AUTOR(A)
Leonilde Servolo de MedeirosAUTOR(A)
Leonilde Servolo de Medeiros16 de março de 2023
No dia 2 de março de 1963, foi aprovado pelo Congresso Nacional, após sucessivas versões, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), lei 4214/63. Por meio dele estendiam-se aos trabalhadores do campo direitos dos quais os urbanos do mercado formal já gozavam pelo menos desde a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943.
O ETR instituiu a obrigatoriedade da Carteira Profissional de Trabalhador Rural para pessoas maiores de 14 anos; jornada de trabalho de oito horas; repouso semanal remunerado; férias; estabilidade (ou seja, impossibilidade de demissão dos que contassem mais de dez anos de trabalho no mesmo estabelecimento, a não ser por falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas); salário mínimo regional, do qual poderiam ser descontadas moradia e alimentação fornecidas pelo patrão, mas garantindo que pelo menos 30% do valor fosse pago em dinheiro; manutenção de escola primária gratuita, caso a propriedade mantivesse a seu serviço mais de 50 famílias. As mulheres passavam a ter direito ao afastamento do trabalho seis semanas antes e seis depois do parto, podendo, em casos excepcionais, esses períodos serem aumentados para mais duas semanas cada um; dois descansos especiais, de meia hora, durante o trabalho diário, para amamentação, por pelo menos seis meses após o parto; repouso remunerado de duas semanas em caso de aborto.
O documento legal consolidou o direito à sindicalização. Os sindicatos deveriam ser reconhecidos pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social e a eles caberia celebrar convenções ou contratos coletivos; validar a demissão de trabalhador estável, caso ocorresse; manter serviços de assistência para os associados; promover a criação de cooperativas; fundar e manter escolas de alfabetização e pré-vocacionais. Poderiam se organizar em federações estaduais (mínimo de cinco sindicatos) e em uma Confederação Nacional, com, pelo menos, três federações. Foi instituído o imposto sindical, a que estavam sujeitos empregadores e trabalhadores rurais, bem como um Fundo de Assistência e Previdência do Trabalhador Rural, sustentado pela contribuição de um por cento do valor dos produtos agropecuários, recolhida, na ocasião da venda, pelo produtor, ao Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI). A este instituto caberia a prestação de serviços aos segurados e seus dependentes: assistência à maternidade; auxilio doença; aposentadoria por invalidez ou velhice; pensão em caso de morte; assistência médica; auxilio funeral.
O ETR previa também contrapartidas para os empregadores visando a modernização das atividades agrícolas: eles teriam prioridade para obtenção de financiamento no Banco do Brasil ou outro estabelecimento de crédito do Governo Federal para realização de obras de caráter social e educativo e preferência para operações de crédito e financiamento de entressafra e de benfeitorias, desde que suas instalações e serviços assistenciais se enquadrassem nas exigências da nova lei. Propunha ainda facilidades creditícias para importação ou aquisição no mercado interno de bens de produção que levassem ao aumento de produtividade, melhoria da qualidade ou preservação das safras.
O tema dos direitos no campo já era pautado desde o final do século XIX e início do século XX, quando da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, envolvendo famílias que viviam no interior das fazendas. Nessa época ocorreram inclusive greves de colonos de café, nas quais estava em jogo, além do valor pago pelo que era colhido, o acesso a um lote de terra ou autorização para plantio de alimentos nas “ruas” dos cafezais.
Para além dos arranjos produtivos que se faziam país afora com base nos costumes locais e das denominações diversas que essas relações recebiam (agregação, colonato, morada), as marcas do passado escravista se reproduziam: eram comuns as denúncias de castigos físicos, expulsão das propriedades em caso de qualquer desafio à autoridade do dono ou do administrador da fazenda. O trabalho, via de regra, não era individualizado, mas envolvia toda a família: homens, mulheres, crianças, idosos. Era ela quem produzia. Em alguns cultivos, como o algodão, por exemplo, era comum o uso da parceria, na qual se estabeleciam formas de divisão do produto entre o trabalhador e o dono da terra. Caio Prado Jr. considerava toda essa gama de relações como “assalariamento disfarçado” e apontava para a importância política de reconhecê-las como assalariadas, portanto, capitalistas, contrapondo-se à leitura majoritária do Partido Comunista, que as caracterizava como semifeudais.
Frente a esse quadro complexo, com enormes variações regionais, não por acaso, no debate sobre a legislação trabalhista para o campo, eram trazidas, em especial pelas entidades patronais, questões como a própria definição legal do que era trabalhador rural (e, portanto, do alcance de direitos trabalhistas), as peculiaridades do trabalho no campo (marcado por ciclos mais intensos, nas épocas de plantio e colheita) e o direito à sindicalização. Os argumentos patronais, não raro, giravam em torno do risco de que as ideologias do meio urbano, entrando no meio rural, quebrassem as relações vigentes, fundadas, segundo eles, na reciprocidade e no respeito.
Entre os trabalhadores havia claros sinais de resistência e incipiente organização revelados, por exemplo, pelas greves que se intensificaram desde o fim do Estado Novo. Os jornais Terra Livre e Novos Rumos, ligados ao Partido Comunista, identificaram entre 1946 e 1964, 119 ocorrências, a grande maioria em São Paulo e Pernambuco. Nelas, eram constantes, tendo a CLT como parâmetro, referências ao não cumprimento da legislação, ao desconto habitação e à demanda por pagamento do salário mínimo. Nesse processo, teve papel importante o Partido Comunista, mas é preciso destacar também, a partir de final dos anos 1950, a presença crescente da Igreja Católica, com os Serviços de Orientação Rural do Nordeste e os Círculos Operários, inicialmente voltados para os trabalhadores urbanos, mas que se voltaram também aos rurais.
Cresceram, nessa época, os recursos à Justiça do Trabalho, em especial em São Paulo, levando à criação de uma jurisprudência que garantia direitos mínimos aos reclamantes. Ao longo desse processo, vai se constituindo a figura do “assalariado rural”, em luta por direitos trabalhistas, mas quase sempre acoplados à demanda por acesso à terra.
Em 1944, o Ministério do Trabalho, pelo Decreto-Lei nº 7.038, já havia estabelecido parâmetros para a sindicalização rural, propondo a organização de sindicatos de trabalhadores e de patrões, seguindo uma estruturação vertical conforme o modelo já existente na indústria e comércio. O decreto não foi regulamentado, por pressão do setor patronal. Com a volta de Getúlio Vargas à presidência da República, em 1951, o tema retornou. Em abril de 1954, o Executivo enviou um projeto ao Congresso propondo estabilidade ao trabalhador rural, limitação da jornada de trabalho, proteção à mulher e ao menor e filiação do trabalhador ao IAPI. Essas iniciativas, entretanto, mais uma vez esbarraram na oposição das entidades empresariais, como a Confederação Rural Brasileira e a Sociedade Rural Brasileira, de boa parte da imprensa e do próprio Congresso cuja maior bancada, a do Partido Social Democrático, tinha suas bases eleitorais no patronato rural.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek, o Partido Trabalhista Brasileiro, liderado por Fernando Ferrari, tentou, embora sem êxito, obter aprovação para projetos que visavam a introdução da legislação trabalhista e previdenciária no campo. No governo de João Goulart, o Executivo retomou o tema e encaminhou ao Congresso um projeto de lei de autoria de Fernando Ferrari que, após receber algumas emendas, tornou-se o ETR.
A aprovação da nova lei se fez num contexto muito marcante de crescimento do número de associações de lavradores em todo o país; da criação das Ligas Camponesas no Nordeste; de visibilização de lutas por terra, seja de posseiros, seja dos que estavam ameaçados de expulsão do interior das fazendas; de greves; de realização de inúmeros encontros de trabalhadores do campo; de criação, já em 1954, de uma organização nacional, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab) e de realização do I Congresso Camponês de Belo Horizonte em 1961, com a presença da diversidade de organizações então existentes. Essa intensa mobilização colocava na pauta o debate tanto sobre direitos trabalhistas quanto sobre a necessidade de uma reforma agrária, tema que polarizou as forças políticas e compunha a agenda como uma das mais polêmicas reformas de base propostas no governo Goulart.
Um ano depois da aprovação do ETR sobreveio o golpe militar, as organizações de trabalhadores foram perseguidas e ficou fragilizada a possibilidade de pressão coletiva para seu cumprimento.
Em 1973, a lei 5.889 estendeu as disposições da CLT aos trabalhadores rurais, exceto no que se refere ao prazo de prescrição dos direitos (dois anos, contados a partir da data em que se encerrasse o contrato de trabalho, ao contrário dos trabalhadores urbanos, cujo direito prescrevia dois anos após ele ter sido infringido) e estabilidade. A Constituição de 1988 igualou os direitos entre rurais e urbanos.
Falar das conquistas legais e da importância do ETR, implica mencionar as profundas transformações nas condições de trabalho no campo ocorridas ao longo do processo de modernização da agricultura brasileira que se intensificou a partir dos anos 1960. A crescente transformação tecnológica tornou cada vez menos necessário ter trabalhadores morando na fazenda, uma vez que diversas fases do processo produtivo passaram a ser realizadas por máquinas (aragem, plantio) ou por insumos químicos (uso de venenos para eliminar pragas). Em resultado, cresceu a expulsão de trabalhadores das propriedades, criando a figura do trabalhador volante, boia-fria ou de ponta de rua (denominações locais), que mora nas periferias das pequenas e médias cidades e é recrutado por agenciadores de mão-de-obra para trabalho temporário, sem vínculo empregatício, na colheita de frutas, de café, algodão, corte de cana etc. Estes trabalhadores não gozam de quaisquer direitos trabalhistas. Entre eles estão o que hoje chamamos de trabalho escravo contemporâneo. Aos 60 anos do Estatuto do Trabalhador Rural, ainda falta muito para a legislação trabalhista efetivamente chegar ao campo.
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