AUTOR(A)
Allan Rodrigo de Campos Silva, Gerson Antonio Barbosa Borges, Estevan Leopoldo de Freitas CocaAUTOR(A)
Allan Rodrigo de Campos Silva, Gerson Antonio Barbosa Borges, Estevan Leopoldo de Freitas Coca30 de novembro de 2021
Na ausência de solidariedade, humanismo e relações não capitalistas frente à natureza e os seres sociais, o vírus vai nos decifrando e devorando.
Nesta semana que passou, autoridades de saúde da África do Sul identificaram uma nova variante do vírus causador da COVID-19. Já são 77 casos na província de Gauteng e casos relatados na Botsuana, Egito, Bélgica, Israel, Itália, Alemanha, Inglaterra e Hong Kong. A Ômicron ou B.1.1.529, foi identificada como variante de preocupação devido a um número alarmante de mutações: 32 somente na proteína spike, responsável por ligar os vírus às células humanas.
As vacinas funcionam como uma fechadura para as proteínas spike: se nosso organismo souber reconhecer aquela chave, o sistema imune entra em ação. Mutações na proteína spike são como mudanças no segredo da chave. Ainda não podemos avaliar como essa cepa impactará a imunidade adquirida com as vacinas, mas estamos assistindo o vírus em busca de saídas para a nossa precária cobertura vacinal em tempo real. E ele continuará trocando o seu código enquanto houver caminho para infectar populações não vacinadas.
A Europa, agora em meio à sua quarta onda de COVID-19, está prestes a se tornar um acelerador do contágio dessa cepa para o mundo. Nesse continente que possui recordes de casos diários em vários países, também se proliferam misantropos grupos anti-vacina.
O surgimento da nova variante coloca em xeque o esquema de aquisição e distribuição de vacinas capitaneado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso porque, as variantes surgem das fissuras econômico-sanitárias do próprio sistema capitalista, que além do dinheiro, também considera seres humanos e natureza enquanto mercadoria.
Nos territórios nos quais a doença se espacializa livremente, sem as cascatas de proteção epidemiológica que as intervenções em saúde pública ainda podem oferecer – como vacinas, uso de máscaras e distanciamento social – as pessoas podem se infectar com diferentes cepas de vírus em diferentes contextos socioecológicos.
Populações com baixos índices de vacinação atuam como uma via aberta para a evolução do vírus, que pode testar as suas mutações ao se favorecer da diversidade dos hospedeiros humanos. Como argumenta WALLACE (2020), enquanto lutamos para atingir uma imunidade de rebanho, os vírus vão usufruindo da nossa diversidade de rebanho.
Os vírus estão sempre testando a sua capacidade de infectar e causar danos aos hospedeiros. Quando oferecemos aos vírus milhões de hospedeiros sem proteção vacinal, as cepas que atingem o limiar de contágio mais rapidamente adquirem uma vantagem evolutiva e ganham na competição com as outras variantes. Ou seja, as cepas que causam muitos danos aos hospedeiros em um curto período de tempo, só têm chance de se proliferar nos contextos em que há hospedeiros suscetíveis e desprotegidos em abundância. Caso contrário, o vírus mata o seu hospedeiro sem conseguir avançar para o próximo hospedeiro, morrendo com ele.
Por isso, os territórios negligenciados pelas políticas de aquisição e distribuição de vacinas, com um longo histórico de desmanche das infraestruturas públicas de saúde, incluindo a vigilância epidemiológica, continuarão produzindo variantes. Em outras palavras, tomar saúde pública como oportunidade de lucro para companhias privadas amplifica a própria pandemia no tempo e no espaço planetário.
Dito de outro modo, a distribuição igualitária de vacinas deveria ser vista não como uma ação de “bondade” dos países com maior renda per capita, mas como um ato de inteligência, pois a pandemia é global e só será superada quando houver índices de vacinação que atinjam inclusive os principais bolsões de pobreza em todos os continentes.
A COVAX Facility, programa capitaneado pela OMS para aquisição e distribuição de vacinas para países pobres, já evidencia suas primeiras limitações. Criada em dezembro de 2020, a iniciativa prometeu entregar 1,3 bilhão de doses da vacina gratuitamente até o final de 2021, sob o lema: “Com uma pandemia de rápida evolução, ninguém está seguro, a menos que todos estejam seguros”.
A maior parte dessas doses viriam da chamada vacina de Oxford-Astrazeneca, desenvolvida em conjunto entre a farmacêutica anglo-sueco AstraZeneca e a Universidade de Oxford. Em abril de 2020, a Universidade havia declarado que doaria os direitos de produção da vacina para qualquer farmacêutica, na condição de que as doses chegassem às pessoas a baixos custos. No entanto, depois de uma intensa rodada de negociações entre a OMS e a GAVI Alliance – cujo principal patrocinador é o bilionário Bill Gates – o projeto de uma coalizão de vacinação global foi derrotado pela mercantilização da saúde pública. A Universidade de Oxford assinou um acordo exclusivo com a farmacêutica Astrazeneca, garantindo dinheiro e prestígio, além de não impor qualquer obrigação à causa dos preços baixos.
Esse fato evidenciou que os direitos de propriedade têm sido utilizados para expressar a crueldade do modelo neoliberal. A ideia de bem comum é deixada de lado e a mercantilização de tudo se coloca como tendência inevitável.
A COVAX foi sendo reduzida a uma fachada para a negociação de acordos bilaterais entre as farmacêuticas e os governos nacionais, sem poder impor condições humanitárias. A estratégia de ação conjunta cedeu espaço ao modelo de diplomacia triangular, onde os estados são ferramentas para os negócios de empresas na esfera internacional. Até novembro de 2021, apenas 500 milhões de doses haviam sido distribuídas gratuitamente em todo o mundo, muitas das quais já prestes a vencer. Entre doses doadas e vendidas, até julho de 2021 ao menos 450.000 vacinas vencidas foram descartadas na África e outras 200.000 na Europa. As razões residem justamente nas estratégias corporativas das farmacêuticas, em conjunto com a deterioração dos sistemas públicos de saúde, incapazes de distribuir as doses em uma curta janela de tempo.
A consequência direta desse fracasso pode ser percebida agora na emergência da variante Ômicron na África do Sul, com apenas 25% da população com primeiro ciclo vacinal completo (no continente africano a porcentagem é ainda menor, atingindo 7%). Em janeiro de 2021, um grupo de profissionais de saúde sul africanos escreveu um artigo condenando a ausência completa de um plano nacional de vacinação do governo do país. Com uma impostura familiar aos brasileiros, no final de 2020, representantes do governo sul-africano declararam não considerar prudente iniciar negociações bilaterais com farmacêuticas, sob o risco de comprar vacinas ineficazes – em que pese várias das vacinas terem conduzido parte dos seus testes clínicos na África do Sul.
Ainda não sabemos em detalhes como essa nova cepa surgiu, mas entre os epidemiologistas duas hipóteses vêm ganhando mais força, ambas diretamente ligadas ao enfraquecimento das instituições de saúde pública na África do Sul: a primeira indica que a variante tenha surgido há meses em uma região sem qualquer vigilância genômica, o que permitiu que ela evoluísse fora do radar e agora nos surpreenda com uma acúmulo de mutações que não fomos capazes de identificar em tempo real. A outra hipótese sugere que a cepa tenha evoluído a partir da infecção em pacientes imunossuprimidos – a bibliografia em epidemiologia mostra diversos casos de patógenos que, por se ativarem reciprocamente, interferem na sua evolução recíproca.
A lição que fica é mais óbvia do que esperávamos. Ela está estampada no próprio lema da Covax Facility: “Com uma pandemia de rápida evolução, ninguém está seguro, a menos que todos estejam seguros”. No entanto, essa meta é irrealizável enquanto a saúde for tratada como mercadoria e um senso comum saúde pública não for praticado em escala global.
Em um nível mais radical, seremos capazes de imaginar outra rede vital multiespécieis no planeta, com outros animais e patógenos incluídos, para além dessa infindável fábrica de pandemias? A mudança nos sistemas alimentares, hoje submetidos a hegemonia corporativa, em primeiro lugar responsáveis pelo surgimento das pandemias, entra na ordem do dia. E para essa transformação avançar, precisaremos nos emancipar da comida-mercadoria, da saúde-mercadoria, enfim, do modo de produção capitalista.
Referências
Wallace, Rob. Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência. Tradução: Allan Rodrigo de Campos Silva. Elefante & Igrá Kniga, São Paulo, 2020.
Autores
*Allan Rodrigo de Campos Silva: Geógrafo e tradutor, Doutor em Geografia Humana pela USP. Membro do Fórum Popular da Natureza e do Coletivo Editorial Igrá Kniga.
**Gerson Antonio Barbosa Borges: Militante do MPA, Especialista em Economia e Desenvolvimento Agrário pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Atualmente é doutorando em Geografia pela UNESP.
***Estevan Leopoldo de Freitas Coca: Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com período sanduíche na University of British Columbia (UBC). Atualmente, atua como professor Adjunto da Universidade Federal de Alfenas (Unifal) – curso de Geografia.
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