Gênero no meio rural: a mulher na diversificação produtiva, no contexto da monocultura do tabaco, no município de Agudo/RS-Brasil. 2015. 130 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2015.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez, 2005.
IASI, Mauro Luís. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização, a sociedade civil e o tema poder. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
SOUZA, Emanuel F. M.; SILVA, Marcio G.; SILVA, Sandro P. A cadeia produtiva da mandiocultura no Vale do Jequitinhonha (MG): uma análise dos aspectos socioprodutivos culturais e da geração de renda para a agricultura familiar. Isegoria, ano 1, v. 1, n. 2, p. 73-85, set. 2011/fev. 2012. Disponível aqui.
* Militante do MPA, Assistente Social (CRESS 6325), Mestra em Desenvolvimento Regional/UNISC, Doutoranda em Serviço Social/PUCRS.
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