AUTOR(A)
Letícia ChiminiAUTOR(A)
Letícia Chimini8 de março de 2023
Este ano, a Jornada de Lutas das mulheres gaúchas tem como centralidade a luta por Soberania Hídrica, com o lema: ‘Por um mundo sem violência, em defesa da vida e do direito das mulheres’. As temáticas que transversam a soberania hídrica são diversas, pois sabemos que sem água não há vida e logo, jamais deveria ser mercadoria. Por defendermos que água não é mercadoria é que pautamos o cancelamento da privatização da CORSAN – Companhia Riograndense de Saneamento, justificada pelo governador Leite pela incapacidade no cumprimento das metas do marco regulatório do saneamento. Outra situação inerente a questão da água é a grave situação das barragens do estado, em especial a Barragem da Lomba do Sabão, na região metropolitana, que segundo estudo realizado em 2017 por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul existe alto risco de rompimento, que pode resultar em graves danos para cerca de 70 mil pessoas atingidas diretamente.
De todas as situações graves que nos fazem lutar pela soberania hídrica, o que terá nossa atenção, mais amiúde, será a grave seca no Rio Grande do Sul que vem se agravando nos últimos quatro anos. Iniciaremos pelos múltiplos fatores que nos ajudam a pensar o contexto de seca no estado e que a ciência nos aponta algumas afirmações em uma combinação de fatores naturais e
humanos. Vamos a eles:
Nos cabe ainda refletir sobre dois fatores, bem específicos. Um é a relação da estiagem com o desmatamento da Amazônia e os rios aéreos, também conhecidos como rios voadores que são “cursos de água atmosféricos, formados por massas de ar carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, e são propelidos pelos ventos”. São correntes de ar invisíveis que carregam “umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil”.
Logo, o Sul do Brasil, assim como as demais regiões do Brasil e do mundo são impactadas pelo desmatamento da Amazônia, que é uma prática comum na expansão do agronegócio, e aqui adentramos o segundo fator. O agronegócio faz uso inadequado do solo com agricultura e pecuária intensivas que degradam o solo e reduz a umidade, o que contribui com a seca, considerando que a retirada da cobertura vegetal interfere no ciclo das águas, afetando a capacidade de armazenamento e infiltração de água no solo, além de reduzir a transpiração das plantas, que é um processo importante para a formação de chuvas. Além disso, o agronegócio com o cultivo de monoculturas para exportação consome grandes volumes de água, muitas vezes retirados de aquíferos subterrâneos que são recursos finitos. Essa prática prejudica o acesso à água de comunidades rurais e afeta a biodiversidade da região.
Por conseguinte, que as condições climáticas regionais também interferem no clima da região, mas denunciamos as alterações na natureza feita pelo capital com objetivo de lucro a qualquer custo e que os impactos e consequências desse projeto de lucro e de morte, das monoculturas de alto impacto ambiental, de sementes transgênicas, com alto índice de utilização de agrotóxico, do desflorestamento para a produção de commodities para exportação, da fome de 33 milhões de pessoas no Brasil, do trabalho análogo a escravidão, dos latifúndios grilados e todas as formas de violências no Campo, impactados com mais força sobre as camponesas,
privilegiando uma minoria.
As mulheres têm menos acesso aos recursos, como terra, água e crédito e isso dificulta a adaptação à seca e proteção dos meios de subsistência. As mulheres enfrentam barreiras culturais forjadas pela desigualdade de gênero e isso dificulta o acesso a esses recursos, ao passo que é sobre elas que recaem “os cuidados”, tão naturalizados, que sequer são considerados trabalho e essa condição de ajuda foi culturalmente e socialmente engendrada. As mulheres são responsáveis pela produção de alimentos, pela criação e daquela parcela da produção que alimenta a família com diversidade e qualidade nutricional, mas que são denominadas de miudezas.
A Criação confunde-se com a criação dos filhos, mas refere-se ao trabalho com os animais: galinha,
porcos, vaca de leite. Miudezas vêm de miúdo, pequeno, e refere-se à produção que não está na lavoura
onde está a produção que denominam de “carro-chefe”, que é de onde provem a maior parte da renda
bruta familiar, através de sistemas integrados de produção. Essas miudezas perfazem uma diversidade
enorme de alimentos. (CHIMINI, 2021, p. 160).
Essa diversidade enorme de alimentos é renda (indireta) mas como não se transforma diretamente em papel moeda (dinheiro) pela venda, as atividades relativas à produção não são consideradas trabalho. Assim sendo, ainda em 2023, precisamos debater as relações de gênero e a geração de renda para as famílias para fomentar a diversificação da propriedade e, consequentemente, melhorar a renda.
E, por que precisamos debater a desigualdade de gênero no contexto da diversificação produtiva, de geração de renda em uma conjuntura de seca? Porque ambas estão relacionadas com as violências que passam as mulheres e, nesse contexto, ter renda pode ser a condição material que faz cessar situações violentas que, em se tratando das mulheres rurais, estão relacionadas também com a condição de dependência financeira e da violência patrimonial. Outrossim debater a desigualdade de gênero no contexto da diversificação produtiva, de geração de renda e a seca, inclui a busca por água e a realização de atividades agrícolas em condições adversas que precarizam a vida e reduzem consideravelmente a qualidade de vida na roça.
Ao atentarmos para as consequências da seca, o Estado poderia minimizar, por meio de medidas urgentes e de políticas públicas, o impacto sobre quem produz alimentos e aqui citamos iniciativas que já estão atrasadas, pois ainda não foram tomadas, haja vista o histórico de seca e as previsões de que esse período continuará. As medidas mais urgentes são a liberação de milho com preço subsidiado para alimentação animal e a implementação de um crédito emergencial para as famílias atingidas. Todavia, essas medidas emergenciais devem ser seguidas pela construção de políticas estruturantes para os períodos de estiagem no estado e essa construção perpassa pelos programas de irrigação para oferecer incentivos e financiamentos para aquisição de equipamentos e sistemas de irrigação e construção de cisternas para garantir a disponibilidade de água durante os períodos de seca. Passa, também, pela implementação de um sistema de gestão de recursos hídricos que priorize a água para a produção agroecológica de alimentos e diversificação de culturas. Essas, conjuntamente com acesso ao crédito e seguro agrícola; por projetos e programas que visem a conservação do solo, com práticas de manejos sustentáveis, com o fim do uso de agrotóxicos e por investimentos em pesquisa e desenvolvimento que compreenda o alto impacto social, econômico, ambiental e político da agroecologia como modo de produção de alimentos para o povo brasileiro.
Importante destacar que os impactos da seca na qualidade de vida das pessoas que vivem no meio rural são desproporcionais em relação aos moradores das cidades, uma vez que as populações rurais geralmente têm acesso limitado a serviços básicos de saúde, educação e assistência social. Portanto, é crucial que as políticas públicas para enfrentar a seca levem em consideração as necessidades específicas das comunidades rurais e trabalhem para reduzir as desigualdades sociais e econômicas e que essas políticas sejam planejadas, implementadas e avaliadas em conjunto com os movimentos sociais populares organizados que vêm, historicamente, denunciando as consequências do agronegócio, mas, também, anunciando e fomentando a agroecologia para preservação da vida.
Por fim, a seca leva à diminuição da produção agrícola e à escassez de alimentos, afetando diretamente a soberania e a segurança alimentar das comunidades rurais e os territórios da cidade, acarretando na carestia, já insustentável para o povo brasileiro. A seca, em contexto de adensamento do capitalismo neoliberal e pós governo Bolsonaro desvela graves consequências: acirra a desnutrição, precarizando a saúde, especialmente das crianças e os idosos; a dificuldade de acesso à água potável, força as pessoas a caminharem longas distâncias para coletar água em rios e lagos, sem água tratada ou contaminada por venenos e expostos a doenças; na perda de renda pela redução da capacidade das famílias de investirem em sua própria subsistência; e por fim, dessa relação, não das consequências, acarreta na migração forçada em busca de emprego e de condições de vida melhores.
Portanto, é fundamental considerar as questões de gênero na elaboração de políticas públicas e práticas de adaptação e combate à seca, garantindo o acesso equitativo a recursos e oportunidades para mulheres e homens, bem como a promoção de relações de gênero igualitárias e a valorização dos papéis e saberes na gestão dos recursos naturais e das decisões coletivas.
Para encerrarmos essa reflexão, a estiagem no Rio Grande do Sul tem impactado a agricultura camponesa familiar e, de forma acirrada, sobre a vida das mulheres, especialmente aquelas que vivem em áreas rurais. As mulheres enfrentam desafios adicionais com a falta de saneamento básico e de água para a agricultura, além de afetar a participação das mulheres na tomada de decisões em suas comunidades, visto que as mulheres estão sobrecarregadas com o trabalho agrícola e o cuidado da família, elas têm menos tempo e energia para se envolverem em atividades comunitárias e políticas e isso afeta negativamente na capacidade coletiva de organização e mobilização por melhores condições de vida.
A luta não avança sem as mulheres e não vamos retroceder. Seguimos em luta contra a fome e as violências: abastecendo de alimentos e esperanças o povo brasileiro!
Letícia Chimini é militante do MPA, Coletivo de Gênero, Dra. em Serviço Social (PUCRS), Mestra em Desenvolvimento Regional e Assistente Social (UNISC).
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